27 Fevereiro 2019
No cinema, “Dogman”, da nova safra italiana, retrata o cotidiano de uma cidade empobrecida e anômica — e do protagonista, que se equilibra entre docilidade e servilismo. Cada perspectiva de interpretação revela um filme diferente.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, em artigo publicado por Instituto Moreira Sales, 22-02-2019.
Dogman, de Matteo Garrone (Gomorra, Reality), um dos filmes mais interessantes da nova safra italiana, pode ser abordado de várias maneiras. Ambientado num balneário decadente da região da Campania, retrata, por um lado, o cotidiano de uma sociedade empobrecida, de gente derrotada e relações sociais à beira da anomia. É, portanto, uma espécie de herdeiro desencantado do neorrealismo italiano.
Nessa perspectiva, sobressai a atmosfera de desolação da paisagem natural, arquitetônica e humana. Ali, tudo é ruína, tudo é deserto, terra devastada. Um cenário de tristeza em que toda a energia restante parece canalizada para a mera necessidade de sobreviver.
Mas, desde o início, a câmera de Garrone parece interessada prioritariamente em outra coisa. A primeira cena, admirável, mostra o protagonista, o cuidador de cachorros Marcello (Marcello Fonte), tentando dar banho num cão furioso preso a uma corrente.
Um homem cordato e franzino, um animal feroz – essa situação básica se repetirá ao longo do filme com a entrada em cena de outro personagem, o brutamontes Simone (Edoardo Pesce), ex-pugilista viciado em cocaína.
A violência descontrolada de Simone – que logo veremos destruir a cabeçadas uma máquina de fliperama quando perde no jogo – é um problema para a comunidade, mas principalmente para Marcello, sua vítima preferencial e seu fornecedor (nunca remunerado) de cocaína.
Dessa relação de opressão física e emocional Matteo Garrone faz o cerne de seu filme, sem temer o risco de transformar a brutalidade num espetáculo.
Há muitas formas de encenar a violência no cinema. A violência catártica de Peckinpah é diferente da violência operística de Sergio Leone e da violência cartunesca de Tarantino. Cada cineasta aborda esse universo, essas pulsões, de acordo com suas concepções estéticas e éticas.
Não é tanto a quantidade de cenas sangrentas que importa, e sim a maneira como são filmadas. Um filme como Não matarás, de Kieslowski, consegue expressar o caráter único e precioso de toda vida humana, qualquer que seja ela, até mesmo a de um assassino cruel.
E a abordagem de Garrone é, no mínimo, problemática, por resvalar, em alguns momentos, no mero sensacionalismo. Tomemos um exemplo: a certa altura, um transtornado Simone invade um galpão onde se amontoam bonecos, máscaras e alegorias de carnaval e espanca impiedosamente um homem. Quando este cai inerte no chão, a câmera se demora alguns instantes no rosto sorridente de um boneco em que respingou o sangue da vítima. É uma imagem sarcástica, quase sádica, difícil de ser justificada dramaticamente.
Mas há uma terceira maneira de encarar Dogman, um terceiro filme dentro desse filme, que é um estudo da personalidade do protagonista Marcello. Um homem triste e afetuoso, na fronteira entre a docilidade e o servilismo, que se move um tanto por desprendimento e outro tanto pelo medo. Um homem com vocação para a derrota, para a autoanulação.
E aí se destaca a extraordinária atuação de Marcello Fonte (premiado em Cannes e em outros festivais) na composição desse indivíduo. Duas sequências são exemplares: aquela em que ele divide um prato de massa com seu cachorro (“uma garfada pra mim, outra pra você”) e aquela em que volta à casa que acabou de ser assaltada para salvar um cachorrinho que ele nem conhece.
Dogman, em suma, suscitará reações diversas nos espectadores, do enternecimento à repulsa. O que não se pode dizer, em todo caso, é que seja um filme dispensável ou irrelevante.
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O espetáculo da brutalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU