11 Abril 2018
O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército brasileiro, está habituado a se manifestar para seus milhares de seguidores no Twitter — 206.000 nesta terça-feira — sobre diversos temas e a, vez ou outra, se posicionar sobre temas espinhosos, como o indesejado corte orçamentário das Forças Armadas ou suas visões sobre segurança pública. No último Dia do Exército, em 19 de abril de 2017, também discursou, diante do presidente Michel Temer e do juiz Sergio Moro, sobre como "a aguda crise moral, expressa em incontáveis escândalos de corrupção, nos compromete o futuro". Mas sabe-se que algo vai além quando, com um semblante sério, William Bonner puxa um punhado de folhas e anuncia uma "última informação" no Jornal Nacional de terça-feira passada, dia 3: "Sem citar o julgamento do Habeas Corpus de Lula pelo Supremo amanhã, Vilas Bôas fez um comentário em repúdio à impunidade numa rede social". Em seguida, o jornalista do principal telejornal da TV Globo lê em tom solene, como se fosse um pronunciamento, os dois tuítes do comandante. Ao invés do habitual tom moderado, suas palavras tinham um forte e intencional tom político dirigido "à Nação".
A reportagem é de Felipe Betim, publicada por El País, 10-04-2018.
No contexto de polarização política, e às vésperas de um julgamento que acabou resultando na prisão de Lula, o general colocou o Exército ao lado dos "cidadãos de bem" que repudiam "a impunidade" e garantiu que a instituição se mantém atenta "às suas missões institucionais" — sem detalhar quais são elas. Palavras que reverberaram em todo o país. Trata-se de uma ameaça de intervenção militar caso o ex-presidente Lula fique livre e seja eleito? O general extrapolou suas funções legais ao se posicionar sobre um tema sobre um assunto que diz respeito à Justiça? Estaria o Brasil voltando aos tempos em que a opinião e os comunicados dos altos comandos militares merecem destaque no noticiário?
Ao longo de seu mandato, Temer buscou agradar os setores militares, que, pouco a pouco, foram ganhando espaço e voz política. Nomeou o general linha-dura Sérgio Etchegoyen como ministro do Gabinete de Segurança Institucional e lhe conferiu influência dentro do Governo. Indicou o general da reserva Sebastião Roberto Peternelli Júnior, defensor da ditadura militar, para a FUNAI — e depois recuou diante das reações negativas. Também decretou uma intervenção federal no Rio e escolheu o comandante militar do leste, o general Walter Braga Netto, como interventor. Na pasta de Defesa, mantém o general da reserva Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar desde o Governo FHC a ocupar a pasta. E em março deste ano, disse que o povo brasileiro "se regozijou" com a "centralização absoluta do poder" após o golpe militar de 1964. A manifestação de Villas Bôas no Twitter confirma esse fortalecimento político do Exército.
Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), classifica a manifestação de Villas Bôas como “intempestiva e completamente indevida”. Para ele, que foi guerrilheiro durante a ditadura militar, o Brasil possui "uma tradição histórica" de sofrer "com a ingerência das Forças Armadas". Algo que "remonta à proclamação da República, fruto de um golpe militar". Isso porque "os militares não se reconhecem nem querem ser reconhecidos como funcionários públicos uniformizados, mas como tutores da nação, uma espécie de 'anjos da guarda' da República", explica ao El País.
Autor de livros como Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos (Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti em 2015) e Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar), Aarão Reis também cita as "intervenções golpistas" que instauraram a ditadura do Estado Novo (1937-45) ou a última ditadura civil-militar (1964-85). Mas também fala de uma série de "ameaças, veladas ou explícitas", ao longo do século XX. Com a redemocratização, ele diz, "os constituintes de 1988 capitularam face ao lobby das Forças Armadas e mantiveram na Carta Magna artigos que autorizam a intervenção militar para 'garantir a lei e a ordem' (GLO)". Depois, entre os governos FHC e Dilma, as Forças Armadas viram o Ministério da Defesa ser ocupado por civis, a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura militar e, posteriormente, a constituição da Comissão Nacional da Verdade. Submeteram-se ao poder civil e se voltaram para os quartéis, perdendo relevância na vida política do país.
Durante o julgamento do habeas corpus de Lula, o ministro do STF Celso de Mello, chamou a atenção de Villas Bôas de maneira indireta, ao falar sobre movimentos que "parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir". Por ser decano no tribunal, isto é, seu membro mais antigo, ele costuma seguir a tradição de puxar para si a defesa institucional da Corte durante sessões plenárias. "Intervenções castrenses quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania, com danos à democracia".
Em nota pública, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, foi mais explícita: "Ameaças explícitas ou veladas de violação à autonomia do Supremo Tribunal Federal por parte do Poder Executivo são inadmissíveis em quaisquer hipóteses. Mais grave se partem da cúpula de instituições que detém o monopólio do uso da Força Armada no país". Ressaltou ainda que "um ato de ameaça ao Supremo Tribunal Federal é da mais alta gravidade constitucional e pode caracterizar, em tese, crime de responsabilidade (Lei nº 1079/50, art. 6º, 6: São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício)".
No dia 6 de abril, o general Otávio Rêgo Barros, do Centro de Comunicação do Exército, disse que a polêmica com o tuíte era “assunto ultrapassado”. Tanto o comandante Villas Bôas como os principais generais que incensaram o incendiário pronunciamento silenciaram, nos dias seguintes, sobre questões nacionais, inclusive durante o decreto de prisão de Lula e nas negociações de sua entrega à PF. Mas alguns militares da reserva continuaram alimentando a polêmica, como é o caso do general Paulo Chagas, pré-candidato ao governo do Distrito Federal. "Estamos vivendo momentos muito estranhos no Brasil, assim como são estranhos, volúveis e mal comprometidos alguns dos ministros da nossa Suprema Corte. Politizados, eles se têm notabilizado pela capacidade de complicar a justiça e de envergonhar o Brasil ao promover a insegurança jurídica e a impunidade", disse em seu Facebook esta semana.
Em meio a aplausos de setores conservadores (militares da ativa e da reserva, movimentos de direita, entre outros) e ao repúdio daqueles que enxergam um viés golpista nas afirmações (políticos de esquerda, Anistia Internacional, acadêmicos, entre outros), especialistas divergem a respeito da legalidade do posicionamento do general. No centro do debate está um decreto assinado em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que regula o comportamento das tropas. No anexo 1, considera-se uma transgressão os seguintes itens:
56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa;
57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.
As normas são dirigidas a todos os militares, mas Villas Bôas não é qualquer soldado: é o comandante do Exército e fala pela instituição. Ao se manifestar, possuía respaldo de seus comandantes superiores, no caso o Ministério da Defesa e o presidente Michel Temer, segundo afirmou o professor da USP Dircêo Torrecillas Ramos, especialista em direito constitucional militar, ao jornal Nexo. “Villas Bôas manifestou uma posição dele e da instituição. É uma questão de liberdade de expressão. Ele tem o direito. Ele está respaldado por seus superiores. Não há quebra de hierarquia. É diferente de um subordinado opinar sobre algo que não lhe compete. Ele é o comandante do Exército e tem autorização das autoridades políticas para dizer o que disse”, explicou. O general de fato não recebeu represálias. Em nota para a imprensa, o Ministério da Defesa — comandando pelo general da reserva Joaquim Silva e Luna — afirmou que Villas Bôas "mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda sua gestão, reafirmando o compromisso da Força Terrestre com os preceitos constitucionais, sem jamais esquecer a origem de seus quadros que é o povo brasileiro". Temer não se pronunciou sobre o tuíte. Mas uma semana antes, fora da agenda oficial, esteve na casa de Villas Bôas para um encontro reservado. Segundo a Folha de S. Paulo, ambos teriam tratado sobre a intervenção no Rio.
Por sua vez, Vinicius Mariano de Carvalho, professor do Brazil Institute do King's College, em Londres, argumentou à BBC Brasil que a mensagem do general reforçava a posição de que "o Exército não interferirá em nada". Para ele, o tuíte se dirigia sobretudo à própria tropa, com o objetivo de se "posicionar internamente para evitar rachaduras da coesão". As mensagens na rede social foi precedida, horas antes, no meio da tarde, por telefonemas a generais quatro estrelas. Eles foram avisados sobre o pronunciamento que faria às 20h39 no Twitter. Suas declarações destoam do perfil moderado pelo qual Villas Bôas é conhecido e admirado no meio político. Uma possível interpretação, levantada pelo jornal O Globo, é a de que sua mensagem serviu para aplacar a pressão de generais linha-dura, insatisfeitos com o que consideram uma apropriação política do Exército pelo Governo Temer, sobretudo com a intervenção no Rio. Assim, teria adotado um tom mais duro que o habitual para manter o controle e o restante da tropa unida em torno de si. "Eu li o Twitter várias vezes e me pareceu que ele apenas resguarda a Força, evita vozes aventureiras e outra vez mostra que a responsabilidade sobre a crise não está nas mãos das Forças Armadas", afirma Carvalho.
Mas para Aarão Reis, o general, "a rigor, cometeu uma ilegalidade". E "deveria ser chamado às falas". "Mas quem o faria? O presidente Temer é uma figura política patética, inteiramente desmoralizada. O Congresso Nacional é um cadáver que apodrece a céu abeto. O STF tornou-se um palco de disputa de vaidades. Quanto ao ministro da Defesa, é um colega do general Villas Bôas, superior apenas formalmente", argumenta.
O historiador da UFF vê como urgente a defesa da democracia, a qual "está balançando e só não vê isto quem não quer". E conclui: "Não precisamos de tutores ou de anjos da guarda, uniformizados ou não, tampouco de líderes carismáticos, precisamos é que o povo se organize autonomamente no contexto de uma frente social e política plural, de entidades, movimentos sociais e lideranças políticas para defender a permanência, e o aperfeiçoamento, da democracia no Brasil".
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Pressão política de militares no HC de Lula revela como Exército ganha espaço com Temer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU