17 Dezembro 2018
Embora com dificuldade a consciência eclesial em relação aos abusos do pessoal eclesiástico está transferindo o ponto central de observação e compartilhamento: do abusador ao abusado, do ator à vítima, da violência à pessoa. Uma passagem já rastreável nas diretrizes de muitos episcopados e muitas famílias religiosas. O espaço dado à escuta das vítimas não só no âmbito dos procedimentos, mas também em ocasiões litúrgicas, de assembleias de bispos, está sendo testemunhado por superiores e superioras.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 14-12-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A carta ao povo de Deus do papa Francisco de 20 de agosto de 2018 é a referência obrigatória. Mesmo o recente convite da União Internacional dos Superioras Maiores a todas as irmãs para não calar e encobrir os episódios de violência sexual (26 de novembro) mostra o esforço para levar a cabo uma purificação em todos os contextos culturais e em todas as latitudes.
Foram esboçadas competências, procedimentos, redes de relações que facilitam as denúncias, direcionando as curas dos atores e das vítimas, sugerem as rotas para um eventual retorno para os sacerdotes e religiosos. As relações entre os responsáveis eclesiais e a magistratura se diversificaram. Ainda são incertos os procedimentos para as indenizações. Contrastantes são as hipóteses sobre autoridades independentes.
A fórmula jornalística e mediatizada da 'tolerância zero' expressa melhor a vontade de não deixar qualquer espaço a nenhuma justificativa e encobrimento dos abusos, mas também exige ser especificada: nenhuma indulgência sobre fatos, mas uma necessária atenção e apoio aos atores. Um equilíbrio difícil cruza vivências e figuras eclesiais, e em especial o ministério presbiteral.
O primeiro impacto é sobre os bispos. Assim se expressou o bispo de Orléans, Mons. J. Blanquart, após o suicídio de um jovem padre acusado de comportamento irregular, "Como manter unida principalmente a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis com o respeito e o acompanhamento das pessoas que tiveram comportamentos inadequados?".
Em jogo está a sua imagem como responsável da diocese e de irmão dos presbíteros, a sua autoridade canônica e seu serviço de caridade, sua função de defensor e seu dever como denunciante. O bispo percebe de forma crescente a sua exposição, inclusive pessoal, frente a eventos do passado, enfrentados por outros e com diferente disposição. Como adverte as formas rudes de uma suspeita da população em relação aos presbíteros.
Os padres vivem de maneira dolorida as reiteradas denúncias dos coirmãos. Sentem-se culpados por êxitos não percebidos e não interrompidos antes. Sofrem a desconfiança não tanto de sua comunidade como do ambiente civil. Eles se questionam sobre o seu equilíbrio pessoal e sobre a maneira de viver (e propor) elementos não marginais da mensagem. O que significa, nesse contexto, o perdão e a salvação? O que quer dizer a Igreja como "sacramento fundamental de salvação"? Como celebrar assumindo para si as palavras de Jesus diante dos escândalos? Como estabelecer as normas da moral pessoal e como falar da sexualidade na visão cristã? A geração mais idosa lembra a convicção da assembleia conciliar sobre a Igreja como "perita em humanidade". Mais que especialista é serva, mais que serva é ferida, mais que mestra é discípula.
O conjunto da estrutura eclesial refere-se à "paternidade". O papa, os bispos, os padres são considerados "pais". Uma paternidade espiritual, muitas vezes experimentada em sua beleza e veracidade. Os abusos a sacodem, até denunciá-la como intolerável incesto. E abrem o tema correlacionado da feminilidade.
As mulheres que estão ausentes nas estruturas de governo estão muito presentes na vivência das comunidades cristãs. Elas são excluídas da formação presbiteral e dos papeis de gestão, enquanto os processos civis e culturais seguem na direção oposta. Não é por acaso que tanto nos EUA como em alguns países europeus as únicas vozes com credibilidade nos debates sobre os abusos são aquelas das freiras e das mulheres. Não só porque elas são eventualmente vítimas, mas principalmente porque não carregam as ambiguidades e as contradições da instituição.
Protagonistas involuntárias também as comunidades cristãs. Vítimas indiretas de comportamento censuráveis manifestam muitas vezes incredulidade, dor e impotência. As informações sempre chegam depois. Não estão envolvidas na escuta das vítimas, elas não têm meios e formas de acompanhamento dos seus presbíteros, mesmo quando percebem as limitações e possíveis ambiguidades. Nem sequer se sabe como informá-las evitando a difusão confusa da mídia e da opinião pública.
Finalmente, dois elementos em que os danos colaterais poderiam se revelar de mais longo prazo: a consciência presbiteral e o choque de culturas. Há uma abundância de dados estatísticos para sinalizar a crise numérica do clero e dos religiosos no Ocidente. O clima induzido pela ênfase midiática sobre os abusos levou alguns bispos a falar de "clerofobia."
Em muitos países ocidentais é uma experiência comum sentir desconfiança e suspeita contra aqueles que carregam os sinais de seu pertencimento presbiteral. Um papel já difícil torna-se sistematicamente suspeito. O efeito possível é o do desalento e perda. Uma freira com longa experiência e que desempenha um papel importante na vida da Igreja me dizia: "Se os padres internalizar mal a atual situação, se confiam ao medo a única reação, se não percebem a dimensão de graça dessas passagens, o que vai acontecer à nossa Igreja? A reforma evangélica da comunidade passa inexoravelmente em medida significativa através de suas mãos. Não conseguiremos realiza-la sem eles."
Mas há um segundo problema no horizonte: a difícil integração de culturas em nível mundial. Para as Igrejas da África e da Ásia não é imediato compartilhar a prioridade reconhecida no Ocidente para a proteção dos menores e ao conjunto das instrumentações jurídicas construídas a respeito. O feminismo radical, a idolatria da criança, a entrega à magistratura civis não são elementos de fácil consenso. A avaliação compartilhada da gravidade do mal é diferentemente posicionada nas culturas civis de pertencimento.
Esse é o maior desafio que aguarda o programado encontro em Roma sobre "A proteção dos menores na Igreja", de 21-24 fevereiro de 2019, para a qual foram convocados todos os presidentes das conferências episcopais nacionais. Em 23 de novembro, foram anunciados os membros da comissão organizadora: os cardeais Blase J. Cupich (Chicago, EUA) e Oswald Gracias (Bombaim, Índia), monsenhor Charles Scicluna (Secretário da Congregação da Doutrina da Fé e o homem de referência para a questão), pe. Hans Zollner (Presidente do Centro para a Proteção dos menores da Universidade Gregoriana, referente do Comitê), com o envolvimento de Gabrielle Gambino e Linda Ghisoni (Dicastério dos laicos e Pontifícia Comissão para a Proteção dos menores). O que vai acontecer na assembleia constituirá uma experiência rara e um momento delicado da sinodalidade eclesial.
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Abusos - danos colaterais e desafios imprevistos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU