07 Março 2019
“Em certo sentido, Francisco levou toda a Igreja global com ele para visitar Abu Dhabi, chamando a atenção de todos para uma comunidade cristã local composta quase inteiramente de imigrantes que são tolerados, mas nem sempre respeitados pelos seus vizinhos não cristãos e explorados por um sistema econômico que produz luxo para a população nativa.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, EUA. O artigo foi publicado em Commonweal, 05-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não foi coincidência que, poucos dias depois do retorno do Papa Francisco de Abu Dhabi, o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cuja nomeação a cinco mandatos o papa não renovou em julho de 2017, publicou o seu “Manifesto da Fé”.
Esse documento foi um ataque velado contra o papa, mesmo que não o nomeasse. As dúvidas que alguns cardeais continuam levantando sobre a ortodoxia do papa são, entre outras coisas, um sinal de que a trajetória básica desse pontificado permanece a mesma, apesar da crise dos abusos sexuais.
Um ano após a sua surpreendente visita ao Chile e ao Peru em janeiro de 2018, Francisco lidou com a crise dos abusos ao convocar uma reunião sem precedentes de todos os presidentes das Conferências Episcopais no Vaticano. No entanto, o papa não abriu mão de suas outras prioridades, uma das quais é melhorar as relações da Igreja com o Islã e o mundo árabe.
A viagem em fevereiro de Francisco aos Emirados Árabes Unidos foi um sinal de que ele continua comprometido com esse projeto. Não foi a primeira dessas viagens (em 2017, ele foi ao Cairo para uma conferência de paz em al-Azhar); nem será a última (neste mês, ele viajará para o Marrocos).
A visita aos Emirados Árabes Unidos foi controversa dentro do Vaticano: altas autoridades da Cúria se perguntaram se não teria sido melhor para Francisco ir ao Catar e Omã – ou ao Bahrein, cujo soberano convidou o papa quatro anos atrás. Francisco escolheu os Emirados Árabes Unidos porque queria continuar seu diálogo com o Grão-Imã de al-Azhar, o egípcio Ahmed el-Tayeb, que organizou o encontro inter-religioso em Abu Dhabi.
O encontro foi promovido pelo Conselho Muçulmanos de Anciãos com sede em Abu Dhabi e foi promovido como parte fundamental do “Ano da Tolerância” dos Emirados Árabes Unidos (em 2016, o primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, anunciou criação de um “ministro da felicidade” e de um “ministro da tolerância”).
Francisco também pode ter desejado dar maior visibilidade à significativa população católica dos Emirados Árabes Unidos – perto de um milhão –, quase todos trabalhadores migrantes da Ásia. A situação deles é melhor do que a das minorias religiosas em alguns outros países de maioria árabe e muçulmana, mas, mesmo assim, é precária. A tolerância religiosa de que eles desfrutam ainda é bastante limitada para os padrões ocidentais.
Ao planejar suas visitas papais, Francisco sempre deu atenção especial a países onde os católicos e cristãos são uma pequena minoria. Na Península Arábica, os católicos romanos vivem como uma minoria no berço do Islã. Eles também são uma minoria dentro de uma minoria: os católicos de rito romano são apenas uma das muitas comunidades cristãs antigas. A viagem de Francisco aos Emirados Árabes Unidos serviu para ressaltar a diversidade das tradições cristãs no Oriente Médio, algumas das quais remontam aos primeiros séculos da Igreja.
A viagem de Francisco aos Emirados foi significativa por três razões. A primeira tem a ver com a política. Ao visitar os Emirados Árabes Unidos, o Papa Francisco deu nova visibilidade não só aos cristãos de lá, mas também às iniciativas políticas do governo, que, apesar de suas reformas, dificilmente é um emblema da democracia liberal.
O emir de Abu Dhabi nomeia o primeiro-ministro, que consulta um conselho federal de 40 membros. A legislação se baseia na sharia, que prescreve a pena de morte para vários crimes. Residentes nascidos no exterior representam mais de 80% da população, mas seus direitos humanos básicos muitas vezes não são respeitados.
Havia um alto risco de que a visita do papa fosse manipulada pelo governo dos Emirados Árabes Unidos para contrastar sua versão relativamente tolerante do Islã com a de alguns de seus vizinhos. Mas esse contraste pode ser enganoso, especialmente no Ocidente. Os Emirados Árabes Unidos gastam uma enorme quantia de seu orçamento em sistemas de armas e, junto com a Arábia Saudita, financiam a guerra brutal contra os Houthis no Iêmen.
Mas seria um erro entender a visita de Francisco como um endosso ao regime. Com Francisco, o Vaticano tem ido ao encontro de países em todo o mundo árabe, incluindo alguns com históricos ainda mais duvidosos em relação aos direitos humanos.
Em 2018, poucas semanas antes de sua morte em um hospital dos Estados Unidos, o homem de referência de Francisco para o diálogo com o mundo muçulmano e árabe, o cardeal francês Jean-Louis Tauran, viajou para Riad na Arábia Saudita. Lá ele se encontrou com o rei Salman – foi o primeiro encontro entre um governante saudita e uma autoridade católica. Mas essa foi apenas a mais recente de uma série de encontros entre altos funcionários sauditas e representantes da Igreja Católica, e nenhum deles implicou um endosso vaticano ao regime saudita.
O papa não é ingênuo e deixou bem clara a sua posição sobre a guerra no Iêmen. De fato, pouco antes de deixar o Vaticano para voar para os Emirados, ele implorou na oração do Ângelus na Praça de São Pedro pôr um fim àquela guerra, plenamente ciente do envolvimento dos Emirados Árabes Unidos. Francisco sempre esteve disposto a conversar com alguém disposto a conversar, incluindo líderes políticos com mãos sujas. Faz parte de seu engajamento global, de Raúl Castro em Cuba a Aung San Suu Kyi em Mianmar.
Mas é claro que o principal significado da viagem era religioso. Ela marcou um novo estágio nas relações da Igreja com o Islã. As viagens de Francisco ao Marrocos e aos Emirados Árabes Unidos – aproximadamente as extremidades geográficas do mundo muçulmano de fala árabe – ocorreram durante o aniversário de 800 anos do encontro entre São Francisco e o Sultão. Essas visitas fazem parte de um esforço contínuo para melhorar as relações inter-religiosas que começaram com o Vaticano II.
Como Francisco assinalou durante uma coletiva de imprensa em voo, o Documento sobre a Fraternidade Humana que ele e Ahmed el-Tayeb assinaram está perfeitamente de acordo com o ensinamento conciliar: “Do ponto de vista católico, o documento não se afastou um milímetro de Vaticano II, que também é citado algumas vezes. O documento foi feito no espírito do Vaticano II”.
Se há uma diferença entre o Papa Francisco e seus antecessores sobre essa questão, é sua ênfase na fraternidade: mas isso também pode ser rastreado até o Vaticano II. Embora a palavra “diálogo” represente algo como um instrumento de relações inter-religiosas, toda a intuição do Vaticano II, desde o momento em que João XXIII o anunciou em 1959 até a declaração Nostra aetate, que foi aprovada nas últimas semanas do Concílio em 1965, teve a ver com a fraternidade da única família humana.
Em um sentido técnico, o Papa Francisco nunca se envolveu em discussões teológicas que promovessem o diálogo inter-religioso, no qual houve poucos avanços nos últimos anos. Em vez disso, ele se concentrou em ressaltar os valores que os membros de outras comunidades religiosas compartilham com os cristãos.
A Al-Azhar é uma das instituições teológicas de maior prestígio no islamismo sunita, mas seria um erro considerá-la como o Vaticano do Islã. O imã el-Tayeb é tanto um conservador quanto um reformador, que sofre a desconfiança tanto dos muçulmanos tradicionalistas quanto dos progressistas. Ele é um adversário da Irmandade Muçulmana. Ele falou muito duramente sobre Israel. Ele rejeitou o terrorismo e foi prestar suas homenagens às vítimas do massacre de 2015 no Bataclan, em Paris. A relação de Francisco com el-Tayeb poderia se tornar uma fonte de divisão entre os muçulmanos e até mesmo entre os sunitas. Mas, pelo menos por enquanto, el-Tayeb é considerado o melhor interlocutor muçulmano de Francisco.
Por fim, a viagem de Francisco aos Emirados Árabes Unidos tem um significado teológico dentro da própria Igreja Católica. O Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado por Francisco e el-Tayeb em Abu Dhabi, levantou novas preocupações entre aqueles que já suspeitavam da ortodoxia deste papa. Em uma Igreja ainda majoritariamente ratzingeriana, em que a clareza teológica é entendida como a exigência de uma rejeição de qualquer aparência de conciliação, um documento conjunto assinado pelo Grão-Imã de al-Azhar estava fadado a causar polêmica.
Mas, comparado com a declaração conjunta de fevereiro de 2016 assinada por Francisco e pelo patriarca de Moscou em Cuba, o Documento sobre a Fraternidade Humana mostra de forma bastante clara as suas raízes na tradição católica romana e é pelo menos tão desafiador para os muçulmanos quanto para os católicos. Ecoando o segundo parágrafo da Nostra aetate, o documento afirma que “o pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos”.
A rejeição do documento aos pretextos teológicos para a guerra expressa um compromisso que terá de ser testado: “declaramos – firmemente – que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões”. Seria absurdo afirmar que Francisco se vendeu a seu interlocutor muçulmano.
O documento também inclui compromissos de respeito à liberdade religiosa e à cidadania para minorias – compromissos que não seriam fáceis de se honrar em algumas partes do mundo muçulmano.
A missa foi a parte mais impressionante e comovente da viagem do papa a Abu Dhabi (assista abaixo). Em sua homilia, Francisco falou diretamente às circunstâncias dos católicos locais: “Viver como bem-aventurados e seguir o caminho de Jesus não significa, porém, estar sempre alegres. Quem está aflito, quem sofre injustiças, quem se esmera para ser um agente de paz sabe o que significa sofrer. Para vocês, certamente não é fácil viver longe de casa e sentir, além da falta do afeto dos entes queridos, talvez também a incerteza do futuro. Mas o Senhor é fiel e não abandona os seus”.
Em certo sentido, Francisco levou toda a Igreja global com ele para visitar Abu Dhabi, chamando a atenção de todos para uma comunidade cristã local composta quase inteiramente de imigrantes que são tolerados, mas nem sempre respeitados pelos seus vizinhos não cristãos e explorados por um sistema econômico que produz luxo para a população nativa.
Pode-se dizer que Francisco celebrou a missa para os servos do país. Foi a primeira missa pública celebrada nos Emirados Árabes Unidos, e havia 125.000 pessoas de 100 nacionalidades diferentes participando. Havia caldeus, cristãos coptas, greco-católicos, melquitas, maronitas e católicos siríacos, entre outros. O papa reuniu a Igreja Católica em sua universalidade, em um estádio, para celebrar a Eucaristia e para reconhecer e encorajar um grupo de cristãos vivendo em condições extremamente difíceis, um grupo politicamente negligenciado, culturalmente ignorado e quase invisível para muitos de seus correligionários no Ocidente.
Assim como o Documento sobre a Fraternidade Humana, a missa no estádio mostrou como o debate intracatólico sobre o liberalismo parece diferente quando visto através dos olhos das minorias católicas que vivem em países muçulmanos. Para elas, a liberdade é um tesouro escasso, e não uma abstração obsoleta.
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Papa Francisco na Arábia: por que a viagem aos Emirados Árabes Unidos gerou polêmica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU