15 Mai 2018
Atingidos pela hidrelétrica, seres humanos vivem alagados por água podre na cidade de Altamira, num cenário pós-apocalíptico.
A reportagem é de Eliane Brum, jornalista, e Amazônia Real, publicada por El País, 14-05-2018.
Marlene acorda na madrugada. Ela teve um pesadelo. Um de seus netos morria afogado no lago. Quando acorda, ela já sente o cheiro de esgoto. Sacode Carlos, que dorme ao seu lado. “Carlos, alagou.” O marido está esgotado pelo dia de trabalho. Ele pinta casas que não alagam. “Você tá sonhando.” Marlene não está. Ela bota o pé para fora da cama e pisa. O frio da água molhando o pé lhe provoca um horror silencioso. Naquele momento o horror é só dela. “Eu não sei nadar”, é o que Marlene pensa sem parar. “Eu nunca aprendi a nadar.” Ela então repete. “Alagou, Carlos.” Carlos abandona o sono para lembrar que não há pesadelo pior que a vida no Jardim Independente 1, na cidade de Altamira, no Pará.
O que acontece a seguir é um balé de sobreviventes. São 11 pessoas na casa de quatro cômodos. “Tem a Cátia, tem o Ailton, tem o Derlei, tem a Yasmin, tem o Anderson, tem o Lucas, tem o Gustavo, tem a Lorrane, tem o Gabriel, tem eu e tem a mulher…”, enumera Carlos. Aí tem meu outro filho e netos, mas é na casa do lado.” Todos os móveis e eletrodomésticos já estão sobre estrados. Há cordas na parede. Há uma porta que baixa por meio de cordas. Sobre essa porta eles colocam suas posses mais preciosas, como o computador. As outras cordas seguram o restante. Não há garantia. Já perderam TV, armários, guarda-roupa, fogão, ventiladores, ferramentas de trabalho, já perderam muito numa vida de pouco.
A água está rapidamente subindo. Não é apenas água. Mas lixo. Muito lixo. Água podre. E cobras. Marlene e Carlos tangem as cobras pretas com um pau. Há crianças. Uma delas é surda e muda. Marlene se comunica com ela por gestos. Nem precisava. O menino não precisa de palavras para saber. Ouve o som terrível da água subindo pelos olhos. Na primeira vez, a avó o botou num colchãozinho no chão e ele saiu flutuando. “Vai morrer afogado, vai morrer afogado”, gritou a avó. Ela puxou o menino por um braço e o jogou numa cama. Depois o avô colocou-o nas costas e o levou para uma casa mais alta.
Quando Carlos Alves Moraes e Marlene Moraes da Silva chegaram ao bairro, em 2005, o chão embaixo da casa era seco. Quando a Usina Hidrelétrica de Belo Monte foi leiloada, em 2010, e começou a ser construída, atraindo gente de todos os cantos e também os funcionários das empresas envolvidas, o preço dos alugueis se multiplicaram. Quem pagava 200 reais numa casa pequena, foi avisado pelo proprietário que viraria 2000.
Expulsos pela especulação imobiliária, centenas migraram para as zonas mais pobres da cidade, como o Jardim Independente 1. Mas ali já havia um lago. O aumento da população provocado pela construção da usina e o preço dos alugueis, segundo parecer técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), causou a corrosão ambiental e social do bairro. A água começou a surgir debaixo das casas. De repente alguém estava na cozinha e a água começava a verter. Há casas em que a água irrompe em vários pontos do piso. Há casas em que se pisa em 30 centímetros de água mesmo em época de seca. O chão virou líquido.
Neste momento, 968 famílias cadastradas vivem no Independente 1 abaixo das condições mínimas de sobrevivência. A de Carlos é uma das 62 em situação emergencial, mas um emergencial que já dura anos, porque no Brasil emergencial é uma palavra sem substância. Um passo em falso e crianças e adultos caem na água contaminada onde boia todo o tipo de lixo. O cheiro é sempre insuportável, mas o insuportável se torna suportável porque a vida se impõe. O insuportável sempre pode ser colocado mais à frente.
O Jardim Independente 1 depois da catástrofe de Belo Monte é um mundo em que as casas se comunicam por tábuas inseguras, muitas delas rachadas ou com rombos, colocadas pelos moradores. O Jardim Independente 1 antecipa uma Veneza do apocalipse pós-climático. Belo Monte é a ação do homem que arrebenta a possibilidade de vida primeiro dos mais pobres, mas cujo efeito nunca termina. E vai se propagando em círculos cada vez maiores.
Esgoto e lixo a céu aberto: o Bairro Jardim Independente I na região central de Altamira ainda mantêm casas de palafita (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)
Mas não há metáforas na vida de Marlene e de Carlos. A água segue subindo e eles se abrigam num quarto que fizeram nos fundos da casa, construído 1 metro e 20 centímetros acima do chão. Ali já estão a geladeira e o fogão. E os alimentos que conseguiram armazenar. As 11 pessoas se amontoam junto com os móveis em nove metros quadrados. As crianças já não podem mais ir para a escola, porque ir para a escola significa atravessar a água podre. Só cabe um colchão e não há como dormir espichado, é preciso se encolher. E assim passam os dias e as noites. Carlos bota apenas uma tábua para ligar o quarto e o banheiro. E este é todo o movimento. O único que nada para a terra firme é ele, porque precisa trabalhar.
Eles já passaram 17 dias assim.
Um defensor público federal, que entrou no Jardim Independente 1 durante um período de cheia, voltou para o hotel e chorou de horror e de impotência. É um homem acostumado a frequentar os piores presídios do país, assim como os lugares mais insalubres de diferentes regiões, mas nunca tinha visto nada tão além dos adjetivos.
Quando o horror se reinventa, os moradores estão sozinhos. Foi assim em 2014. A mãe de Marlene passava uma temporada com a família e adoeceu de dengue hemorrágica. Ela tremia sem parar e a água estava muito alta. Carlos pegou um isopor de 70 litros e colocou a mulher dentro. Nadou através da água suja com a mulher dentro do isopor. Em terra firme, a levou ao hospital. Ela morreu alguns dias depois. E assim Marlene perdeu a mãe.
Carlos explica que tem “três qualidades de gente no corpo”. É indígena, a mãe pertence ao povo Xipaya. É ribeirinho, morou a maior parte da vida na Vila da Ressaca, na Volta Grande do Xingu, uma das regiões mais atingidas por Belo Monte e hoje ameaçada pela mineradora canadense Belo Sun. “A gente não tinha bicicleta nem carro nem moto. Só canoa. Por isso ocupamos esse nome de ribeirinho.” E só saiu da beira do rio para morar na cidade quando empresas de mineração começaram a fazer “pesquisas”: “Os homens da empresa dizem: ‘Só vou tirar um pedacinho do seu barranco para testar….’ E quando voltavam já tinham aquele poder todo de tirar a gente dali”. A terceira qualidade é a de pescador. Mas o Xingu arrasado por Belo Monte já tem pouco peixe.
A inventividade de Carlos para criar mecanismos para proteger sua família da água só é menos impressionante que sua teimosia em viver honestamente num país que o humilha dia após dia. Em cada empreitada de pintura ele ganha 200 reais para trabalhar de segunda a sábado. Trinta e três reais por 10 horas diárias de trabalho. Ele para 30 minutos, 10 para comer a marmita de arroz, farinha e “uma carnezinha frita” e 20 para descansar. Tem 61 anos. Trabalha sozinho, “porque gosta de fazer direito”. Atravessa com a água podre batendo no peito e a atravessa de volta com a água podre batendo no peito. Ano após ano.
Num canto, entre a porta de entrada e a porta do quarto onde o menino que não ouve nem fala vê um programa evangélico na TV, Marlene, 58 anos, entrelaça uma lã de cor bem viva. Laranja. Enquanto a matam um pouco por dia, ela está fazendo tapetes para a casa nova que espera ter quando houver justiça. Tapetes para quando tiver chão. Com os pés sobre tábuas corroídas, cercada de água podre por todos os lados, a vida apenas equilibrada em solo encharcado, Marlene tece um novo conceito para a palavra esperança. Este só ela alcança.
Somente em 13 de março deste ano, os habitantes do bairro Jardim Independente 1 foram reconhecidos como atingidos por Belo Monte. Foi uma longa luta do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que assumiu o desafio e liderou os moradores, assim como da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal (MPF). O IBAMA finalmente reconheceu a relação direta entre o impacto de Belo Monte e as condições insalubres de vida dos moradores. Determinou então a responsabilidade da Norte Energia, empresa concessionária da hidrelétrica, no reassentamento dos atingidos, e a responsabilidade da prefeitura de Altamira na descontaminação, desinfestação e reparação da rede de drenagem pluvial.
Neste domingo, 13 de maio, terminou o prazo de 60 dias dado publicamente pela presidente do IBAMA, Suely Araújo, durante reunião em Altamira, para que a Norte Energia apresente um plano de trabalho para a realocação dos moradores das casas com arquitetura de palafita e das casas em que não há condições de realizar saneamento básico. O ofício enviado à Norte Energia com a determinação tem data de 22 de março. Procurada pela Amazônia Real, até o fechamento desta reportagem a Norte Energia não havia dado resposta.
Carlos e Marlene seguem acordando no mesmo não lugar.
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A Veneza de Belo Monte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU