20 Fevereiro 2019
"Estamos todos no ventre do peixe com os nossos corações, mentes, memórias e expectativas - e precisamente essa consciência poderia nos fazer viver esse ventre do peixe como a possibilidade de um novo nascimento, enquanto as ondas ameaçam nos submergir". Naquele ventre está toda a diversidade, uma qualidade que atravessa a todos em múltiplas formas, mas que não deve ser reduzida a unidade uniforme, e nem mesmo a pluralidade dispersa, mas sim à "dualidade" dialógica, evitando os penhascos extremos da incomunicabilidade e da assimilação", escreve Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 17-02-2019. A tradução é de Luísa Rabolini.
Conta-se que Thelonious Monk (1917-1982), o aclamado pianista e compositor de jazz estadunidense, criador junto com Dizzy Gillespie do Bebop, dotado de acordes essenciais e percussivos, muitas vezes interrompesse suas performances para uma dança ao redor do piano, a fim de fazer ecoar, verificar e refletir no espelho ideal do seu corpo o ritmo da sua música.
Quem evoca esse gesto é o filósofo Roberto Mancini da Universidade de Macerata, em um ensaio em um livro com vários autores, oferecendo uma interpretação diferente: o ato, mais que uma verificação, seria "uma imersão coral, para sentir que o corpo também estava em harmonia com a vida, revelada em seu movimento mais natural, o fluxo materno” vital. Dessa forma também se estabelecia uma ponte de comunicação-comunhão com o público que vibrava no mesmo ritmo.
Essa parábola é adotada para exaltar a tese que Mancini propõe em relação ao tema geral de um livro com vários autores, ou seja, o nexo entre Espiritualidade e política.
Luigina Mortari (editora), Spiritualità e politica,
Vita e Pensiero, Milão, p. 196.
Contra toda separação venenosa no individualismo se deveria fazer florescer uma "consciência coral" inter-humana (portanto, política), que, no entanto, não elide, mas reconcilia simbioticamente pessoa e comunidade. E conclui: "Existir não é tentar sobreviver na luta contra os outros, é conviver em direção a uma comunhão ainda desconhecida" que, aliás, nos precede e nos excede, sendo inerente à consciência comum e que, portanto, pode gerar uma sociedade acolhedora e democrática.
Certo é que não é fácil combinar os dois polos em torno aos quais se confrontam nessa obra quatro filósofos e dois teólogos.
Caso se queira, o binômio "espiritualidade e política" é o subtítulo ou uma articulação do mais amplo e muitas vezes escaldante paradigma "fé e política", no qual é árduo operar uma passagem da dura "separação" exclusivista dos dois componentes a uma mais suave "distinção" que é, no entanto, dialógica. Isso também se aplica aos componentes que desses derivam: por um lado, a espiritualidade parece remeter à singularidade, à intimidade pessoal, enquanto, pelo outro, a política supõe pluralidade, coexistência, sociabilidade.
A proposta de base apresentada nas páginas muito densas e variadas dessa coleção de ensaios tem como objetivo transpassar o confronto dialético, antitético e repulsivo pelo qual os dois termos são um oximoro, para chegar em vez disso a uma harmonia, a um contraponto, a um dueto em que as diferenças não se desbotam ou se repelem, mas se compõem.
É o que o teólogo Giuliano Zanchi espera alcançar no final de seu ensaio: "O espiritual e o político devem se reconjugar entre si. A espiritualidade precisa se reconciliar com uma antropologia subtraída dos psicofármacos do desencanto tecno-científico. A política deve ter novamente acesso ao domínio da cura econômica liberada dos astutos contadores do capitalismo global”.
O antropológico e o político devem ser capazes - como sugere outro teólogo, Luciano Manicardi, prior da Comunidade de Bose – de recorrer à preposição entre. É o que esperava Hannah Arendt em seu "O que é a política" (Comunità 1995): "A política fundamenta-se na pluralidade dos homens, trazida pela convivência dos diferentes, nasce no infra e afirma-se como relação".
E o teólogo desenvolve a análise dessa partícula mínima, mas fundamental, recorrendo a um rico repertório de autores e temas: do sagrado no homem individual segundo Simone Weil, à vida interior que sustenta a "política como profissão", para citar o homônimo ensaio de Max Weber (Einaudi 1976), até a surpreendente evocação de "Lendo Lolita em Teerã" de Azar Nafisi (Adelphi 2004), em um caleidoscópio de iridescências (imaginação, criatividade, coragem, a palavra, a promessa, o limite, a morte). A propósito de convocações autorais, é significativo que inclusive Ivo Lizzola da Universidade de Bergamo siga "os passos de Simone Weil" em seu ensaio dedicado à "violência sem fim e à ‘ação perfeita’".
O ponto de partida para abordar esse itinerário sobre os passos de uma pensadora tão original e surpreendente é confiado a um emblema pertencente a um texto bíblico de cortante e irônica polêmica contra o exclusivismo e, portanto, a rejeição do outro, ou seja, o livro de Jonas profeta.
"Estamos todos no ventre do peixe com os nossos corações, mentes, memórias e expectativas - e precisamente essa consciência poderia nos fazer viver esse ventre do peixe como a possibilidade de um novo nascimento, enquanto as ondas ameaçam nos submergir". Naquele ventre está toda a diversidade, uma qualidade que atravessa a todos em múltiplas formas, mas que não deve ser reduzida a unidade uniforme, e nem mesmo a pluralidade dispersa, mas sim à "dualidade" dialógica, evitando os penhascos extremos da incomunicabilidade e da assimilação.
Mais uma formulação do binômio que sustenta a obra é oferecida por uma conhecida professora da Universidade Roma Tre, Francesca Brezzi, que sugere um "habitar diversamente o mundo" através do ethos, ou seja, o comportamento ético, e o oikos isto é, a casa da polis. Ela faz isso de uma maneira muito sugestiva, recorrendo à lição de duas figuras, não realmente sob o holofote da popularidade, até mesmo intelectual.
Por um lado, traz ao palco Antonietta Potente, uma teóloga dominicana da Ligúria, que se tornou boliviana entre os índios daquele país, e já essa experiência resulta reveladora de um oikos que se torna "alegoria da dimensão ética que une a materialidade com seu sentido espiritual e político".
Por outro lado, eis que Joan Tronto, docente da Universidade de Nova York, com outras estudiosas introduz categorias, tais como a da cura e da confiança. Assim, "a cura torna-se uma ferramenta conceitual imponente para qualquer tipo de teoria política”, valorizando entre outras coisas, a vida emocional na coesão social.
Nesse ponto o nosso olhar sobre os ensaios reunidos nessa obra coletiva encontra como síntese e emblema ideal o ensaio de abertura de Luigina Mortari da Universidade de Verona, que também é a curadora da obra completa. A marcha revelada por suas páginas tem principalmente as cores da classicidade grega, começando necessariamente por Aristóteles, fundamental com sua Ética a Nicômaco, e, claro, Platão com seus Diálogos, mas sem ignorar a chegada novamente a Hannah Arendt, encruzilhada para o debate em questão.
O projeto de Mortari é um tipo de eflorescência com a composição de uma coroa que inclui pétalas como a eudaimonia, que é muito mais que felicidade; a sabedoria, que é muito mais que ciência ou gestão; o bem, categoria difícil de ser apreendida, mas radical para a política; a busca pelo essencial, assim como o pensamento e o conhecimento que exigem verdadeiras virtudes intelectuais; a consciência do limite; a formação espiritual como requisito para o exercício da política.
Com essas e outras dotações poderão ser realizadas as "grandes e belas obras" das quais fala Platão no Simpósio; é o kalopoiein, a ação e a vida boa e bela para a qual também Paulo exortará (2 Tessalonicenses 3:13). Mas já Cristo convidava a erigir como estandarte no mundo kalà érga, as boas/belas obras (Mateus 5:16).
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Harmonia entre ‘ethos’ e ‘polis’. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU