28 Abril 2018
Publicamos aqui a segunda parte da síntese de Zeno Carra sobre seu livro Hoc facite. Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucaristica di Cristo [Hoc facite: estudo teológico-fundamental sobre a presença eucarística de Cristo] (Ed. Cittadella, 2018).
A primeira parte da síntese está disponível aqui.
O artigo foi publicado por Come Se Non, 13-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por Zeno Carra
No fim da primeira parte deste ensaio, revelou-se uma parcialidade interna ao sistema tomista sobre a eucaristia no que diz respeito à sua colocação no âmbito do real. Em seguida, prossegue-se mostrando o segundo nível de sua inadequação, por causa de sua recepção no horizonte cultural em mudança do século XX.
2. É precisamente sobre esse ponto que se articula o segundo nível de resposta à nossa pergunta: por que o sistema tomista não sustentaria mais a reivindicação central de “realidade” do fato eucarístico?
Ainda no primeiro nível, a solução do Aquinate, embora permitindo sair de um beco sem saída, opera algumas notáveis reduções sobre o evento eucaristia na sua complexidade: no entanto, ela permanece situada em um sistema de cultura no qual a sua construção filosófica se sustenta. Explico: para um homem medieval, o nível de “substância” de uma coisa é o fundamento efetivo e real dela. A substância do ente, por mais distante que esteja das suas determinações contingentes, históricas, permanece incluída naquele leito das coisas que definimos como “realidade”. Colocar a presença de Cristo no nível da substância metafísica dos entes assegura que tal presença seja “real”, já que a substância é um dado de realidade, é o nível fundante da realidade de um ente. A metafísica aristotélica quer descrever não o que está em outro lugar em relação ao “físico”, mas sim o nível mais verdadeiro, mais estável deste mundo experimentável.
Essa visão das coisas, que funciona no século XIII, é progressivamente modificada e não é mais assim após a virada epistemológica que, com aproximação de vulgata, indicamos em Descartes.
O homem da era moderna divide o ser em “res extensa” e “res cogitans”, reunindo na primeira definição o mundo físico, experimentável, sensível... e, na segunda, o âmbito dos conceitos metafísicos. A “substância” passa de fundamento do real a um puro conceito de razão, já que os entes metafísicos se tornam entes de razão. O senso comum de um homem contemporâneo aguça essa divisão, dizendo “concreto”/“abstrato”. As determinações da metafísica passam para os entes abstratos de que nos servíamos para interpretar o real, mas que são situados no nosso mundo mental, ideal.
Qual é o resultado disso para uma doutrina eucarística construída sobre a metafísica aristotélica do ente? É fácil intuir: o nível antes central (a substância) é percebido como realidade abstrata; o nível antes secundário (os acidentes na sua datidade perceptível) emerge ao centro do ser (a realidade como concretude experimentável): as estruturas culturais sobre as quais o tomista se sustentava são invertidas.
Um interessantíssimo momento sintomático dessa recepção de Tomás que quer manter a sistemática tomista (como sancionada com autoridade pelo Concílio de Trento), mas que a distorce sem perceber, é o debate que ocorreu entre Filippo Selvaggi e Carlo Colombo sobre a localização epistemológica da presença eucarística (1949-1960). Ambos assumem o ditado de Tomás e o situam no novo horizonte do século XX.
O primeiro, para assegurar a “realidade” ao fato eucarístico, não hesita em traduzir as categorias tomistas na linguagem da física atômica daqueles anos, situando a distinção substância-acidentes na distinção (no modelo atômico de Bohr) entre núcleo do átomo e sua coroa de elétrons! Além da tentativa um pouco grotesca, o que chama a atenção é a reivindicação a ser salvaguardada: se, para o homem moderno, a realidade é o plano “físico” das coisas, a presença eucarística não pode se situar “em outro lugar”.
A posição do Colombo levará a melhor na recepção teológica posterior: o sistema ontológico de Tomás deve ser recebido em sentido requintadamente “metafísico”: uma coisa é o plano da realidade física, sujeita à observação empírica; outra coisa é a presença de Cristo: ela deve ser entendida metafisicamente.
Essa segunda linha de recepção, que levará a melhor, expõe o dogma ao resultado inevitável já detectado: se a presença eucarística de Cristo é um fato metafísico, em última análise, ela se torna um dado abstrato!
O fato de que esse é o caminho muito perigoso que tomamos é demonstrado por muitos sintomas da nossa prática eucarística:
- o esforço de “explicar” às crianças (e não só) o dogma da presença real, navegando entre complicadas dissertações para tornar acessível e não irrelevante a metafísica do ente, por um lado, e simplificações excessivas, por outro (“Você vê uma coisa, mas na realidade é Jesus: você deve acreditar nisso”), nas quais pedimos ao homem do século XXI que abdique de suas estruturas gnoseológicas próprias para viver como fiel!
- A insistência no acesso mental-intelectivo (às vezes com revestimento emocional) à celebração eucarística: o que importa em relação a ir à missa no domingo é “levar embora uma boa mensagem”. E o hábito de uma prática celebrativa coerente com isso: explicações contínuas que interrompem o rito (o importante é entendê-lo, não fazê-lo!); predileção por um estilo verborrágico de conferência (as seções cantadas são apenas de contorno, de embelezamento); consequente disposição do espaço sagrado: palco e plateia. Para depois nos admirarmos e nos entristecermos quando centenas de fiéis que “entenderam” a “mensagem” não vão mais à missa, mas preferem cultivar essa “mensagem”, e as emoções anexas, na privacidade de suas práticas.
- No lado oposto, o desenvolvimento de práticas devotas que, para salvaguardar a reivindicação de realidade da eucaristia, ou seja, recuperar sua incidência “físico-concreta” além do mero intelectualismo da “mensagem”, recorram novamente a atitudes do fisicismo alto-medieval que identificam simplesmente a hóstia consagrada com “Jesus” (tocá-la, beijá-la, passa-la de mão em mão etc.).
Tudo isso denuncia claramente que a utilização na contemporaneidade do sistema tomista não conserva mais a riqueza do fato eucaristia nas suas reivindicações, em primeiro lugar, a reivindicação de realidade. O homem está diante da realidade das coisas de um certo modo: a teologia de Tomás não oferece mais a esse homem um discurso teológico que conecte, no ponto nodal irrenunciável que é a eucaristia, a presença de Cristo à sua realidade, à qual ele tem acesso. Isso nos põe diante de uma alternativa: mudar a cabeça do homem contemporâneo ou repensar a teologia eucarística sobre outras construções filosóficas.
Sabendo que peco por não generosidade e aproximação, eu indicaria a primeira opção como defendida por aqueles que denunciam o mundo contemporâneo como estruturalmente errado. O mundo, o homem, as coisas devem ser levados de volta ao modo certo de serem entendidos.
Parece-me mais factível (e talvez mais de acordo com o olhar bendizente do católico sobre a realidade?) o segundo caminho: pedir que a teologia repense e reencontre reivindicações que está correndo o risco de perder.
O século XX se caracterizou nesse sentido em várias frentes: diversas áreas do pensamento religioso tentaram repensar, até mesmo independentemente umas das outras, o sistema teológico clássico.
Sinteticamente, essas áreas teológicas e suas contribuições são:
- o Movimento Litúrgico: ele trouxe à tona o fato da celebração, como estrutura coerente e coesa de ações que a Igreja põe em ação: não mera cerimônia que enquadra um núcleo essencial de natureza diferente do rito. Entre os méritos da reflexão nesse campo, está o fato de ter destacado que, antropologicamente, a prática concreta, histórica do rito molda a espiritualidade interior do homem. Portanto, não é válida somente a direção do pensamento (inferência sobre o ser) para a prática, mas, para a liturgia, vale o contrário: aquilo que o homem faz, muda aquilo que o homem pensa e sente. Desse modo, trouxe-se novamente à tona a ação histórica do homem. Talvez, o limite das contribuições do Movimento Litúrgico está em não ter cruzado significativamente a especulação da teologia dogmática de âmbito sacramental: liturgia e dogmática permaneceram como duas disciplinas contíguas, mas não totalmente comunicantes em suas estruturas.
- O diálogo ecumênico: o debate pacificado entre as diversas dogmáticas confessionais sobre o tema da presença eucarística levou a passos de reconhecimento mútuo: as Igrejas e confissões cristãs tomaram emprestado umas das outras as reivindicações conservadas pelas diferentes tradições. A recuperação, para a teologia católica, do interesse protestante à forma antropológica da ceia em que a eucaristia surgiu, contribuiu para um resultado paralelo ao do Movimento Litúrgico: aquilo que acontece no plano sacramental é determinado essencialmente pelas ações do “contexto” de uma ceia em que isso acontece. O risco em assumir as contribuições da teologia reformada, porém, está em tomar emprestado, sem perceber, uma reivindicação protestante inaceitável para a dogmática católica: fazer da ceia de Jesus com os seus a forma da eucaristia significa assumir como pressuposto que se reproponha aquela dinâmica dos fatos, pela qual o Senhor está presente para nós, não por via sacramental, antes e independentemente da instituição do sacramento. De fato, todas as tentativas teológicas nesse sentido sublinham a presença do Senhor na sua Igreja como requisito necessário para compreender a eucaristia. Se isso é em parte legítimo, em parte também é arriscado: requer-se como pressuposto aquele fato que o sacramento – de acordo com o dogma católico – pretende produzir: a presencialização do Senhor. Tem-se aqui a assunção acrítica de uma estrutura mental protestante que não aceita que os sacramentos, ações históricas do homem (“obras”), seja efetivamente mediações da graça. Eles podem ser sua expressão, manifestação, ocasião, mas não mediação. O sistema tomista, embora nos limites detectados, por sua vez, conservava a reivindicação da mediação: não é a presença do Senhor (já dada a montante) que produz a sua presencialização sacramental, mas sim a virtus que, pelo Senhor, foi conferida de uma vez por todas às palavras da consagração e que confiou à ação da qual a Igreja é sujeita. Para Tomás, verdadeiramente uma ação histórica, humana é implementação eficaz da graça: fazer aquele pequeno segmento de rito, o único que permaneceu relevante no seu sistema, é pôr em ação a presença sacramental do Senhor. É verdadeira mediação eclesial (S. Th. III, q. 78, art. 4).
- Um último âmbito da reflexão teológica do século XX é a especulação dogmática precisamente em matéria de presença eucarística. Trata-se daquelas tentativas que a vulgata teológica transmitiu nas siglas redutoras trans-significação e transfinalização: siglas que detectaram apenas as suas parcialidades sem recordar suas contribuições fecundas. Entre estas, merece ser destacada a tentativa de refundar a construção filosófica do sistema eucarístico: no lugar da metafísica aristotélica-tomista (da qual destacamos os limites na transposição à era moderna), elas propõem uma abordagem fenomenológica. A contribuição muito interessante, que converge na mesma direção dos dois sublinhados acima, está em indicar que o ser de uma coisa não está metafisicamente contido nela (sistema substância-acidentes), mas que uma coisa é ela mesma por causa da rede de relações que, de fora dela, a constituem como tal. A coisa é aquilo que dela se faz, é o como ela se recebe pelas ações que são agidas sobre ela e a fazem surgir. A aplicação ao pão e vinho consagrados é logo feita: eles são corpo e sangue de Cristo em virtude da rede relacional complexa de ações e intenções que sobre eles é agida. Essa proposta não visa – como defendiam seus detratores – a privar de porte ontológico a presença eucarística de Cristo, contribuindo “apenas” com considerações fenomenológicas marginais: ela visa a reunir a nova perspectiva ontológica com que a cultura atual capta o ser das coisas e a inscrever nela o fato da eucaristia. A fenomenologia não se põe ao lado da velha metafísica aristotélica do ente, mas pretende substituí-la no seu porte ontológico. O risco das propostas teológicas desse âmbito foi o de evidenciar unilateralmente uma única linha de feixe de relações externas ao ente que o constitui como tal, a cognoscitiva homem → ente: “Tal coisa é tal pelo fato de que eu a conheço como tal”. Aplicado à eucaristia, isso corria o risco de fazer deslizar a presença de Cristo para a subjetividade da minha relação inferencial com o pão e vinho consagrados. A insistência unilateral nessa dimensão levou a privilegiar a categoria de “sinal” (daí a sigla “trans-significação”), definindo a questão de modo muito parcial: “Pão e vinho são corpo e sangue de Cristo, porque são sinal dele para mim/para nós”. Paulo VI interveio contra essa redução na encíclica Mysterium fidei. Ele a denunciou como inadequada. Mas não encorajou as contribuições mais claramente ontológicas dessas propostas, contribuindo, assim, para torná-las irrelevantes na contribuição do pensamento teológico.
Se essas últimas tentativas tivessem sido acompanhadas para superar suas parcialidades e para pôr em jogo toda a força de sua proposta fenomenológica-ontológica, talvez a dogmática e a liturgia teriam podido se encontrar em uma sistemática nova. Mas não foi assim.
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Nova teologia eucarística: ''Hoc facite'': síntese do autor. Artigo de Zeno Carra (parte 2) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU