08 Agosto 2018
“O recurso à droga, longe de ter um significado contestatório e revolucionário, é caracterizado, em vez disso, por uma forma de adaptação aos parâmetros da cultura dominante. Os ‘baseados’ não são mais considerados desviantes; tornaram-se totalmente normais e são consumidos em contextos recreativos, com o envolvimento de uma área cada vez mais extensa de jovens, até porque se abriu caminho para a convicção de que a cannabis é pouco arriscada e de que, portanto, é uma substância que pode ser provada tranquilamente.”
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, n. 15, 01-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Gerou grande repercussão no fim de junho passado a intervenção do Conselho Superior de Saúde (CSS) italiano, que pôs em discussão a norma contida na lei 242 de 2016, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2017, que concede a possibilidade de venda de produtos à base de cannabis no respeito do teto fixado para a dose de THC contida.
O alerta lançado pelo Conselho de Saúde se baseia na convicção de que a maconha light, embora contendo uma dose muito baixa do princípio ativo – entre 0,2% e 0,6%, enquanto o ilegal é de pelo menos 20 vezes mais –, seria, em todo o caso, nociva à saúde.
A reação a esse posicionamento foi imediata, tanto por parte dos movimentos libertários – a Associação Luca Coscioni, em primeiro lugar – quanto por parte dos mais de mil produtores de cânhamo light e das 600 lojas “green”, nascidas na Itália a partir de janeiro de 2017, com um volume de negócios de cerca de 44 milhões de euros, que, aliás, está em constante crescimento.
A motivação ideal daqueles que viam em tal posição um grave atentado ao reconhecimento da livre circulação das drogas leves com o retorno à clandestinidade era acompanhada por uma motivação mais interessada, a daqueles que se lamentavam do risco de pesadas perdas financeiras para aqueles que tinham empreendido a venda de tais drogas, oficialmente permitida.
Para chegar a uma avaliação correta das posições opostas que se manifestaram a esse respeito, especialmente nas últimas décadas – há aqueles que são favoráveis de um regime proibicionista e repressivo, e aqueles que, pelo contrário, fazem-se paladinos de uma liberalização total – é importante, acima de tudo, fazer as contas com os dados sobre o consumo de estupefacientes que caracterizou os últimos anos na Itália.
Quase simultaneamente com a intervenção do Conselho Superior de Saúde, foi apresentado em Roma um Libro Bianco sulle Droghe [Livro Branco sobre as Drogas], organizado por três associações – além do já lembrada Luca Coscioni, também a Antigone e o Grupo Abel – que traça um quadro preocupante da situação.
O que levanta tal preocupação não é apenas a duplicação do consumo, mas também e principalmente o seu aumento no âmbito do mundo dos menores, em primeiro lugar o uso de derivados da cannabis – 80%, ou seja, oito em cada dez – seguido da cocaína (14%) e da heroína (5%). A Itália tornou-se, assim, o terceiro país na Europa em consumo de cannabis – precedida apenas pela França e pela Dinamarca –; e até mesmo o segundo, se levarmos em consideração a faixa etária de 15 a 34 anos, e o quarto em uso de cocaína, precedido apenas pelo Reino Unido, Espanha e Irlanda.
Deve-se acrescentar que um quarto da população carcerária é caracterizada hoje na Itália por sujeitos imputados de porte de drogas para fins de tráfico.
Impressiona (e não pode deixar de ser mais um motivo de apreensão) a mudança das motivações do recurso à droga, especialmente por parte dos jovens. De fato, enquanto os jovens dos anos 1970 – ressalta o Pe. Antonio Mazzi que trabalha há muito tempo no campo da prevenção e da reabilitação – “se drogavam por causa de um desconforto, hoje, porque deve ser carnaval todos os dias. A droga se tornou sinônimo de diversão” (cf. La Stampa, 26 de junho de 2018, p. 3).
A passagem da motivação de ontem à de hoje não é irrelevante: ela denuncia uma mutação cultural, uma verdadeira revolução epocal de grande porte para o destino da família humana.
O desconforto do passado, que estava ligado ao conflito com as instituições tradicionais e, mais radicalmente, contra toda forma de autoridade – eram os anos da contestação estudantil e operária –, conferia ao consumo da droga um significado revolucionário ou expressava a insatisfação decorrente do confronto com as figuras do poder dominante – das parentais às autoridades sociais e políticas – que eram consideradas como um sério impedimento ao processo de libertação ansiado.
A virada, ocorrida nas últimas décadas, apresenta características não apenas diferentes, mas até mesmo opostas. O recurso à droga, longe de ter um significado contestatório e revolucionário, é caracterizado, em vez disso, por uma forma de adaptação aos parâmetros da cultura dominante. Os “baseados” não são mais considerados desviantes; tornaram-se totalmente normais e são consumidos em contextos recreativos, com o envolvimento – como se disse – de uma área cada vez mais extensa de jovens, até porque se abriu caminho para a convicção de que a cannabis é pouco arriscada e de que, portanto, é uma substância que pode ser provada tranquilamente.
A mudança de perspectiva, isto é, o uso recreativo, também é a razão da multiplicação dos poliabusos – álcool, cocaína e heroína – que se tornaram, de fato, a norma, com graves consequências que podem ser facilmente intuídas.
A liberação moral da droga – das várias drogas – já é fato, um fator constitutivo do costume em voga. O que contribui com o desenvolvimento dessa atitude é, por um lado, o sistema da informação – filmes e séries televisivas muitas vezes apresentam o recurso à droga como normal – e, por outro, a tendência generalizada de negar o risco decorrente do uso de drogas por parte de grupos de pressão (às vezes até mesmo de especialistas) que empurram na direção da sua liberalização.
Desse modo, abre caminho uma atitude permissiva – também contribui com isso a utilização da internet, da qual muitos jovens extraem as suas informações – que alimenta um senso generalizado de irresponsabilidade.
A questão crucial, além da avaliação moral, que assume conotações mais negativas do que no passado, por causa – como se viu – de motivações para o recurso à droga muito mais fúteis, é a definição do modelo de ação que o Estado deve assumir para debelar o fenômeno.
O dilema é entre aqueles que propõem a manutenção de um sistema proibicionista, talvez com um maior endurecimento das penas, especialmente para aqueles que traficam, e aqueles que acreditam que o melhor caminho é o da legalização – obviamente das drogas leves – sob o direto controle do Estado. Ambas as opções sobre a mesa gozam razões plausíveis a seu favor, que, desse modo, dificultam a escolha.
No primeiro caso – o do regime proibicionista – o princípio da precaução é posto em causa. A intervenção do Conselho Superior de Saúde, mencionada no início, ao pedir que se pare a venda da maconha light, remete a tal princípio, enfatizando o fato de que, antes de pôr no mercado algo que pode fazer mal, é preciso demonstrar a sua inocuidade.
A periculosidade da droga, não excluindo a leve, também foi confirmada por uma intervenção publicada em maio passado no International Journal of Drug Policy, no qual se demonstrava que o uso da maconha, mesmo em baixas concentrações, está associado a sintomas depressivos e psicossomáticos, assim como a perigos para dirigir, obesidade e baixo desempenho escolar.
Quem defende a tese da proibição absoluta, além disso, não deixa de destacar que o risco deve ser avaliado também em relação a condições específicas – em primeiro lugar, a idade –, não subestimando o fato de que encontrar a droga ao alcance das mãos é um convite e não negligenciando a consideração de que a liberação das drogas leves pode se tornar o prelúdio da liberação de outras substâncias muito mais prejudiciais.
No segundo caso – o da legalização – insiste-se no limite e na ineficácia das políticas repressivas, evocando o princípio da redução do dano ou, segundo uma versão análoga, do mal menor.
Em apoio a tal posição evidenciam-se as consequências negativas do regime proibicionista, que vão desde a disseminação de um mercado clandestino e ilegal, com enormes lucros especialmente para setores ligados à criminalidade e ao poder das máfias, à total ausência de controles sanitários e, por isso, à possibilidade de que sejam postos à venda produtos pouco garantidos, até o consistente aumento da detenção por violação do artigo 73 da lei relativa ao tráfico de estupefacientes, com a consequente superlotação carcerária, que hoje é um dos problemas mais graves da Itália.
Note-se, além disso, como estão ausentes na Itália, infelizmente, políticas públicas de redução do dano presentes em outros Estados europeus, como as salas de consumo ou os serviços de consultoria para um uso mais seguro, que ofereceriam uma importante garantia de contenção dos riscos no caso da legalização.
Como já se observou, não é fácil tomar uma posição clara em favor de uma ou outra das hipóteses delineadas. A solução talvez deva ser buscada de modo pragmático – essa é a linha de conduta que sentimos que devemos sugerir – por meio de uma atenta verificação das consequências que as duas tipologias de intervenção produziram.
O fato de subsistirem políticas diferentes nos países europeus a esse respeito, praticadas há muitos anos já, permite que se faça um balanço do que aconteceu graças à adoção dos dois sistemas mencionados, garantindo a possibilidade de um julgamento o máximo possível objetivo em relação à intenção de debelar o recurso à droga, reduzindo o seu uso.
O apelo ao modelo weberiano da ética da responsabilidade, focada justamente na medição das consequências da ação, parece ser o caminho a percorrer, se se pretende sair de preconceitos ideológicos e enfrentar a questão na sua concretude real.
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Drogas leves: repressão ou liberação? Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU