04 Fevereiro 2019
"Nossa filosofia, nossa ciência e nossa técnica, como um único conjunto, são um sistema que globalizou o mundo. Mas onde está sua racionalidade? Por que dentro desse poderoso processo eclodiram duas guerras mundiais? Por que dentro dele mesmo esses conflitos atuais, essas lacerações, que levaram alguns a falar de choques de civilizações?", pergunta Massimo Cacciari, filósofo italiano, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 03-02-2019. A tradução é de Luísa Rabolini.
Segundo ele, "a crise pela qual estamos passando é acima de tudo sua própria realização. A forma da nova Era será o resultado de uma enorme quantidade de tentativas, a resultante de um complexo imprevisível de ações e de casos. Mesmo conscientes disso tudo, não nos é dado esperá-la".
Hoje percebemos que realizamos este processo: o mundo se globalizou. O périplo foi concluído. Mas longe de nos parecer finalmente racionalizado, explodem desigualdades colossais e aparentemente intransponíveis. O planeta se tornou Globo, mas nos aparece o oposto daquela república universal, que Kant considerava o fim de nossa aventura. Nossa filosofia, nossa ciência e nossa técnica, como um único conjunto, são um sistema que globalizou o mundo. Mas onde está sua racionalidade? Por que dentro desse poderoso processo eclodiram duas guerras mundiais? Por que dentro dele mesmo esses conflitos atuais, essas lacerações, que levaram alguns a falar de choques de civilizações?
A globalização e a racionalização se desarticularam por alguma causa historicamente contingente ou são justapostas por origem? Isso é certo: o processo que envolveu ambas foi uma formidável energia de desenraizamento. Mesmo aqui, a história vem de longe: é Agostinho que em uma página famosa do De civitate Dei afirma que o cristão deve chamar a si, evocar em si e transformar em si os povos de toda a terra, qualquer que seja a sua língua, sua religião, seus cultos e sua história. Simone Weil entendeu isso talvez mais dramaticamente do que qualquer outro intérprete da nossa época: a racionalização-globalização significou rasgar os distintos, as diversas individualidades de suas raízes e tentar reconduzi-los de volta para os nossos próprios padrões, o nossos lógos. Isso é racional? Corresponde à forma do nosso lógos? Não necessariamente, porque na verdadeira raiz do lógos não está presente o senso da imposição, mas sim o de conectar, de harmonizar. Colligere, lógos, légein, a mesma raiz do latim legere, recolher.
O nosso lógos não poderia ter se determinado, não desenraizando, mas recolhendo? Não foi determinado assim, continua a não se determinar assim; desenvolveu ao máximo a própria potência no sentido da superação do desenraizamento, não da superação do recolhimento. Não seria essa a causa mais formidável do fato de que hoje a globalização parece irredutível a qualquer forma racional? Mas tal resultado não era necessário, muito menos devemos considerá-lo intransponível. Existe um conflito em nossa cultura. Também no Iluminismo emerge a tendência racionalizadora desenraizante; mas não é a única. Herder e outros grandes nomes como Goethe insistem, em vez disso, no selo do lógos que indica o recolher acolhedor. Deste selo vem o Divã ocidental-oriental de Goethe, o amor de Goethe pelos grandes poetas místicos persas. E agora parece que justamente essas vozes tenham desaparecido. Agora vivemos em uma globalização em-forma, uma mistura de conflitos e contradições, que parece tê-las esquecido completamente. Mais uma vez, esse é o nosso espírito de inquietação que, para o melhor ou para o pior, determinou a atual ordem-desordem. A desordem é o produto do processo de racionalização que procedeu não de acordo com o selo do lógos recolhedor. Não é um caos genérico, mas o cumprimento do processo de racionalização assim entendido, reduzido a tal dimensão.
No entanto, nós, europeus, insistimos em procurar nele uma Ordem política, uma Forma. E em que direção realizar tal busca a não ser relembrando, colocando no centro de nosso coração, aquele outro selo do lógos? Por que entramos nessa época axial (que rompe a continuidade dos tempos, determinando radicais descontinuidades, ndr) que parece quase uma época de desordem? Para reivindicar e construir uma ordem é necessário que nós nos reportemos às origens desse processo, que compreendamos o ponto onde se abriu a porta da desordem, onde se quebrou a caixa de Pandora. Para recuperar algum tempo perdido? Para contrastar o processo de racionalização-globalização? Isso seria um absurdo.
Diante da desordem atual, existem muitas vozes nostálgicas contra a técnica, contra a racionalização. São nostalgias impotentes, que depois sempre acabam por assumir uma coloração antiocidental e antieuropeia. Sempre um pensamento reacionário, aquele da restauração, contrastou a época axial que vivemos, dizendo que seus males são curáveis só voltando para trás, restaurando o Antigo (e fingindo que era "bom"). É típico de cada momento decisivo que essas vozes se levantem, fáceis de ouvir porque simplificam o juízo em torno da crise. Mas, posta a mão no arado, nós, europeus, não sabemos voltar atrás. Nem mesmo o nosso paraíso significa um retorno ao Éden. Até mesmo o paraíso nos parece uma novidade radical, não um retorno às origens. Tire essa nostalgia pelo novo e tire o lógos europeu. Para ele o perigo e a estrada (póros) são realmente apenas um nome. Não há nenhuma estrada que não seja perigosa, mas também nenhum perigo que não possa se tornar uma estrada. Perigo sim, perigosa sim, mas estrada. Qual é a estrada que avança, tão perigosa quanto se queira? Não aquela de contrastar globalização e racionalização, mas sim aquela de ter que tentar defini-las em uma Ordem que se reporte ao sentido de logos como potência acolhedora, potência capaz de comparar, entender, escutar e, no final, compreender as diferentes linguagens. Se, em vez disso, a racionalização continuar a ser usada como universal desenraizamento, nunca o seu processo poderá ser apresentado em-forma.
E uma nova Ordem só se tornaria imaginável através de uma catástrofe, ou seja, uma mudança radical de estado. Perspectiva que tem em pensamentos reacionários, incapazes de compreender a virada da época, seus melhores aliados. "Governar" a virada, isto é, estar à altura, só pode ser tarefa daqueles que assumem toda a complexidade, contraditoriedade e riqueza do lógos europeu.
Vamos retomar o fio do pensamento de Max Weber. Que aspecto do processo de racionalização e tecnicização do mundo que ele viu com temor e tremor se impor? A ausência dos fins. O inteiro processo de globalização que a Europa conheceu até o contemporâneo também tinha sido determinado de acordo com finalidades de caráter cultural e espiritual. Claro, nunca verdadeiramente separadas da vontade de poder, de uma perspectiva hegemônica, e ainda assim o espírito de missão era seu componente essencial. Basta pensar no valor da forma-Estado, ao Estado de direito versus a anarquia das guerras de religião, ou à sua obra de "civilização" no pólemos inter-estatal, na elaboração de um direito internacional. O globo inteiro continuava a ser visto como terra de missão.
Cada Estado "entendia" do alto dos seus Campidogli. E, no entanto, o processo de racionalização e globalização tinha que se manifestar como afirmação de valores, isto é, de fins universais. Valores e fins que tiveram que se definir e determinar ao longo do processo. O processo valia apenas por causa de sua presença; eram eles a determinar o seu estar-em-forma.
Qual parece ser o caráter "tremendo" que o processo assumiu hoje? A ausência dos fins. Qual o seu valor? O crescimento contínuo da riqueza produzida globalmente. Até certo momento vinculada a fatores de equidade distributiva. Hoje "liberada" inclusive destes. O valor tornou-se um termo com significado exclusivamente econômico. A isso aludiam Weber e Sombart em seu desesperado diálogo: quando acabará o sabá das bruxas? Realmente teremos que esperar que a última gota de petróleo e o último grama de minério sejam extraídos da antiga Mãe? É racionalidade esta - aquela que apagaria o sol porque não dá dividendos (Keynes) - ou será que o processo de racionalização se separou da demanda de Ordem, não se concebe mais como busca de forma? Basta-nos agora apenas proceder, ir além do infinito, participar do sabá? A profecia nietzschiana foi cumprida e nos transformamos perfeitamente em semibárbaros?
No infinito ruim, que obrigatoriamente carece de medidas (isto é, de finalidades determináveis), desenraizados nele, encontramos nossa última "morada"? É o que hoje parece. E, portanto, é impossível responder à pergunta: "Quando a noite vai acabar?". Até a sentinela parece ter desaparecido. E, no entanto, as dimensões essenciais de nosso próprio lógos ainda podem ser ouvidas. Ou ouvidas novamente, depois de tê-las talvez esquecido ou removido. Finalidades determinadas podem ser articuladas dentro da globalização, capazes de contradizer sua atual desmedida. Este é o esforço a ser realizado.
Uma história milenar foi realizada. A crise pela qual estamos passando é acima de tudo sua própria realização. A forma da nova Era será o resultado de uma enorme quantidade de tentativas, a resultante de um complexo imprevisível de ações e de casos. Mesmo conscientes disso tudo, não nos é dado esperá-la. Do processo que a ela levará - talvez através de catástrofes – fazemos parte, querendo ou não. E devemos querer isso.
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Quando acabará o sabá das bruxas? Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU