31 Janeiro 2019
No dia que indígenas fazem 1º grande protesto contra novo governo, o ISA publica última reportagem sobre a reforma ministerial. Ruralistas abrem caminho para cumprir promessa de parar demarcações.
A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental - Isa, 31-01-2019.
Os adversários de Jair Bolsonaro não podem reclamar que suas posições são ambíguas, pelo menos em relação aos direitos indígenas. Anos antes da campanha ruralista contra as demarcações, ele já fazia questão de deixar claro o que pensa dos índios, sem sutilezas ou nuances.
Em 2004, em uma comissão da Câmara, chamou-os de "fedorentos, não educados e não falantes de nossa língua". Em 2008, disse que o líder indígena Jecinaldo Barbosa deveria "ir comer um capim ali fora para manter as suas origens", após Barbosa atirar-lhe um copo de água, em bate-boca numa audiência também na Câmara. Entre 2017 e 2018, em ocasiões diferentes, Bolsonaro afirmou que haveria no país uma “indústria de demarcação” e coisas como: “no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”. Também defendeu que os índios estariam em “situação inferior” e comparou-os a “animais em zoológicos”.
No dia em que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) realiza, em todo país, a primeira grande mobilização popular contra o governo Bolsonaro, a terceira e última reportagem com o raio-x feito pelo ISA da mais drástica reforma ministerial, desde o governo Collor (1990-1992), mostra como e porque a nova gestão abriu caminho ao desmantelamento da política indigenista, assim como mostramos no caso dos temas meio ambiente e direitos.
A reestruturação dos órgãos relacionados aos direitos indígenas também pode ser considerada a mais profunda em quase 30 anos. Subordinada ao Ministério da Justiça (MJ) desde 1991, a Fundação Nacional do Índio (Funai) está agora abrigada na pasta da Família, Mulher e Direitos Humanos, comandada pela polêmica Damares Alves. As atribuições de demarcar as Terras Indígenas (TIs) e opinar sobre o licenciamento ambiental de projetos com impactos sobre essas áreas foram transferidas do órgão indigenista para a Secretaria de Assuntos Fundiários (Seaf) do superministério da Agricultura (Mapa), comandado pelos ruralistas, adversários históricos das demarcações e principal base de apoio de Bolsonaro. A informação que circulou até agora - ainda não confirmada oficialmente - é que as duas funções seriam tocadas no dia a dia por uma instância que ainda deverá ser criada no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), agora também vinculado à Seaf. O Incra continua responsável pela reforma agrária e a titulação de quilombos.
A cadeia de comando dessas políticas está agora nas mãos da ala mais radical do ruralismo. A nova ministra da Agricultura é a deputada federal Tereza Cristina (DEM-MA). O secretário de Assuntos Fundiários é Luís Antônio Nabhan Garcia, presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR). Sua secretária-adjunta é Luana Ruiz, que advoga para diversos proprietários contra a demarcação de terras. A recém-exonerada diretora da Funai, Azelene Inácio, é a principal candidata a controlar a pauta indígena no Incra (veja quem é quem no box ao final da reportagem).
“Quando se desloca a competência da demarcação para o Mapa, está se aparelhando o órgão por meio de pessoas completamente contrárias à demarcação. Do nosso ponto de vista, é um desvio de finalidade”, critica Luís Eloy Terena, assessor jurídico da Apib. Ele acrescenta que os povos indígenas não foram consultados sobre as mudanças, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. Logo no início do mês, a Apib publicou uma nota e encaminhou uma representação à Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o novo desenho ministerial.
O sócio fundador do ISA e ex-presidente da Funai, Márcio Santilli concorda que o novo organograma gera um conflito de interesses entre fazendeiros e indígenas. “Estamos falando da disputa pelo que sobrou do território brasileiro. A administração federal deveria planejar e mediar políticas que pudessem consolidar a ocupação de uma maneira pacífica, contemplando direitos de diferentes populações. No entanto, o que este governo está fazendo é retirar o tratamento da questão indígena do paradigma da Justiça e do Direito para submetê-lo aos interesses dos grandes proprietários de terra”, analisa.
Santilli prevê que o resultado da reestruturação ministerial será a paralisação e judicialização dos procedimentos demarcatórios. “Esta será a tônica: um governo omisso querendo retroceder, quando a Constituição o obriga concluir as demarcações. A tensão vai parar no Judiciário”, comenta.
Outra proposta em estudo é a criação de um conselho interministerial para decidir sobre as demarcações, modelo implantado na Ditadura Militar tão elogiada pelo presidente. O colegiado tende a incluir as pastas da Agricultura, Direitos Humanos, Meio Ambiente, Defesa e Justiça, além da Casa Civil e Gabinete de Segurança Institucional. Com isso, interesses como os dos setores de mineração e energia devem influir ainda mais diretamente no complexo e demorado procedimento demarcatório. O conselho tomaria uma decisão já após a primeira de suas fases, de identificação. Assim, o temor é de que muitos processos tornem-se natimortos.
Nabhan Garcia tenta minimizar as promessas de Bolsonaro e nega que as demarcações serão paralisadas. “Uma coisa é campanha. Outra coisa é ser governo. Na campanha, o que a gente ouvia do então candidato Jair Bolsonaro era o seguinte: não haverá nenhuma decisão de demarcação precipitada, de cunho ideológico e político”, afirma.
Sem detalhar como, Garcia insiste que pretende revisar todos os processos de regularização fundiária em âmbito federal, incluindo os de reforma agrária, quilombos e TIs. O secretário assegura que o governo vai tentar reverter ou anular processos em que forem identificadas falhas ou irregularidades, inclusive as demarcações indígenas já concluídas.
“Quando Bolsonaro propõe essa revisão, estimula uma imensa insegurança e instabilidade jurídicas entre o Poder Público, os indígenas, os produtores rurais que foram retirados das áreas ou que ainda estão envolvidos na disputa de terras”, argumenta a advogada do ISA, Juliana de Paula Batista. Ela acrescenta que, segundo a legislação, é necessária motivação robusta, que identifique “vícios insanáveis”, para justificar a reanálise dos procedimentos demarcatórios e que, ao colocá-los em dúvida de forma indiscriminada, o governo incentiva conflitos e invasões.
“Todo ato administrativo pode ser revisto se tiver alguma nulidade ou se houver interesse público relevante. Isso não quer dizer que exista alguma dúvida sobre os processos de demarcação feitos até agora”, comentou o procurador Antônio Carlos Bigonha, em evento na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, na semana passada. Ele avaliou que os procedimentos com problemas são exceção. “O que existe no Brasil hoje são terras demarcadas regularmente”, finalizou.
A ameaça de reversão ou paralisação definitiva do reconhecimento dos territórios chega depois de anos de estagnação em seu andamento. É bom lembrar, porém, que restam por resolver apenas um terço das pendências. Além disso, o discurso ruralista de que há TIs demais no país não corresponde à verdade. Fora da Amazônia Legal e nos Estados com mais conflitos por terras, a extensão desses territórios é diminuta, ainda mais comparando-se com a extensão total dos imóveis rurais. O Brasil continua a ser um dos países de maior concentração fundiária do mundo. Apenas 93 mil latifúndios ou 1,6% do total de imóveis rurais concentram 47% da área total desses imóveis, quase 30% do território brasileiro, mais que o dobro da extensão das TIs (13%).
A reforma ministerial esvaziou e retalhou a Funai. Mas o problema pode ser mais grave porque pode ter sido criado um limbo jurídico e administrativo que coloca em xeque a capacidade executiva dos órgãos envolvidos com o tema indígena.
A Medida Provisória (MP) 870/2019 e os decretos que reestruturaram os ministérios mencionam apenas a perda das funções de demarcar e opinar sobre licenciamentos. A questão é que o restante da legislação ainda vigente continua atribuindo à Funai as duas tarefas e a função de proteger os direitos indígenas em geral. O MJ também continua citado nas normas sobre demarcações e proteção dos bens da União, como é o caso das TIs.
MP e decretos também não especificam transferências de estruturas, orçamento e cargos da Funai para o Mapa e o Incra. Ainda há muitas dúvidas de como isso será feito. Servidores reclamam da falta de informações.
Ofícios internos e mensagens entre funcionários a que a reportagem teve acesso fazem crer que mais funções, além das referidas na reforma, podem migrar para o Incra, como o monitoramento das TIs, a produção de mapas e até a retirada de não indígenas dos territórios.
Servidores, indigenistas e indígenas entrevistados pelo ISA lembram que o Estado investiu na qualificação de funcionários e acúmulo de expertise técnica no órgão indigenista durante décadas. Eles questionam se o Incra e o Mapa conseguirão realizar as ações desenvolvidas pelo órgão indigenista.
No caso do licenciamento, uma fonte da instituição prevê duas alternativas diante do imbróglio administrativo: a Funai teria de se manifestar depois da concessão das licenças ou se transformaria no órgão “interveniente do interveniente”, ou seja, subsidiaria o Incra. Resultado: mais burocracia e lentidão. A legislação determina que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) deve licenciar projetos com impactos sobre TIs. A Funai tinha até então e o Incra passa a ter agora função consultiva nesses casos.
“O Mapa vai se manifestar sobre hidrelétrica, rodovia, ferrovia, usina nuclear? Uma coisa é a Funai falar sobre impactos em povos e terras indígenas. Outra coisa é o Mapa falar sobre isso”, questiona a fonte.
Ela conta que, desde a gestão Lula, na maioria dos casos relacionados a grandes projetos, a posição da equipe técnica sobre as licenças não prevaleceu. Com a mudança para órgãos sem expertise e pressionados ainda mais diretamente, portanto, a situação tende a se agravar.
A coordenação de licenciamento sofre ainda com o mesmo problema de falta de servidores do resto da Funai. Ao todo, a instituição tem 4,3 mil cargos abertos, mas apenas 2,3 mil servidores trabalhando, uma defasagem de 46%. O problema piora ano a ano com as aposentadorias. Além disso, a dotação orçamentária de 2018 foi equivalente a de 2008. Entre 2010 e 2019, ela caiu 25%.
O novo organograma da política indigenista começou a ser gestado após a queda de Dilma Rousseff.
Quartel-general dos evangélicos no Congresso, o PSC negociou com Michel Temer o apoio ao impeachment em troca do controle da Funai. O indicado do partido para presidir a instituição na época foi Antônio Fernandes da Costa. Ele acabou batendo de frente com o então ministro da Justiça, o deputado ruralista Osmar Serraglio (MDB-PR).
A crise foi resolvida com a exoneração de Costa e a divisão dos principais cargos de chefia entre os dois grupos. O general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas acabou conseguindo o apoio dos evangélicos para assumir a presidência do órgão, em maio de 2017. Os ruralistas nomearam os dois mais importantes diretores, de Administração e de Proteção Territorial, responsável pelas demarcações. Em pouco tempo, os representantes dos dois grupos voltaram a se engalfinhar. A nova crise foi resolvida com a saída de Franklimberg, em abril de 2018.
A solução encontrada pelo governo Bolsonaro para resolver a disputa de poder foi então o desmantelamento da Funai. O resultado é que os ruralistas passam a comandar agora toda a política fundiária do novo governo e a base evangélica no Congresso vai controlar as iniciativas de cunho assistencial destinadas aos índios. O retorno de Freitas ao comando da Funai com a gestão de Bolsonaro também garante a influência dos militares sobre a instituição.
A estrutura das Coordenações Regionais (CR) e das Coordenações Técnicas Locais (CTL) segue subordinada à Funai. Elas desempenham papel importante na gestão e proteção das TIs e no acesso do índios a documentos e benefícios sociais, por exemplo. Também apoiam a elaboração e implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental dessas áreas. Esses documentos preveem alternativas econômicas, instrumentos de fiscalização territorial e conservação, entre outros. O problema é que a política de promoção dos planos está agora sem paradeiro, por causa da extinção da Secretaria de Extrativismo do Ministério de Meio Ambiente (MMA), responsável pelo assunto até o ano passado.
As competências formais de proteger os direitos dos índios em geral e acompanhar ações de saúde para essas comunidades também foram transferidos da Justiça para a pasta dos Direitos Humanos, assim como o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI).
A reforma ministerial também incluiu entre as competências do Departamento de Estruturação Produtiva, da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Mapa, a coordenação de iniciativas de fomento à produção de comunidades tradicionais e ao agroextrativismo, até então alocadas na extinta Secretaria de Extrativismo do MMA. O problema é que entre as prerrogativas da nova secretaria do Mapa não há mais menção aos povos indígenas.
A deputada federal reeleita pelo DEM-MS, tornou-se presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) no início de 2018. Notabilizou-se por conduzir a comissão especial que aprovou, no mesmo ano, o Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, que facilita a venda e o uso de agrotóxicos no país. Por causa disso, foi apelidada por seus colegas de bancada de “musa do veneno”. Suas campanhas foram financiadas por grandes empresas do agronegócio, inclusive do ramo de agrotóxicos. Cristina defende a abertura das TIs à atividade agropecuária de escala e chegou a pedir ao ministro da Justiça a suspensão da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Segundo a Folha de S. Paulo, ela concedeu incentivos fiscais ao grupo JBS enquanto mantinha parceria com a empresa, em 2013, quando era secretária estadual de Desenvolvimento Agrário e Produção. Ainda de acordo com o jornal, a ministra recebeu doação de campanha de um acusado de matar um indígena em disputa de terra. A assessoria do Mapa não retornou os pedidos de entrevista com a deputada até o fechamento da reportagem.
É pastora e trabalhou como assessora de parlamentares evangélicos. Ficou conhecida nesse meio por sua militância contra a legalização do aborto e a educação sexual. Em sua primeira coletiva após ser anunciada ministra, reforçou a expectativa de que as demarcações devem ser mesmo relegadas pela administração Bolsonaro: “índio não é só terra", afirmou. O Ministério Público move ações contra uma organização fundada por Damares por usar índios Karitiana como atores de um filme que pretendia denunciar infanticídios. A prática não faz parte da tradição dos Karitiana. Conforme a edição da revista Época de hoje, Damares teria retirado uma criança indígena de sua família de forma ilegal.
Presidente licenciado da UDR, foi cotado para ministro, mas acabou em cargo menos graduado. É opositor histórico da formalização de TIs e quilombos. A UDR é uma organização conservadora nascida no final dos anos 1980 em reação ao movimento de trabalhadores rurais e camponeses. Hoje, é considerada pouco representativa mesmo por lideranças do setor agropecuário. O secretário defende o uso de armas contra ocupações de terra.
É advogada responsável por diversas ações judiciais contra demarcações. Sua família move uma ação para reaver terras na TI, Ñande Ru Marangatu, em Antônio João (MS). Ela estava na reunião, no sindicato rural local, que precedeu o ataque de proprietários rurais aos indígenas que haviam reocupado uma pequena fração da área, em 2015. O então deputado federal e atual ministro da Saúde, Luiz Mandetta, também estava na reunião. O ataque deixou dezenas de indígenas feridos e levou ao assassinato do índio Simião Vilhalva. Na época, o sindicato era chefiado pela mãe de Luana, Roseli Ruiz. Mesmo após o crime, Luana continuou defendendo o uso de armas para combater ocupações de terra. A reportagem entrou em contato, mas ela não quis dar entrevista (veja vídeos da advogada).
Foi indicada para a diretoria de Proteção Territorial da Funai pela bancada ruralista, mas exonerada após pedido do MJ para que deixasse o cargo, com base num ofício do MPF. Procuradores consideraram que havia "conflito de interesse e condutas incompatíveis à moralidade administrativa" em sua nomeação. Sua indicação a um cargo no Incra, portanto, desconsidera determinação do ministro Sérgio Moro. Azelene defende a agricultura de escala em TIs e é casada com o advogado Ubiratan de Souza Maia, condenado a devolver cerca de R$ 120 mil a comunidades indígenas de Santa Catarina pela prática ilegal de arrendamento nessas áreas.
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O que muda (ou sobra) para os índios com a reforma de Bolsonaro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU