Pietà de Michelangelo oferece um sentido em meio à traição da crise dos abusos

Pietà, de Michelangelo | Foto: romaemportugues.com.br

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04 Março 2019

Logo dentro da Basílica de São Pedro, em Roma, à direita, está a arrebatadora escultura de Michelangelo, a Pietà. Multidões  e mais multidões se apresentam para a contemplação. A maravilha, inicialmente, é de que um pedaço de mármore de Carrara pôde produzir uma representação tão luminosa da agonia materna. A jovem está resoluta. Parece totalmente exausta nesse momento de incerteza sombria. A cabeça ensanguentada de seu filho, cuja vida imprevisível e itinerante terminou em uma colina de horrores, cai para além do seu braço direito. A preocupação e a ansiedade dela estão apagadas. O fardo dela agora é a morte, um momento de vazio.

O editorial é do National Catholic Reporter, 01-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

É a partir desse instante cru de humilhação, de futilidade e de aparente abandono – a piada de mau gosto na legenda que proclama “o Rei dos Judeus” – que a nossa esperança surge. Nenhuma Ressurreição ocorre sem ela.

Por toda a Igreja dos Estados Unidos, em graus variados, as pessoas estão se perguntando algo como: “O que fazemos a seguir? O que podemos fazer?”.

É uma questão que muitas vezes surge de um lugar de agonia, de uma disposição de futilidade. Todos nós conhecemos a expressão “povo de Deus”. E muitas vezes falamos: “Nós somos a Igreja”. Mas nesse caso, neste nosso momento de incerteza sombria, o que isso significa?

As questões surgem, é claro, no rastro da última rodada de revelações de abuso sexual, de novas revelações de antigos padrões em sua grande maioria de comportamentos criminosos e de encobrimento desses crimes por homens que chamamos de nossos bispos, homens nos quais confiamos implicitamente.

Em uma meia volta da Pietà em direção à frente da massiva basílica, uma sensação de deslocamento toma conta. Sem simplificar demais ou reduzir uma realidade complexa à caricatura, o fato é que, em certo nível, o edifício contém uma narrativa reveladora.

Do enorme e ornamentado baldaquino, o dossel acima do altar papal, com suas quatro “colunas colossais e torcidas, esplendidamente estriadas”, segundo a explicação do Vaticano, até a estátua equestre do imperador Carlos Magno e uma estátua de Constantino na parte de trás da Igreja, até os 26 monumentos aos papas, instala-se uma dissonância. O chão contém marcas que mostram o quanto a basílica é maior do que as maiores igrejas do mundo. A descrição vaticana afirma que o vão é equivalente a um prédio de 15 andares.

Como chegamos da Pietà ao resto? Que Evangelho foi seguido para se passar da alienação abjeta e destituída de uma execução do século I aos excessos de uma corte renascentista?

Não importa o quão bem-intencionada e sinceramente dedicada aos propósitos de Deus essa grandeza tente se expressar, também é evidente que os ornamentos de cerca de 500 anos atrás criaram um memorial à cultura papal e clerical que torna a Pietà uma forasteira.

Há uma frase maravilhosa no segundo volume do papa Bento XVI sobre Jesus: “Essa inversão de proporções é um dos mistérios de Deus. O grande – o poderoso – é, em última análise, o pequeno”.

A Igreja está sendo “apequenada” nesta grande humilhação atual. Os próprios bispos não estão mais se protegendo, reconhecendo publicamente que perderam sua credibilidade moral. De muitas maneiras, a comunidade católica tornou-se algo ridículo, prova viva para alguns de que a fé é um absurdo e de que a prática religiosa equivale a se envolver em uma fraude que, em última instância, é perigosa para as crianças.

A grandeza – o ouro, a seda e os remanescentes da cultura e do comportamento reais que se entrelaçaram na nossa prática – agora parece barata e de mau gosto, um excesso terrivelmente fora de lugar neste momento de humilhação.

O que podemos fazer? Tendo sido humilhados, como podemos viver agora com autêntica humildade?

Podemos construir nossos próprios lamentos novos. Não é necessária nenhuma permissão. Apenas precisamos saber como rezar, como ler os Salmos, como entender aquela pepita de percepção paulina: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Enquanto os bispos continuam negociando o seu caminho para algum acordo com esse terrível escândalo, o nosso trabalho pode ser encontrar o caminho da transação para a transformação.

Precisamos de novas orações de luto, de novos símbolos litúrgicos que expressem a aflição da comunidade neste momento.

Talvez devêssemos rezar regularmente o inspirador Magnificat de Maria, particularmente as frases: “Manifesta o poder de seu braço, dispersa os soberbos; derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes; sacia de bens os famintos, despede os ricos sem nada”.

A oração, tantas vezes vista como um clamor profético relacionado com aqueles que estão fora do rebanho, é apropriada hoje como uma avaliação ad intra.

Nessa oração, podemos imaginar, com os padres que se importem de se unir a nós, um novo modo de ser Igreja, novas formas de expressar nossa fé que tenham a ver com elevar os humildes e saciar os famintos. Tornarmo-nos, como Francisco disse, uma Igreja dos pobres e marginalizados, daqueles que são a Pietà desta era, fornece um caminho para além da monumental traição da crise dos abusos.

Somos uma comunidade moldada e responsiva aos símbolos. Os bispos, em nível global, poderiam fazer bem em colocar a cátedra papal de São Pedro na capela da parte traseira à direita da basílica e colocar a Pietà no seu lugar, na frente e no centro, como nosso novo foco de meditação.

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