31 Janeiro 2019
O Além: o que acontece quando morremos? Em torno da pesada interrogação, desenvolveu-se uma pesquisa filosófico-teológico-literária que oferece respostas destinadas a permanecer em suspenso. Agora, dois livros, de Paolo Ricca e Ivano Dionigi, voltam a enfrentar o grande tema.
As obras foram comentadas pelo cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 27-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No seu intenso e original ensaio sobre “Lucrécio, Sêneca e nós”, sugestivamente intitulado “Quando la vita ti viene a trovare” [Quando a vida vem te encontrar], o latinista Ivano Dionigi tem um pequeno capítulo dedicado ao medo da morte, a chantagem mais poderosa que paira sobre a humanidade, e – na companhia de Lucrécio – delineia as suas terríveis gemações, como a luxúria do poder e da riqueza, a imoralidade, a servidão e até a religião.
Para o implacável poeta latino, somente a morte é imortal, o verdadeiro inferno é o aquém, e o juízo escatológico é apenas uma parábola das nossas doenças morais. É longa a fila dos seguidores de Lucrécio, mesmo que nunca tenham lido uma linha do seu “De rerum natura”. O tempo flui, e a morte sempre rege a outra ponta do fio, à espera de enrolá-lo ou cortá-lo para sempre.
Como o “Franco cacciatore”, de Caproni, “se ne dicono tante. / Si dice anche / che la morte è un trapasso. / (Certo: dal sangue, al sasso)” [diz-se de tudo. / Diz-se até / que a morte é uma passagem. / (Claro: do sangue à pedra)].
No entanto, há também uma visão antitética do fim da vida: aliás, em latim, finis abrange uma trilogia semântica não totalmente sinonímica, porque indica, sim, um “confim” e uma “finalidade”, mas também o “fim” e, portanto, uma meta esperada e aberta.
Assim, ainda de acordo com o sábio Dionigi, aos olhos de outro grande escritor clássico, Sêneca, a morte é um dies natalis, um novo nascimento no qual se irradia uma lux divina, muito embora a interrogação “Mors quid est?” permaneça carregada de suspensão, e o apagar-se vital seja sempre um evento traumático.
Assim como o filósofo latino de Córdoba, uma multidão imponente, embora conservando suas próprias hesitações, se assomou positivamente a um além-da-vida.
Basta citar apenas a frase de Rilke na sua carta a Von Hulewicz sobre as “Elegias de Duíno”: “A morte é o lado da vida voltada para além de nós, não iluminado por nós”.
A esse respeito, na perspectiva cristã, aparece o “despertar” (tal é o valor do verbo grego usado pelo Novo Testamento, eghéirein) da ressurreição. Ele se fundamenta na passagem do próprio Deus, através do seu Filho, na mortalidade humana, passagem possibilitada pela sua encarnação ou humanização. Fazendo-se mortal como toda criatura, Cristo percorre e experimenta o fim em si mesmo, mas sem deixar de ser divino e, portanto, eterno. É por isso que ele transfigura e transforma o morrer, irradiando-o e fecundando-o com a sua eternidade: é precisamente a ressurreição, o além-do-tempo.
Em torno desse complexo tema, que não elimina o peso das interrogações, obviamente se desenvolveu uma interminável pesquisa filosófico-teológico-literária (a própria “Divina Comédia” tem como base justamente essa concepção), cristalizada em uma infinita biblioteca.
Um dos nossos mais importantes e afiados teólogos contemporâneos, o valdense Paolo Ricca, enfrenta novamente (ele já o tinha feito há muitos anos, com o seu livro "Il cristiano davanti alla morte" [O cristão diante da morte]), a grande pergunta: “O que acontece quando se morre?”, reiterando que a única experiência de morrer que podemos narrar é aquela externa a nós, vivida por outros.
Ele repropõe a interrogação, mas a partir de um ângulo mais árduo, colocando-se não diante, mas depois da morte. Assim se explica o título “Dell’aldilà e dall’aldilà” [Do além e a partir do além].
São três os olhares que se assomaram sobre essa terra incógnita, tentando reduzir a sua escuridão ou filtrar a sua luz ofuscante.
A primeira visão é a imortalista, que afunda as suas raízes no pensamento platônico, agarrado ao eixo metafísico da espiritualidade da alma e, portanto, da sua incorruptibilidade. Ricca faz fluir, quase em uma filmagem, uma dezena de retratos de figuras cristãs que tentaram conjugar e concordar a mensagem pascal com tal leitura da antropologia teológica: os nomes mais conhecidos, eis Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Barth, mas também não falta a voz do Oriente ortodoxo, mesmo que sempre com o retrogosto da linguagem ressurrecionista neotestamentária.
Para acrescentar um atestado católico contemporâneo, além de algumas considerações do Ratzinger teólogo, se poderia seguir o ritual litúrgico dos falecidos, que está entretecido com frases deste tipo: “Acolhei, Senhor, a alma do vosso fiel que parte do Egito desta vida para chegar a Ti... Vinde, santos e anjos de Deus, acolhei esta alma e apresentai-a ao trono do Altíssimo...”, e assim por diante.
A alma imortal do morto, portanto, é confiada ao seu Criador. Ricca, porém, um pouco surpreendentemente, também envolve na sua análise o olhar “reencarnacionista”, caro ao hinduísmo e ao budismo, mas presente também no orfismo grego. É curioso o exame das hipotéticas passagens bíblicas apresentadas em apoio dessa tese (João 8, 58; 9, 2-3; Mateus 11, 7-19; Gálatas 6, 7-8; Apocalipse 13, 9-10; Gênesis 25, 21-26; Salmo 90), textos francamente forçados e improváveis.
O mesmo vale para a tradição teológica cristã posterior. As divergências são radicais em nível de antropologia teológica, e Ricca, embora reconhecendo alguns valores gerais, argumenta pela real incompatibilidade entre essa visão e a cristã.
A trilogia dos olhares, depois dos imortalistas e encarnacionistas, conclui-se com o além cristão específico que, como se dizia, se fundamenta na ressurreição de Cristo. São poucas páginas, muito densas, mas transparentes, que tentam despojar o tema dos fardos materialistas, mas também evitar qualquer metamorfose etérea.
Nesse ponto, volta sobre a mesa a pergunta de início: “O que acontece quando morremos?”. São três as abordagens examinadas: o fiel, privado do corpo físico, une-se intimamente a Cristo ressuscitado; o fiel entra em um “estágio intermediário” de união com Cristo, à espera, porém, da plenitude final com a ressurreição; a pessoa de fé entra em uma espécie de quietude (“sono”) vigiada pelo Senhor, que a despertará-ressurgirá no cumprimento da história.
Naturalmente, que deixamos que o leitor siga a definição acurada desses percursos e as conclusões possíveis que lançam um raio de luz sobre aquela terra incógnita, mas sem poder mapeá-la e visitá-la totalmente, estando no aquém.
No fim, gostaríamos de retornar ao livro de Dionigi que assinala uma intuição de Alcmeão, um remoto e quase desconhecido médico grego do século VI a.C. Ele fala do “arco da vida” humana através de um fulgurante jogo de palavras da sua língua, na qual “vida” é bíos e “arco”, biós.
O círculo é a plenitude perfeita, e essa é a vida da divindade: “Os homens, em vez disso, morrem porque não podem religar o princípio e o fim”, sendo a sua vida-bíos apenas um arco-biós incompleto.
Com uma alegoria cristã, poderíamos dizer que somente Deus, com um ato de graça, poderia nos ajudar a fechar em círculo o arco (biós) limitado da nossa vida (bíos).
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Morte, aquele ''confim'' sempre aberto. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU