07 Junho 2018
O sítio Settimana News, 04-06-2018, publicou a primeira parte da conferência de Franco Garelli, professor de sociologia da Universidade de Turim, proferida no dia 19 de maio na Sisri (Escola Internacional Superior para a Pesquisa Interdisciplinar, na sigla em italiano), em Roma. A escola está ligada à Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma).
Após uma breve avaliação do que foi o ano de 1968 e do que restou daquele período, o autor se concentra em particular nos reflexos que esse momento teve no âmbito da religião e da prática religiosa.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que dizer de 1968 cinquenta anos depois? Que avaliação “cultural” podemos fazer de um evento que – para o bem ou para o mal – marcou profundamente as nossas sociedades ocidentais?
Nem todos os estudiosos e observadores, obviamente, olham com as mesmas lentes para os acontecimentos daquele período, que, no entanto, representou um divisor de águas entre duas épocas diferentes. Até mesmo os seus detratores, até mesmo aqueles que estão convencidos de que a pretensão de revolução teve pernas curtas, admitem que 1968 foi um fenômeno de grande porte, pelo menos pelos destroços que deixou como herança.
Entre as acusações mais prementes, há aqueles que falam de uma época que fez degenerar o valor da liberdade em licenciosidade, anarquia, ausência de regras; de um movimento nascido para combater um conformismo repugnante e que logo acabou criando outro mais sufocante.
Por outro lado, outros observadores reconhecem as muitas descontinuidades que emergiram naqueles anos tumultuados, a demanda de mudança, a ruptura das relações de poder consolidadas (na universidade, nas fábricas, em família, entre as gerações), a vontade de revanche e de protagonismo das classes sociais mais frágeis. Para outros, ainda, foi uma fase fundamental para o crescimento civil, que deu início à temporada dos direitos.
Em suma, o debate ainda está muito vivo hoje em torno de 1968, do seu significado, dos fatores que o desencadearam, do seu legado, se ele teve mais méritos ou mais culpas. No entanto – para além das avaliações contrastantes – não se pode negar o fato de que foi um período repleto de inclinações e de contraposições ideológicas, de conflito geracional, de utopias, de mistura de classes sociais, de intensa participação coletiva: todos aspectos que celebram sua distância em relação ao tempo atual, que certamente não carece de tensões, mas que, em comparação, parece ser muito mais cinzento e ferial.
Além disso, para ilustrar o clima da época, basta recordar alguns slogans típicos do período, que já fazem parte da nossa memória/arqueologia histórica e ilustram os imperativos culturais daqueles anos impetuosos. Eram os warning da época, hoje diríamos os tuítes ou as hashtags de uma época que ainda não conhecia os smartphones; mensagens que – conforme os casos – coloriram ou tornaram ameaçadores os muros das fábricas ou das universidades, que constituíam o “dossel sagrado” das longas marchas, gritados em todos os lugares por jovens que lutavam por um mundo “de cabeça para baixo”.
# Ce n’est qu’un début (é apenas o começo)
# proibido proibir
# contra a repressão da insurreição
# estudante-operários, mesmo patrão
# eu sou minha
# não me libertem, eu faço sozinho
# somos sem limites
# tomem os seus desejos como realidade
# a barricada fecha a rua para abrir o caminho
# a fantasia no poder
# a imaginação no poder
# não tomem o elevador, tomem o poder
# retomemos o futuro
# o pessoal é político
# eu decreto o estado de felicidade permanente
# desconfiem dos maiores de 30 anos
E depois inúmeros slogans de fundo sexual, indicando que o ímpeto político havia afetado profundamente a esfera privada.
# amai-vos uns sobre os outros
# quem dorme duas vezes com a mesma mulher faz parte do sistema
# faite l’amour pas les magasin (des gosses).
O que pretendo afirmar com essa breve reconstrução de um passado que produziu muito barulho e estupor? O que marcou a nossa história?
Acima de tudo, em 1968, havia uma forte tensão para pôr em crise uma sociedade considerada injusta, autoritária, desigual, cheia de opressões e de tabus; mas, ao mesmo tempo, também era muito sentida a exigência de operar uma conexão (uma soldagem) entre a vida pessoal e a política, porque a mudança das estruturas era considerada como um pré-requisito para implementar um modo de vida diferente.
Em segundo lugar, alguns desses slogans hoje nos parecem ser totalmente deletérios e anacrônicos, por exemplo, pelo modo ingênuo em que os jovens da época achavam que podiam derrubar os poderes fortes da sociedade e instaurar uma nova ordem social; enquanto outras mensagens (a demanda de felicidade, a centralidade dos desejos, a afirmação “eu sou minha” – que remete ao slogan feminista de alguns anos mais tarde: “o corpo é meu e quem manda nele sou eu” ou “o útero é meu e quem manda nele sou eu”) parecem ter feito escola ao longo dos anos, porque agora fazem parte de uma cultura generalizada, que reivindica a importância da autodeterminação pessoal e da liberdade de expressão.
Em terceiro lugar, esse era realmente o tempo da utopia, do primado da ideologia, das “paixões fortes”, da vontade de tomar partido; enquanto o atual parece ser uma época pós-ideológica, do mal-estar, das paixões tristes, do eterno descontentamento, da reivindicação impotente, da ausência de perspectivas.
A primeira mensagem, portanto, que eu gostaria de propor, diz respeito precisamente ao legado cultural que deriva à nossa sociedade (e, em particular, às novas gerações) do movimento ou da temporada de 1968.
Também é verdade (como mencionava antes) que, após a esbórnia ou os excessos da política, muitos protagonistas daquela candente temporada voltaram às fileiras de um sistema social que se tornou mais forte do que suas veleidades revolucionárias. Depois de tantas esperanças traídas, depois do caos social conectado com uma participação desordenada, depois dos anos sombrios do terrorismo, voltou a calma ao país, os jovens saíram das barricadas, desencadeou-se um longo período definido por alguns como normalidade e por outros como refluxo.
No entanto, tratou-se de uma normalidade mais aparente do que real, já que 1968 também deixou a sua marca. A alternativa política certamente fracassou, mas foi substituída (como destacaram Glock e Bellah) pela alternativa dos estilos de vida, por uma cultura (ou contracultura) que herdou algumas reivindicações típicas da temporada política. Entre estas, o questionamento não apenas desta ou daquela autoridade, mas do próprio princípio de autoridade; a distância e a desafeição das instituições e da tradição; a busca da felicidade aqui e agora; o predomínio de motivos autônomos e imanentes de realização; a importância atribuída ao lado subjetivo (individual) da experiência humana. Essa centralidade do “eu” se manifesta em vários níveis, no desejo de controlar e determinar o próprio percurso de vida, na ênfase atribuída à experimentação, na tendência a viver com mais consciência.
Eis algumas das reivindicações culturais que emergiram após a temporada política e que permearam a vida cotidiana das novas gerações. Muitos jovens estiveram envolvidos em modos de pensar, de viver e de agir que estavam em claro contraste com os dos seus pais e com seus coetâneos que ingressaram na idade adulta no início dos anos 1960; cujos traços também eram identificáveis no seu modo de se vestir, nos gostos musicais, nas dinâmicas do tempo livre, nas relações afetivas e sexuais, no modo de estar na sociedade.
Em vários aspectos, essa mudança subterrânea se insere na “revolução silenciosa”, que – nas palavras de Inglehart – ocorreria em muitos países ocidentais naqueles anos, que marcaria a passagem dos valores “materialistas” da segurança econômica, do bem-estar, da carreira, do prestígio social, da disciplina, do sucesso profissional... aos dos “pós-materialistas”, representados pela autorrealização, pela liberdade de opinião, pelo sentimento de pertencimento “limitado”, por um modo diferente de entender a cultura e de viver a relação com a natureza.
Nos últimos 50 anos, portanto, ocorreu algo que modificou profundamente o cenário cultural da nossa sociedade, do qual 1968 parece ter sido o detonador e o símbolo inicial.
Ao sintetizar essa mudança, houve quem falasse – como Taylor – de uma revolução individualizante, da difusão entre amplas camadas da população de um individualismo moral, instrumental e expressiva que, no passado, era sentido principalmente pelas elites, mas que agora se torna um fenômeno de massa.
Para muitos de nós (da nossa cultura) o individualismo cria desconcerto, porque nós o associamos geralmente a uma concepção egoísta da vida, ao desaparecimento do sentido da comunidade, à a negação da ideia de solidariedade, ao desaparecimento da confiança nos outros.
Mas o termo – como se sabe – tem uma acepção mais ampla.
O individualismo certamente indica a tendência a raciocinar principalmente nos termos do que é melhor ou ótimo para mim; ou a medir a bondade de uma ação mais com base na sua capacidade de ser um meio para otimizar as recompensas do que pelo seu valor intrínseco (individualismo instrumental). Mas também pode conter uma reivindicação “expressiva”, que pode ser descrita como a busca por um estilo de vida autêntico, personalizado, sob medida; movido pela convicção de que cada indivíduo tem um modo específico de realizar sua própria humanidade, e que é importante expressar e implementar essa originalidade, em vez de se conformar com um modelo imposto de fora (isto é, pela sociedade, pelas gerações anteriores, pela autoridade política ou religiosa etc.).
Distanciamo-nos, portanto, das sociedades do passado consideradas como homologantes e conformistas, inimigas da individualidade e da criatividade, repressoras dos sentimentos e da espontaneidade.
Além disso, estamos cada vez menos dispostos a viver a própria vida em termos de papéis objetivos, de obrigações e de princípios que vêm de fora, cultivando a ideia de decidir autonomamente os fins e as modalidades da própria existência, orientando as próprias escolhas em sintonia com o “eu íntimo”.
Em outras palavras, o modelo da “vida como”, vinculado com a tradição dos papéis sociais (expressada pelos modelos da esposa dedicada, do marido fiel, do empregado diligente, do jovem submisso), é superado pelo modelo da “vida subjetiva”, vivida de acordo com a própria interioridade, em que importam os sentimentos pessoais, a harmonia, a expressão autônoma. A primeira sacraliza a conformidade do indivíduo a uma autoridade e à tradição, que media a sua vontade; a segunda sacraliza a experiência pessoal do encontro com o próprio “eu” profundo.
Estamos aqui no coração daquela que Charles Taylor define como era da autenticidade, que modificou as condições de vida (e também de crença e de relação com a religião, como veremos) para amplas parcelas da população nas nossas sociedades.
Como se vê, nem tudo é negativo na mudança cultural descrita. A realização individual pode enfraquecer os tradicionais laços com a comunidade, com o Estado, com os partidos políticos, com as classes sociais, com as Igrejas; mas também pode desencadear novos pertencimentos coletivos, conectados com sensibilidades particulares, estilos de vida e de consumo particulares.
A saída da “vida como” altera as relações sociais, mas abre para as pessoas novos horizontes de realização. A centralidade do “eu” pode desencadear atitudes egoístas, mas indica a importância de ser si mesmo no mundo de hoje, de descobrir as próprias potencialidades, de superar vínculos e esquemas datados e pré-estabelecidos. Em suma, nem tudo vem para prejudicar na era da autenticidade.
A avaliação dessa virada cultural não pode deixar de ser ambivalente, é composta por aspectos problemáticos, mas também por reivindicações positivas. Alguns valores e modelos tradicionais são postos em discussão (a família, o trabalho, a moderação, a fidelidade às instituições etc.), mas outros ideais são afirmados, como os do respeito pela liberdade individual, da igualdade, das oportunidades iguais, da tolerância, dos direitos.
É desnecessário dizer que essa profunda transformação da consciência moral teve repercussões relevantes no campo religioso, que se manifestaram tanto na relação com as instituições do sagrado (com as Igrejas, em particular), quanto no próprio modo em que hoje se interpreta a instância religiosa e espiritual.
Aqueles que refletiram sobre esses temas evidenciam em particular:
1. O questionamento de uma religião ou de uma religiosidade que não seja objeto de uma escolha pessoal específica, típica de uma referência cultural que um indivíduo herdou quase sem saber do ambiente em que vive, fruto de uma herança ou de uma memória das quais se participa sem consciência suficiente; muitos jovens hoje expressam desconforto em relação a uma fé imposta ou fundada apenas no laço com a tradição ou com a cultura predominante, ainda que, de fato, depois, amadureçam vários compromissos nesses níveis; em todos os casos, a aspiração de fundo é (em nível de fé religiosa, como em muitos outros campos da vida) a não viver mais em um “mundo de destino”, mas em um “mundo de escolhas”; portanto, não uma fé atribuída, ou imposta, ou herdada passivamente, mas cada vez mais objeto de opção.
2. O distanciamento ou a desconfiança em relação a qualquer forma de autoridade religiosa ou a qualquer fonte de significado que provém de fora da própria consciência e, paralelamente, a tendência de legitimar como credível apenas aquilo que é validado em termos subjetivos e pessoais; a autoridade do sujeito, portanto, leva a melhor em relação à das instituições e das tradições religiosas, pela centralidade atribuída precisamente ao sentimento individual.
3. A refratariedade a se identificar com as instituições religiosas não é apenas uma questão de princípio, mas também tem uma razão histórico-cultural, representada pela rejeição do modo predominante com que as Igrejas e as instituições religiosas geriram o sagrado até hoje; a intolerância em relação a uma proposta religiosa e moral que parece negar a liberdade e o desenvolvimento pessoal; o desacordo com a ética sexual pregada pelas Igrejas; a rejeição da função disciplinante da religião (que prefigura autocontrole, autonegação etc.); a não aceitação da abordagem autoritária das Igrejas, cuja lei e cujas normas parecem fixas no tempo e não admitem objeções e exceções.
4. O distanciamento dos modelos religiosos tradicionais não leva necessariamente a um aumento da incredulidade ou à insignificância dos valores religiosos e espirituais; o fenômeno do ateísmo ou da indiferença religiosa cresce com o tempo, mas, ao lado dele, delineia-se um forte fluxo de busca espiritual alternativa, que, em grande parte, se manifesta fora das Igrejas, mas que, em vários aspectos, envolve também as comunidades religiosas mais consolidadas; difunde-se, portanto, a ideia de que: cada um deve seguir as próprias inclinações espirituais; é legítimo escolher o ambiente (comunidade, grupo, Igreja) considerado mais significativo; o que importa não são os pertencimentos formais, mas sim as experiências, os percursos, as propostas que respondem às minhas exigências e alimentam a vivência; muitas vezes, essas respostas são encontradas em itinerários espirituais “afins”, não estruturados, ou em agências de serviço... mais do que nas grandes instituições.
Emerge aqui um novo modo de se relacionar com o sagrado que exalta a busca de significado a partir da própria experiência cotidiana, dos próprios sentimentos/dúvidas; aquele fenômeno que – de acordo com os casos – foi definido como religião “faça você mesmo”, religião “escolha e misture”, “supermercado espiritual”, religião “à la carte”; ou ainda como “um caminho para a compreensão de si mesmo e para a consciência interior”; “um percurso para o crescimento pessoal”; “um veículo para o despertar da parte intuitiva e não racional do eu”.
Esse aspecto é ainda mais exaltado pelas expressões mais recentes de “espiritualidade do eu”, “espiritualidade interior” ou “espiritualidade subjetiva”; expressão de um “eu” profundo que valoriza os próprios sentimentos, o próprio corpo, as relações com os outros, com a natureza e com o cosmos.
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Cinquenta anos depois de 1968: jovens, revolução, religião. Artigo de Franco Garelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU