05 Novembro 2018
Adepta do Escola sem Partido, futura gestão cogita revisionismo sobre a ditadura, além de incentivar vigilância a professores para “expurgar Paulo Freire das escolas.
A reportagem é de Breiller Pires, publicada por El País, 05-11-2018.
Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.
Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.
Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. “Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático”, prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).
Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.
De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta “doutrinação ideológica” têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.
Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.
O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explicita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”
Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.
Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências.
“Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.
Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp.
“Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.
Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”
Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”
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No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.
Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
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Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU