20 Novembro 2018
É sempre uma sugestiva experiência de inteligência, muitas vezes variegada de ironia e sagacidade, seguir Paola Mastrocola nas reflexões sobre as obras e os dias do nosso tempo que apresenta em suas "notinhas" do "Domenicale". Ainda mais intensas são as histórias, alimentadas também por sua experiência didática, oferecidas por seus romances, começando (para mim) por aquele do Barca nel bosco (barco no bosque), com o melancólico embora animado retrato do garoto "latinista" amargamente frustrado por um segundo grau tão aguardado e tão decepcionante. Mas é a recente obra da escritora de Turim, publicada pela Einaudi, que eu gostaria de evocar, não certamente para uma crítica (que não me compete), mas para o sujeito surpreendente que assume a trama, ou seja, a oração.
O comentário é de Gianfranco Ravasi, publicado por Il Sole 24 Ore, 18-11-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
De fato Leone, garotinho frágil de seis anos protagonista do livro desde o título, configura-se progressivamente como o retrato do perfeito sujeito que reza, mesmo nas características de sua personalidade tão germinal embora de viés cristão tão maduro. Nele, sem hesitação, podemos ver encarnado o ditado de Cristo: "Se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus."(Mateus 18,3-4).
Se quisermos ficar na tradição judaica, a esse menino imerso no vazio humano e espiritual de sua família um pouco torta (excluindo a sua verdadeira 'mestra' e mãe de fé, a avó) seria aplicável a definição que era dada ao rei Davi, considerado o autor dos 150 salmos bíblicos: "ele não dizia orações, ele mesmo era uma oração".
E é por isso que o pequeno Leone irradia a respiração contagiosa da oração, tanto que em torno dele, em sua pequena casa, uma multidão se aglomera: "rezavam e naquelas orações encontravam a paz". Mas, para voltar a Davi - "aquele... foi o régio cantor do Espírito Santo..., sumo cantor do sumo guia", como Dante o exalta no Paraíso (xx, 37-38; xxv, 72) por causa da atribuição fictícia a ele do inteiro Saltério - nós gostaríamos de propor aquele grande compartilhamento da oração judaica e cristã, ainda hoje fundamental, constituída pelos Salmos. No original hebraico esses cantos de oração, suspensos entre as alturas da contemplação divina e da poeira e até mesmo a lama das misérias, dos sofrimentos e das culpas humanas, assomam 19.531 palavras, o terceiro livro do antigo testamento por amplitude depois daquele do profeta Jeremias e do Genesis.
Precisamente por causa de seu gênero literário que entrelaça em si culto e poesia, oração e vida, espiritualidade e música, fé e lírica, é necessário, para poder desfrutar do Saltério, ter um guia policrômico que compreenda a análise filosófica e o aprofundamento teológico, mas que também seja capaz de permitir que exale o perfume do canto, bem como desencavar suas raízes humanas feitas de risos e lágrimas, de eventos históricos nacionais e de situações pessoais nem sempre exaltantes. É isso o que soube alcançar com seu comentário imponente, mas construído de explicações suaves e fascinantes, Ludwig Monti, monge da conhecida comunidade de Bose, que este ano comemora seus cinquenta anos de história. A leitura é, sim, conduzida por ele com toda a instrumentação exegética e com um invejável aparato cultural. No entanto, aquelas 150 composições são, acima de tudo, oração, "um canto de oração para cada dia e para todos os dias", como sugeria o filósofo místico Abraham J. Heschel.
E é por isso que - na linha do pequeno Leone – que elas aspiram tornar-se fé e carne, espiritualidade e humanidade. Como o protagonista do romance de Mastrocola que reza também pela mãe doente de um colega ou pela vitória esportiva de seu time de escola, assim os Salmos bíblicos levam a Deus não só a alta contemplação da criação como palimpsesto de sua mensagem, mas registram também um ataque de febre que faz os ossos tremerem ou uma inapetência que torna a comida com gosto de cinzas ou a amargura de uma derrota de Israel. É, portanto - como explica Monti orientando o leitor nos versos das súplicas ou dos hinos, das meditações ou dos salmos de confissões - todo o ser humano que reza, é a respiração da alma, tão necessária como a da garganta (curiosamente, em hebraico "alma" e "garganta" são expressas com uma única palavra, nefesh) para não morrer, como declarava Kierkegaard.
Mas o crente, cantando o Saltério, percebe ter ao seu lado não só a humanidade e o povo bíblico, mas também Cristo e, com ele, a Igreja, que desde sempre canta em sua liturgia justamente esses cantos. Se quisermos usar uma palavra deslumbrante adotada por Teilhard de Chardin, poderíamos dizer que, através do comentário de Monti, se consegue não só a teofania, ou seja, a revelação do divino presente naqueles cantos, mas também a "diafania", ou seja, a transparência do humano. É por isso que uma testemunha insuspeita como Nietzsche afirmava que "entre o que nós sentimos na leitura de Píndaro e Petrarca e a leitura dos Salmos existe a mesma diferença que entre uma terra estrangeira e a terra natal."
E uma vez que abrimos uma fresta no horizonte luminoso - ainda assim percorrido pelos arrepios da escuridão – da oração, também adicionamos um livrinho essencial, escrito por outro importante exegeta, o suíço Daniel Marguerat. O título ecoa um dos lemas tradicionais que mesmo aqueles que já não são mais crentes ainda têm no ouvido, se em sua adolescência frequentaram alguma escola católica: A oração vai salvar o mundo, ditado similar ao mais inflamado: "Quem reza se salva; quem não reza é condenado". Na verdade, é somente Deus que pode redimir essa estropiada história humana, mas - como o autor observa - "é justo que o mundo deseje ser salvo e orar é deixar que Deus venha a nós e opere em nós a salvação." Da mesma forma, é curioso que na Bíblia, que deveria ser por excelência "palavra de Deus", existam os Salmos, que são justamente invocações humanas, tão humanos – como ressalta Marguerat – que chegam a explodir em sentimentos incendiárias de raiva.
Nas palavras do teólogo mártir do nazismo Dietrich Bonhoeffer, aquelas do Saltério são as palavras que Deus deseja ouvir de nós em total liberdade e sinceridade, um pouco como Jó, cujo grito é, na verdade, de oração, e Lutero nesse ponto não hesitava em afirmar que Deus aprecia mais o grito até blasfemo do homem desesperado do que os louvores sóbrios do pacato devoto das manhãs de domingo durante o culto. Marguerat diz muito mais em suas poucas páginas a partir de um intenso comentário sobre a suprema oração do cristão, o Pai nosso, na consciência de que "rezar nos transforma". Wittgenstein garantia que "rezar é pensar sobre o sentido da vida", e os Salmos e Pai nosso são uma confirmação clara disso.
Ludwig Monti, I Salmi: preghiera e vita, Qiqajon, Bose (Biella), pp 1890, € 60
Daniel Marguerat, La preghiera salverà il mondo, Claudiana, Torino, pp. 80, €10
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