21 Junho 2018
Em ação que revoltou moradores, jovem de 14 anos a caminho da escola morreu após levar tiro na barriga. Segundo locais, Polícia Civil usou aeronave blindada para atirar. Corporação não comenta.
A reportagem é de Felipe Betim, publicada por El País, 21-06-2018.
O Rio de Janeiro, sob intervenção federal desde fevereiro, contabilizou ao longo desta quarta-feira ao menos oito pessoas mortas durante duas operações policiais, ambas deflagradas de manhã no morro Pavão-Pavãozinho e no complexo de favelas da Maré. A ação mais sangrenta ocorreu na Maré, nas comunidades Vila do Pinheiro e Vila do João, onde um total de sete pessoas morreram. O adolescente Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, estava a caminho da escola quando levou um tiro na barriga. Ele não resistiu aos ferimentos e faleceu nesta noite no hospital. Os outros seis mortos ainda não foram identificados, mas a Polícia Civil garante que se tratavam de pessoas suspeitas. Em vídeos compartilhados nas redes sociais, é possível ver helicópteros da Polícia Civil fazendo voos rasantes sobre o território, causando pânico entre moradores. Também é possível escutar tiros sendo disparados, mas nos vídeos não fica claro quem são os autores. Moradores e organizações que atuam na área asseguram, contudo, que policiais estavam atirando do helicóptero contra alvos no solo.
Blindados do Exército entram na Maré, nesta quarta. | Foto: Redes da Maré
A operação na Maré, na Zona Norte da cidade, começou por volta de 9h da manhã e contou com cerca de uma centena policiais civis, militares do Exército — que entraram na favela com blindados — e agentes da Força Nacional. A operação era dirigida contra o tráfico de drogas da região e, segundo a Polícia Civil, tinha como objetivo cumprir 23 mandados de prisão, além de checar informações obtidas por meio do setor de inteligência. O objetivo principal era encontrar os suspeitos de terem assassinado em Acari, também na Zona Norte, o inspetor Ellery de Ramos Lemos, chefe de investigações da Delegacia de Combate às Drogas (DCOD) — ele morreu com um tiro na cabeça no dia 12 de junho durante uma operação no local. Investigações apontavam para suspeitos escondidos na Maré. Ainda segundo a corporação, agentes foram recebidos a tiros durante o cumprimento de mandados em duas residências. Seis rapazes, ainda não identificados, já chegaram ao hospital sem vida. Não ficou claro em que circunstâncias foram baleados.
Questionada pelo El País, a Polícia Civil tampouco deixou claro se entre os mortos estava o suspeito de ter matado o inspetor Ellery de Ramos Lemos. O delegado da Polícia Civil Marcus Amim, que também é comentaria do programa SBT Rio, declarou, após a morte de Lemos, que sua corporação iria "caçar" os responsáveis. "Todos os envolvidos de Acari hoje são inimigos da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Nós vamos caçar vocês onde quer que estejam. Não adianta colocar no Facebook que criança foi baleada... Mentira. Não adianta, você não vão conseguir tirar a gente aí de dentro. Nós vamos a qualquer horário, não tem horário pra gente", disse ele, durante o programa. E prometeu: "Nada vai impedir o nosso encontro. E se vocês resistirem a nossa ação, nós vamos manchar o ambiente com o sangue sujo de vocês. Não ousem nos enfrentar, porque nós vamos as ultimas consequências".
Além dos seis rapazes mortos, outra vítima da operação foi Marcos Vinicius da Silva, um adolescente de 14 anos. Ele levou um tiro na barriga quando estava a caminho da escola, segundo confirmou ao EL PAÍS a ONG Redes da Maré. Os pais do jovem contaram que ele havia acordado atrasado, por volta das 8h, e que por isso ainda estava à caminho da escola — o Ciep Operário Vicente Mariano — quando o tiroteio começou. Ele foi levado para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e, em seguida, para o Hospital Getúlio Vargas, onde passou por uma cirurgia para retirar o baço. Ficou internado no Centro de Tratamento Intensivo (CTI), com a previsão de passar por outra operação na sexta-feira. Mas ele não resistiu aos ferimentos e morreu na noite desta quarta.
Marcos Vinicius da Silva | foto: Reprodução
Moradores desde cedo relatavam nas redes sociais o pânico gerado pela operação na Maré. Há vídeos que mostram helicópteros fazendo voos rasantes na favela, o que por si só representa um perigo, já que existe um risco considerável de ser atingido por tiros e cair em cima de casas e pessoas, segundo especialistas. Além disso, moradores denunciavam que policiais efetuavam tiros estando dentro da aeronave. "Muito tiro na Vila do Pinheiro, Vila do João, Conjunto Esperança... tá lombradão!! Caveirão terrestre e aéreo largando o aço. Atividade geral. Como estamos pessoal? Cuidado especial pra quem mora em casa de telha. Muitos tiros de cima", dizia a página no Facebook Maré Vive, um canal de mídia comunitário.
"É inaceitável e repugnante ver um helicóptero atirando em uma comunidade cheia de pessoas inocentes que não tem nada a ver com a violência que ocorre diariamente nas comunidades do Rio", disse o diretor da organização Luta Pela Paz, Luke Downdney Downdney, também nas redes sociais. Por sua vez, o Observatório da Intervenção Federal, vinculado ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes, publicou a seguinte mensagem em seu perfil no Facebook: "Até em guerras a ONU condena as forças que colocam em risco a vida de civis. Como os generais da intervenção autorizam o caveirão voador atirando sobre a Maré?". A Defensoria Púbica do Estado do Rio de Janeiro pediu à Justiça, em caráter liminar, que disparos a partir de helicópteros da polícia sejam proibidos, segundo noticiou a Agência Brasil. A Polícia Civil nem confirma e nem desmente a denúncia de que tiros foram disparados por agentes de um helicóptero. Questionada pelo EL PAÍS em duas ocasiões, a corporação ignorou a pergunta.
Bruna, mãe do adolescente Marcos Vinicius da Silva, segura camisa da escola que o estudante usava. | Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
Em outro vídeo, crianças se agacham no corredor de uma escola municipal da Maré para se proteger dos tiros. Fátima Barros, coordenadora da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), disse que as aulas não foram suspensas com o tiroteio, mas que o secretário municipal de Educação, Cesar Benjamin, solicitou que a operação fosse cancelada devido ao horário em que estava sendo realizada. "Tínhamos alunos, professores e funcionários dentro das escolas. Houve pânico pela forma que a operação foi feita", disse ela.
Em entrevista ao jornal O Globo, uma professora de uma escola contou ter orientado os alunos a deitarem no chão, no fundo da sala, para se protegerem, uma vez que as paredes de drywall não são resistentes a tiros. "Quando começou, os policiais atiravam do alto do helicóptero, que sobrevoava a região bem baixo, e os bandidos revidavam de baixo. Foram mais ou menos uns cinco ou seis rasantes da aeronave. Como se ela fosse e voltasse. E, toda vez que isso acontecia, eles atiravam do alto, e os bandidos revidavam", relatou ao jornal carioca.
Ela contou ainda que muitos alunos, todos assustados, perguntavam por suas mães e avós, com medo de que estivessem a caminho da escola para buscá-los e acabassem baleadas. "Os tiros soavam muito alto dentro da sala de aula. Eles ficaram o tempo todo deitados no chão, juntinhos, chorando muito. Ficam em pânico com o pai que trabalha na rua, o irmão que estuda na escola ao lado. Já passamos por situações bem complicadas, mas há cerca de três meses não acontecia nada. O combinado é que as operações têm que ser bem cedo para não colocar em risco quem trabalha ou estuda", contou a O Globo. Ainda acrescentou: "Por mensagens de celular, ficamos sabendo dos confrontos e ouvimos os tiros. Disseram que uma criança foi baleada, depois veio a informação de que foram duas, de outras escolas. Agora, falaram que uma delas faleceu, mas como vamos saber o que é verdade ou não?".
A Polícia Civil afirma que os agentes envolvidos na operação apreenderam quatro fuzis calibre 5.56mm, oito carregadores, duas pistolas (uma calibre .40 e outra calibre 9mm), quatro granadas, farta quantidade de munição de fuzil e pistola, farta quantidade de drogas (1.832 pinos de cocaína, 75 sacolés de maconha, cerca de 2 quilos de cocaína), além de ferramentas utilizadas para arrombamento de caixas eletrônicos.
A mais de 20 quilômetros da Maré, os moradores das favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, Zona Sul do Rio, também acordaram ao som de tiroteios. Policiais militares da UPP faziam uma operação para, segundo dizem, "coibir práticas criminosas" em ambas as comunidades. A PM assegura ter sido recebida com tiros por criminosos. A polícia confirmou que uma pessoa morreu, enquanto outras três ficaram feridas. Uma delas deu entrada no hospital municipal Miguel Couto; as outras duas foram presas.
No último sábado, a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro completou quatro meses em meio a crença generalizada de que pouca coisa mudou desde que o general interventor Walter Braga Netto assumiu o controle da segurança pública fluminense. A percepção de que a violência continua a todo vapor se explica pelo fato de que os principais índices continuam em níveis alarmantes. Um balanço apresentado pelo Observatório da Intervenção Federal, vinculado ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes, mostrou que os tiroteios aumentaram 36% durante os últimos quatro meses. Os dados são do laboratório de monitoramento Fogo Cruzado, que contabilizou 3.210 tiroteios nos últimos quatro meses, enquanto que nos quatro meses anteriores à intervenção o laboratório registrou 2.355 ocorrências.
Dados recentes da Secretaria de Segurança Pública do Rio, no entanto, indicam uma melhora em alguns índices nos últimos meses. As mortes violentas caíram de 636 em março para 575 em maio, uma queda de 9,59%; já os roubos de carga foram de 917 para 752, uma queda de 17,99%; e os homicídios dolosos, de 503 para 419, uma queda de 16,70%. Os únicos dados que pioraram recentemente são os relativos a homicídios decorrentes de intervenção policial, que subiram de 109 para 142 entre março e maio, um aumento de 30,27%; e a roubos de rua, que subiram de 11.182 para 11.861, um aumento de 6,07%. Especialmente este último dado contribui para uma percepção negativa sobre a segurança do Rio.
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Rasantes de helicóptero e sete mortos em dia de pânico na Maré, no Rio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU