14 Abril 2018
Da Guerra Fria à quase guerra tórrida. O conflito no leste da Ucrânia primeiro e depois a guerra interna Síria, onde Ocidente e Rússia misturaram as cartas para uma tensa escalada, desembocam agora em um circuito de ameaças que coloca o mundo na fronteira de um conflito de proporções inescrutáveis.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 13-04-2018. A tradução é do Cepat.
O fim do mundo bipolar após a queda do Muro de Berlim (1989) e o advento de uma “nova ordem mundial” definida pelo presidente George Bush (pai) não viu emergir um novo sistema internacional de segurança, mas uma multiplicação de guerras permanentes. A Síria é o último modelo. A suposta utilização de armas químicas pelo regime de Bashar al-Assad contra a localidade de Duma (7 de abril) levou o presidente norte-americano Donald Trump a prometer uma resposta militar com “mísseis bonitos, novos e inteligentes” e a Moscou, que já bloqueou duas resoluções nas Nações Unidas, reiterar sua oposição total a essa iniciativa e a advertir que derrubaria qualquer míssil.
Na Grã-Bretanha, a primeira-ministra Teresa May parecia disposta a participar na coalizão sem autorização parlamentar, ao passo que, na França, o presidente Emmanuel Macron afirmou que “temos a prova de que as armas químicas foram utilizadas por Bashar al-Assad”. Paris, não obstante, conserva um perfil prudente diante do temor de “uma escalada maior”, cuja cortina de fundo é uma disputa pelo controle geopolítico entre Washington e Moscou.
A guerra síria é um afluxo de atos e uma catástrofe humanitária: os sete anos de conflito deixaram mais de meio milhão de mortos e um dos mais imponentes deslocamentos de população da história moderna (mais da metade da população). Seja qual for sua natureza, uma excursão militar é um quebra-cabeça.
Em abril de 2017, Donald Trump já lançou 59 mísseis Tomahawk contra uma base aérea (Shayrat, na localidade de Homs) como resposta ao emprego por parte do regime de Bashar al-Assad de armas químicas. A configuração militar não mudou por isso. Ao contrário, o presidente sírio reforçou suas posições. Hoje, tem sob seu controle dois terços do país graças às sucessivas vitórias contra os rebeldes e ao apoio de Irã, Rússia e combatentes xiitas oriundos da região. A última batalha no subúrbio (nas redondezas de Damasco, a capital) de Guta Oriental acabou com os rebeldes de Jaish al-Islam e consagrou a dupla vitória de Assad e Rússia. Apesar das gesticulações do Ocidente, Bashar al-Assad venceu a guerra.
Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Rússia, Arábia Saudita, Irã, Israel, Turquia (em guerra contra os Curdos), os rebeldes Curdos apoiados por Washington (há 50.000 instalados na fronteira com a Síria), Iraque, o Estado Islâmico, opositores insurgentes, rebeldes islamistas e grupos afins ao Al-Qaeda, milícias xiitas, grupos sunitas (Frente al-Nusra) e outros salafistas mais os “conselheiros” enviados pelas potências formam um dos maiores enredos que se tenha conhecimento na região. Nesse rio agitado de muitos braços, o regime sírio navegou à vontade. A multidão de frentes vivas torna impossível uma solução radical. Os “mísseis bonitos, novos e inteligentes” com os quais Donald Trump fanfarreou no Twitter não poderão mexer com as peças instaladas. O triângulo sírio-russo-iraniano construiu um êxito compacto.
O que começou em 2011 junto à Primavera Árabe, como uma revolução pacífica contra Bashar al-Assad e seu regime autoritário, acabou em uma guerra civil, após um confronto regional entre Irã, Arábia Saudita e Qatar (Teerã apoiou Bashar al-Assad e sauditas e catarenses ficaram na oposição). Mais tarde, o regional passou a ser um confronto internacional com dois polos maiores: Estados Unidos e seus aliados europeus e Rússia, país que selou sua aliança com Damasco, a partir dos anos 1950 do século passado.
Em 2012, Washington e seus sócios europeus se envolveram no conflito mediante a ajuda que prometeram à rebelião síria. A incoerência dessa rebelião e as aproximações das potências do Ocidente não fizeram mais que cavar a sepultura de milhares de civis inocentes. Em 2013, após outra massiva suspeita de recurso às armas químicas por parte das tropas de Assad, o então presidente norte-americano Barack Obama fixou uma “linha vermelha”: prometeu, outra vez junto a Paris e Londres, uma resposta que nunca chegou.
Ocidente se empenhou inutilmente em que se havia uma solução a essa guerra, passava antes de mais nada pela saída do presidente sírio. O surgimento do Estado Islâmico e seu famoso e hoje desarticulado califado transtornou as já promíscuas estratégias das potências. Enfrentadas entre si, fornecendo ajuda a insurgentes sunitas que eram inimigos de outros grupos, por sua vez sustentados por outras capitais aliadas, Paris, Londres e Washington talvez foram os atores involuntários do triunfo de Assad e Moscou. Moveram-se cegamente. As soluções políticas que foram buscadas no curso de inumeráveis negociações organizadas em Genebra também não deram resultados.
A condição ocidental – franco norte-americana – da renúncia de Assad hipotecou qualquer saída. A guerra mudou radicalmente de natureza, a partir de 2015, quando entrou em ação a aviação russa. O princípio fixado era “a luta contra o terrorismo”, mas a Rússia estendeu seu raio de ação, bombardeou as bases rebeldes, incluídas aquelas apoiadas pelo Ocidente, e contribuiu para a queda de Alepo, por conseguinte, veio a vitória de Bashar al-Assad.
Após a queda do Império Otomano, franceses e britânicos pactuaram as fronteiras oficiais da Síria, depois da Primeira Guerra Mundial (Acordos de San Remo, 1920). O país e seus 23 milhões de habitantes viveram sob mandato francês até 1946. Em 1963, ao cabo de um golpe de Estado militar, estabeleceu-se o regime político atual, mas sem a figura do clã Assad. A partir de 1970, Hafez al-Assad, o pai de Bashar, chegou ao poder mediante um putsch. Após sua morte, no ano 2000, seu filho tomou as rédeas do país.
Inicialmente, a liberalização econômica e os modos educados do herdeiro (se formou em Londres) fizeram os ocidentais suspirar de alívio. Depois, o regime voltou a sua natureza repressiva articulada em torno de um clã. Contra esse modelo por clã é que se levantou parte do país, em 2011, quando Tunísia, Egito, Jordânia, Iêmen e Barein faziam o mesmo durante a Primavera Árabe. Israel, sauditas, catarenses e ocidentais pensaram que aquela revolta colocaria fim não só ao regime dos Assad, como também à crescente influência regional do Irã xiita em confronto com os sunitas do Qatar e Riad. Viram uma dupla oportunidade e perderam pelos dois lados. Meteram suas armas e seus interesses em jogo para acabar afiançando aqueles que pretendiam derrotar e provocando o que o ex-secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, qualificou como “a maior crise humanitária de nosso tempo”.
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Uma multiplicação de guerras permanentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU