07 Agosto 2018
“Metz me ensinou que os cristãos esperam uma revolução mais radical, para além de todos os experimentos históricos que fracassaram ou dos que só restaram fragmentos. Uma revolução que inclui as vítimas, que morreram uma morte prematura, sem sentido e injusta. Somente quem não nega a solidariedade aos mortos, às vítimas e aos vencidos, pode lutar por um futuro verdadeiramente mais humano e mais justo, sem cair sempre de novo nos velhos círculos viciosos”, escreve a teóloga Marta Zechmeister, homenageando os 90 anos do teólogo Johann Baptist Metz, em artigo publicado por Religión Digital, 05-08-2018. A tradução é do Cepat.
Há encontros dos quais uma não se escapa sem ser afetada, deixam sua existência marcada para sempre e determinam o rumo de todo o vindouro da vida. O fato de Johann Baptist Metz, em 1994, após sua aposentadoria pela Universidade de Münster, ter aceitado o convite como catedrático visitante em Viena, deu uma virada radical em minha vida. Nele encontrei meu mestre mais importante, que me catapultou fora de minha inocuidade piedosa e me lançou para uma apaixonante aventura com um Deus que antes não conhecia.
Naquele momento, estava trabalhando em minha tese de habilitação sobre a teologia de Erich Przywara. Estava quase jogando a toalha quando Baptist se ocupou de mim, com diálogos crítico-maiêuticos. Ajudou-me a encontrar o fio condutor na obra monolítica de Przywara: o tema da não-identidade que dinamita qualquer tentativa de encaixar a realidade em um sistema: o tema da alteridade do outro que denuncia qualquer dominação, exploração ou usurpação não só como escândalo, mas também como negação de Deus; e em tudo sempre o mistério de Deus que não fulgura primordialmente lá onde tudo se encaixa e se revolve em harmonia, mas, ao contrário, se faz perceptível no grito: no grito do abismo, da catástrofe, das trevas que parecem a negação feroz de Deus.
Estes diálogos resgataram minha incorporação no corpo docente da Universidade de Viena e me abriram um mundo intelectual que não conhecia antes, ou somente conhecia muito superficialmente: Benjamin, Adorno, Levinas, para mencionar o mais importante. Mas, mais que tudo, deram-me um amigo que me ajudou a encontrar o fio condutor, não somente de um trabalho acadêmico, mas de minha própria biografia. Naquele momento, já havia gastado minhas ilusões juvenis como religiosa e estava em risco de evadir de modo frustrado e amargo.
Contudo, Baptist me seduziu a me aventurar mais uma vez com as grandes palavras que determinaram, em seu dia, meu “primeiro amor” e que, naquele momento, desejava descartar como palavreado piedoso, sem sentido e sabor: a palavra que fala da radicalidade do seguimento de Cristo e dos conselhos evangélicos, de pobreza, castidade e obediência. Para além da introversão piedosa e acomodada, ajudou-me a descobrir a mística de Jesus, sua paixão por Deus, rebelde e resistente.
Que “Cristo deve ser sempre pensado de tal modo que nunca seja apenas pensado”, que não tenho nenhuma ideia de Deus e de seu Cristo, se antes não me coloco em marcha para seguir esse caminho conforme ele próprio é; e – pode soar muito ingênuo – antes que não me arrisco a fazer o mesmo que Jesus fez. Tudo isso me espantou e no sentido literal me lançou para o outro lado do mundo. Aterrissei em El Salvador, na terra de Óscar Romero, e na universidade na qual em 1989 assassinaram seis jesuítas e duas mulheres que trabalhavam com eles.
Para mim, “o pulgarcito da América” resultará Terra Santa, onde me deparei de uma maneira inesperada e real com o drama de Jesus: homens e mulheres, que assim como o homem de Nazaré se colocaram de uma maneira incondicional ao lado dos mais vulneráveis; que assim como ele desmascararam e desafiaram “os poderes da morte”; e por isso, por fim, sofreram a mesma sorte. Assim como Jesus foram liquidados brutalmente. Deparei-me de uma maneira direta e concreta com as “histórias perigosas do seguimento”, com esse “conhecimento prático” que segundo Metz é a verdadeira fonte de qualquer teologia séria.
Enquanto isso, passaram-se vinte anos, inculturei-me na teologia latino-americana, aprendi a apreciar os textos de Óscar Romero e a teologia de Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino. Não obstante, ainda me sustenta o cantus firmus dos temas essenciais de Metz e quanto mais velha fico, mais agradecida estou por isso. Descubro sempre novas variantes da obra de Metz, em sintonia com os grandes pensadores da América Latina, mas mais ainda nas experiências que este país me impõe.
El Salvador me confronta com situações que remexem as entranhas e doem até a medula dos ossos: com a dor das vítimas de uma escalada de violência e repressão que parece o “eterno retorno do mesmo”, sem saída. Parece que há uma linha direta das multitudinárias vítimas dos massacres da guerra civil, no rio Sumpul, no povoado El Mozote e em muitos outros lugares com as não menos numeráveis vítimas de hoje, das gangues juvenis e das “políticas de segurança” do Estado, tão repressivo como ineficaz.
Se alguém se apega a El Salvador, se faz amigos entre sua gente, se revelará neste encontro toda a miséria de um mundo destroçado por uma desigualdade escandalosa. No entanto, justamente em meio a estas situações mortais também se depara com o florescer de uma dimensão de humanidade – um amor desinteressado e lutador, bondade e generosidade, uma “santidade primordial” e pureza de coração – que as “zonas de conforto” deste mundo não conhecem.
“Não existe nenhum Deus que se pode adorar nas costas da história do sofrimento do mundo”. Comecei a entender este axioma de Metz, com todo o seu rigor, em El Salvador. E também que qualquer teologia começa com um ato de contemplação. Ao menos qualquer teologia que mereça ser reconhecida como um falar sério do Deus de Jesus, inicia com a “mística dos olhos abertos”, com o valor de olhar atentamente, também nestes lugares e nestes momentos, quando o impulso natural é fazer vista grossa, fechar os olhos o mais rápido possível.
Em um país com uma das taxas de homicídios mais altas do mundo isso é um verdadeiro desafio. Metz me ensinou que o discurso teológico se perverte em um palavreado piedoso, caso não nasça sempre de novo do sentir com as vítimas, do se deixar afetar e ferir pela dor dos crucificados. “Quem diz Deus no sentido de Jesus aceita a ferida das próprias certezas pela desdita dos outros”.
Como mulher jovem, senti uma enorme libertação quando captei, no diálogo com Baptist, que a obediência segundo o evangelho não significa me subordinar ao sistema, nem ao sistema eclesial, ou me mostrar como filha dócil frente às autoridades. Pouco a pouco, entendi que, muito mais, a obediência evangélica exige realizar arriscadamente com insistência e tenacidade a “vontade de Deus”, que se revela no encontro com o sofrimento alheio.
Em El Salvador começa a apurar, pouco a pouco, toda a transcendência dessa intuição de Metz, que culmina na palavra da “autoridade dos que sofrem”. Não se trata, neste contexto, da autodeterminação emancipada, mas muito mais de se submeter sem chiar à instância que representa toda a autoridade de Deus. “A vontade de Deus” tem corpo e visibilidade nos vulneráveis, nos impotentes, nas vítimas. Eles são a instância que determina o imperativo do que é necessário fazer.
A contemplação, “ver a Deus”, impele para a práxis, uma práxis que inclui a dimensão política. E apesar de ser tão propensa ao erro, estou convencida, tal “theo-práxis” em sua contingência é indispensável para este tipo de teologia que Metz exige: uma teologia que não se contenta em elucidar e pontificar, ao contrário, uma teologia que tem o valor de se arriscar na história. De qualquer modo, tal práxis é mais próxima a Jesus que uma ortodoxia a-histórica. Ele se preocupou, no “fim do mundo”, por alguns fisicamente e psiquicamente enfermos e celebrou festinhas humildes com os que não têm nem perspectiva, nem esperança.
A práxis jesuânica luta para que os marginalizados e descartados se tornem sujeitos de seu próprio destino e deixem de ser objetos das “autoridades e potestades” que dominam este mundo. Esta práxis, muitas vezes, não parece ser mais que um gesto frágil, não obstante, nela se decide a divindade do Deus de Jesus, do Deus da misericórdia e do amor compassivo.
“Quanto tempo mais temos que suportar tudo isso?”, geme uma mulher que vive nas margens da capital San Salvador, em um bairro flagelado tanto pela violência das gangues, como pelos abusos arbitrários dos policiais e militares repressivos. Surge um grito pungente destas situações, um grito para que a loucura termine, que por fim se pare o círculo vicioso que incessantemente sempre novamente aterra e envolve as vítimas indefesas. Com o tempo avançado de minha vida, sempre me fica mais manifesto que não há outro modo de falar de Deus a não ser esperá-lo e reivindicá-lo como “irrupção”, como “final redentor do tempo”.
No dia 14 de maio de 1980, no rio Sumpul, na fronteira com Honduras, 500 camponeses indefesos foram metralhados entre os militares salvadorenhos e hondurenhos. As testemunhas perceberam o horror, quando de longe notaram uma nuvem negra, um acúmulo inexplicável de abutres acima do rio. É esta imagem a que me inculca dolorosamente como é frívolo e desumano uma esperança que promete à geração de hoje e de amanhã um futuro mais humano e não se preocupa com estes para quem qualquer promessa já vem tarde.
Metz me ensinou que os cristãos esperam uma revolução mais radical, para além de todos os experimentos históricos que fracassaram ou dos que só restaram fragmentos. Uma revolução que inclui as vítimas, que morreram uma morte prematura, sem sentido e injusta. Somente quem não nega a solidariedade aos mortos, às vítimas e aos vencidos, pode lutar por um futuro verdadeiramente mais humano e mais justo, sem cair sempre de novo nos velhos círculos viciosos.
Muitas vezes, um pudor raro nos impede de expressar as coisas essenciais da vida. Nesta ocasião, quero agradecer e dizer a um amigo que sem ele nunca seria a mulher que sou hoje, que foram seus impulsos os que me deixaram encontrar o “tesouro no campo” e a “pérola preciosa”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os cristãos esperam uma revolução que inclua as vítimas”. O ensino de Johann Baptist Metz, teólogo alemão, 90 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU