12 Fevereiro 2019
A recente publicação de um "Manifesto da fé", assinada pelo cardeal Gehrard Muller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não é um gesto casual.
A análise é de Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma.), sede de Palermo, em artigo publicado por Settimana News, 11-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não é, em primeiro lugar, pelo momento escolhido - véspera do aniversário da renúncia de Bento XVI ao pontificado.
Não é, pelo local de publicação - o site conservador norte-americano Lifesitenews, o mesmo que em agosto passado veiculou com grande alarde a solicitação da renúncia feita a Francisco pelo ex-núncio de Washington, Carlo Maria Viganò.
Não é, acima de tudo, pela intenção declarada no texto, que visa denunciar "a crescente confusão sobre a doutrina da fé", uma denúncia que, sem nunca citar diretamente o Papa Francisco, no entanto, implica claramente a sua linha doutrinal e pastoral.
Não é por acaso que no "Manifesto" é tomada uma posição clara, contrária àquela da Amoris laetitia, sobre a admissão dos sacramentos aos divorciados recasados.
O fundamento de tal posição é o mesmo repetido infinitas vezes nos últimos meses, pelos contestadores da atitude possibilista – de prudente abertura - que o Papa indicou em sua Exortação Apostólica: estaria em jogo, aqui, a fé católica tanto no sacramento do casamento como no da Eucaristia.
Referindo-se a este último o "Manifesto", diz: "A lógica interna do sacramento entende-se que os divorciados recasados civilmente, cujo matrimônio sacramental diante de Deus ainda é válido, bem como todos aqueles cristãos que não estão em plena comunhão com a fé católica e também todos aqueles que não estão devidamente dispostos, não recebam a sagrada Eucaristia frutuosamente, porque desta forma não os leva à salvação".
Estamos mais uma vez diante da recusa em reconhecer a distinção - que não é uma separação! - entre a dimensão dogmática do cristianismo e aquela pastoral.
O que na Amoris laetitia é dito não coloca minimamente em discussão o valor do matrimônio cristão, nem aquele da Eucaristia, mas só convida a Igreja a acompanhar, no plano pastoral, aqueles que estão em uma situação errada, em um percurso penitencial que, sem poder reparar o mal cometido (como não o pode reparar o assassino: e até mesmo um casamento pode ter sido "morto" de forma irreparável), possa lavá-los a descobrir a misericórdia de Deus como uma perspectiva capaz de reativar a vida de fé e a participação na comunidade cristã.
É difícil entender como sobre um ponto que deveria, na pior das hipóteses, sugerir a dúvida de uma excessiva abertura pastoral, tenha se desencadeado uma batalha que tem o objetivo de colocar em discussão a ortodoxia do Papa Francisco.
Especialmente considerando que tal polêmica nunca foi deflagrada contra a admissão aos sacramentos de personagens corruptos, ou em aberta contradição com o evangelho tanto por sua vida como por suas escolhas culturais e políticas.
Quanto ao respeito pelo sacramento do matrimônio, talvez o verdadeiro sacrilégio não seja aquele de ter misericórdia por quem se encontra vivendo tal crise - às vezes sem nenhuma culpa -, mas o de permitir que se casem sacramentalmente pessoas que na realidade não têm nenhuma ideia do significado do que estão fazendo e acabam depois descontando, em sua experiência matrimonial, essa radical irresponsabilidade.
Fica a surpresa diante da oposição nos confrontos deste papa por setores consistentes da Igreja, com um estilo que não pode deixar de recordar aquele do populismo, baseado na virulência nas mídias sociais. Uma contestação vinda de baixo, mesmo que pilotada por algum alo prelado, que nunca havia se verificado, na época contemporânea, e para a qual é preciso retornar até o fim da Idade Média.
Mas talvez a surpresa se atenue quando se descobre que aos motivos doutrinais - realmente inconsistentes – associam-se outros, relacionados à onda de outro populismo, aquele xenófobo que está devastando o mundo ocidental, antigamente depositário da civilização cristã.
Em um artigo em dezembro passado Antonio Socci um dos mais conhecidos e trovejante expoentes desta frente anti-Francisco, atacava a esse respeito a adesão do Vaticano ao Global Compact sobre a imigração, que tanto os Estados Unidos como a Itália se recusaram a assinar, definindo como uma "declaração desconcertante” aquela do cardeal Secretário de Estado Parolin, segundo a qual "a migração é um direito", com a consequente condenação do fechamento das fronteiras e dos portos. “Uma ideia desse tipo", observava Socci "grotesca até o ridículo (além de inquietante), por si só destrói a soberania de qualquer Estado, porque se um Estado não pode controlar suas fronteiras e é obrigado a aceitar qualquer migração em massa, não existe mais como Estado. Basta pensar na Itália que deveria se resignar, sem poder fazer nada, à potencial migração em seu território de centenas de milhões de pessoas da África. Seria realmente uma invasão e com efeitos apocalípticos".
Inclusive nessa frente provavelmente seria inútil explicar a Socci - e a todos que nos últimos meses se lançaram contra o papa e os "vescovoni", como os chamou ironicamente Salvini - que o princípio de abertura não exclui absolutamente medidas oportunas para calibrar o acolhimento e a integração (como, aliás, o próprio Francisco explicitamente ressaltou), à espera de poder pôr em prática a solução básica com a qual todos concordam - eliminar as causas da emigração dos países pobres e em guerra.
Como seria inútil fazer notar que o drama que o Ocidente está enfrentando não é a sua dificuldade prática na gestão do fenômeno migratório, mas a propagação da cultura do medo, do desprezo e do ódio pelos "diferentes", que fez com que se tornasse obsessiva e indiscriminada a rejeição.
O fato é que hoje estamos testemunhando uma aliança muito estreita, dentro da Igreja, entre os ambientes que combatem o papa por suas posições teológicas e pastorais e aqueles que se opõem a ele por seus incessantes apelos.
Em ambos os casos, o que é notável não é a existência de um debate interno nas comunidades cristãs - que seria, se educado e respeitoso, expressão de um legítimo pluralismo - mas a violência inexplicável, a arrogância e a presunção com que alguém se arroga a juiz do papa, de um ou de outro ponto de vista, compensando a própria incompetência e falta de informação com a força do número e com a exasperação do tom.
Dessa forma acontece que um papa, que tentou como poucos outros- talvez o único exemplo comparável seja João XXIII – ir ao encontro das pessoas com a sua humanidade, hoje está sendo atacado como nenhum outro papa pelos seus próprios fiéis e por uma parte do próprio clero.
No "Manifesto" do Cardeal Müller, evoca-se a obscura ameaça do Anticristo, que neste momento ameaça dominar a Igreja. Eu não tenho certeza que se poderia ser chamado assim, mas algo novo e grave está ameaçando a comunidade dos discípulos de Jesus.
Não sei se o Cardeal e Socci, ou todos aqueles que seguem com tanta confiança em seus passos, já se perguntaram o que acontecerá quando, devido ao inevitável curso da natureza, o Papa Francisco nos deixar e seu sucessor assumir.
Ou seja, se eles alguma vez já suspeitaram que, depois de ter desacreditado e deslegitimado um pontífice de quem não compartilhavam as escolhas, não poderão se assombrar se outros, de pontos de vista talvez opostos, fizerem o mesmo contra o novo papa. Quem corta um galho deveria se perguntar se não é aquele sobre o qual ele próprio está sentado.
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Os populismos adversos ao papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU