11 Abril 2018
Duas das águas minerais mais premiadas do mundo – a de Caxambu e a de Cambuquira, em Minas Gerais – foram entregues pelo poder público a uma empresa sem nenhuma experiência no setor, especializada em tratamento de piscinas e caixas d´água. Apesar de ao menos quatro tentativas de suspensão do edital na Justiça, a Maximus Prestação de Serviços Eirelli ganhou uma licitação, aberta em 2017, pela Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas, Codemig, e começou na semana passada a atuar em Caxambu. Em seguida, a firma iniciará as operações em Cambuquira. O prazo de concessão é de pelo menos 15 anos, podendo chegar a 30.
Bicas de água mineral que moradores utilizam nas cidades de Cambuquira e Caxambu, em Minas Gerais (Fonte: The Intercept)
A reportagem é de Joana Suarez, publicada por El País, 10-04-2018.
Não bastasse a falta de experiência, a empresa ainda teve como representante no processo licitatório Elton Sales, dono de uma outra firma, a Embraser Serviços, que está proibida de ser contratada pelo poder público por ter descumprido contratos anteriores celebrados com o Governo de Minas. Por fim, a ONG Nova Cambuquira denuncia que o edital de concessão não contemplou medidas para a proteção das fontes, não teve preocupação com aspectos culturais e históricos das águas, dispensou uma fiscalização rigorosa da operação e não foi transparente em relação ao negócio.
A preocupação é de que as fontes se esgotem em pouco tempo com uma possível superexploração, a exemplo do que aconteceu em outras cidades que fazem parte do Circuito das Águas de Minas. Foi o caso das águas de São Lourenço, exploradas pela Nestlé, e das fontes secas de Lambar, também no Sul de Minas, afetadas, segundo o Ministério Público, por “licenciamentos mal efetuados, falta de fiscalização e de estudos técnicos, sendo evidente a responsabilidade do empreendedor”.
A Codemig informou que a empresa vencedora do pregão “se sujeita à fiscalização do Departamento Nacional de Proteção Mineral (DNPM) e de órgãos ambientais e de vigilância sanitária”. Os relatórios da exploração, porém, são de acesso exclusivo de órgãos federais. Entidades sociais, como as ONGs que defendem a preservação das águas, não terão acesso. A auditoria independente que deve ser realizada para examinar as demonstrações financeiras da concessão também não serão divulgadas.
A licitação vencida pela Maximus prevê prioridade para explorar outras fontes minerais em Araxá, Lambari e Contendas, também sob o controle da Codemig.
A lista de atividades registradas pela empresa é grande, mas não há nada relacionado à exploração de água mineral. A Maximus é especializada em “obras de urbanização; manutenção de rede de energia; serviços de escritório, apoio administrativo e portaria; limpeza em prédios e caixa d’água; tratamento de piscinas e controle de pragas urbanas”.
A empresa venceu um edital cercado de controvérsias, cuja única exigência para explorar as águas e usar as fábricas de engarrafamento era que a vencedora demonstrasse capacidade de distribuição de 12 milhões de litros por ano. E esse requisito, de acordo com a Codemig, foi atendido pela Maximus, apesar de ela nunca ter atuado no ramo.
O edital ainda desobriga a utilização das marcas “Caxambu” e “Cambuquira”, usadas até então. Agora, as águas serão retiradas lá, mas o “parceiro privado poderá adotar a solução econômica mais vantajosa para a parceria”, diz o texto.
Na avaliação do Ministério Público, a exploração das águas deve acontecer observando as regras do meio ambiente. Há quatro anos que o órgão mantém tratativas com a Codemig e a prefeitura de Cambuquira para recuperação e proteção das águas mineiras da cidade, e a situação não melhora.
“Se todas as fontes secarem, tem que fechar o parque, haverá prejuízo à população, ao turismo, as consequências são incalculáveis no futuro”, pondera o procurador da República Marcelo José Ferreira.
A Codemig afirmou que “obedece rigorosamente aos limites estabelecidos (de exploração) e zela pela proteção do meio ambiente, um dos pilares do desenvolvimento sustentável”.
Para começar a operar, a empresa Maximus precisa apenas da Autorização Ambiental de Funcionamento, que é autodeclaratória. Basta que um responsável técnico da própria empresa assine um documento e envie à Secretaria estadual de Meio Ambiente. Para Caxambu, já existe essa autorização até 2020 e, para Cambuquira, foi renovada até 2021. O Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental, que dão mais segurança para respaldar a atividade e contemplam a participação popular em audiência pública, foram dispensados pela Codemig no edital. A companhia afirmou que a atividade de “extração de água mineral ou potável de mesa é considerada pelo Copam (Conselho Estadual de Política Ambiental) como sendo de pequeno potencial poluidor, de modo que seu licenciamento ambiental é simplificado”.
Moradores e visitantes de Cambuquira vão diariamente ao parque buscar água mineral e gasosa, de graça. É tradição da cidade que faz fila para encher as garrafas.
“Aqui você se sente integrado com a natureza, com a água. Se a gente bebe uma água que não é gaseificada, não mata a sede, nosso organismo já se acostumou”, afirma o professor Marcos Rodrigues, de 45 anos, que nasceu e vive na cidade.
Uma placa no parque avisa que são permitidas até seis garrafas por pessoa. Algumas fontes ficam abertas 20 horas, outras 10 horas por dia. Com a exploração privada, os moradores têm medo que essa rotina acabe.
“A água tem valor simbólico, indígena e religioso, é o nosso maior ‘matrimônio’. A gente fala assim, por ser nossa mãe natureza. É o elemento que nos identifica enquanto povo, toda nossa vida gira em torno dessas águas”, explica Ana Paula Lemes, representante das ONGs Nova Cambuquira, Caxambu Mais e da associação Amigos do Parque das Águas.
Enquanto o Governo de Minas passava à iniciativa privada a exploração da água, as fontes de Cambuquira já começavam a dar sinais de esgotamento, com a redução da vazão nos últimos anos, afetada, inclusive, pelo aumento da população.
“O grande problema é a urbanização no entorno do Parque das Águas de Cambuquira, a má administração afetou na vazão das águas, você vai lá hoje em dia e vê que as bicas já não são mais como antes. Pesquisas mostraram indícios de contaminação da água”, explicou o procurador Marcelo Ferreira, esclarecendo que esse cenário pode ser ainda mais prejudicado com a privatização da exploração.
A capacidade máxima de exploração das fontes é definida pelo Departamento Nacional da Produção Mineral, ao aprovar o Plano de Aproveitamento Econômico. Para Caxambu é de 31,2 milhões litros por ano e para Cambuquira, 2,7 milhões de litros por ano. Valores considerados muito alto pelas ONGs Nova Cambuquira e Caxambu Mais. A representante dessas entidades, Ana Paula Lemes, explica que esses valores têm que ser definidos em estudo de impacto ambiental que considere tanto a participação popular em audiência pública, quanto os aspectos da água em termos mais amplos, “não só econômicos como o DNPM define, que é para explorar e ganhar o máximo possível com isso”.
O edital estabelece a proibição da “perfuração de poço tubular profundo”. Lemes destacou que é preciso evitar qualquer tipo de perfuração do solo ou bombeamento que não respeite a vazão natural da fonte. “Em Caxambu, o bombeamento é permitido durante 24 horas, a água é a maior vítima disso”.
Outro sintoma identificado em laudos técnicos apresentados pelo Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal foi o aumento dos níveis de nitrato, por conta de problemas de saneamento básico nas cidades. Isso tudo somado à privatização da exploração das fontes coloca os aquíferos que estão sob as cidades do Circuito das Águas sob grave risco.
Nas tabelas apresentadas na ação civil pública, uma das fontes de Cambuquira, por exemplo, passou de 1,60 mg/l de teor de nitrato, em 1996, para 7,25 mg/l, em 2013. Valores acima de 10 mg/L torna a água imprópria para consumo. Sobre a queda no volume de água, o documento chama atenção, entre outros dados, para a redução de quase 45% na vazão da Fonte Magnesiana, no parque da cidade, entre 2011 e 2013.
O modelo de privatização escolhido pela Codemig foi o de Sociedade em Conta de Participação, em que a empresa privada explora, e o ente público não participa das atividades e da administração, apenas recebendo, neste caso, 45% do lucro líquido da operação. Para ser competitivo no mercado, as informações sobre o negócio são consideradas “estratégicas” e os relatórios da operação não são divulgados. Assim que o contrato foi assinado com a empresa Máximus, em janeiro deste ano, no mês seguinte a ONG Nova Cambuquira solicitou acesso aos documentos da exploração e recebeu como resposta da Codemig que o contrato já estava classificado como de “sigilo reservado”.
“A água está se tornando algo estratégico economicamente pela sua própria escassez. O edital não prevê limite máximo de exploração. A gente não sabe o quanto a empresa pode explorar nem o quanto isso afetará o recurso hidromineral e os povos das águas da Mantiqueira”, afirma Lemes.
Fora essas questões, a ONG Nova Cambuquira encaminhou denúncias para investigação em relação a possíveis irregularidades administrativas do presidente da Codemig, Marco Antônio Castello Branco. Logo após ocupar o cargo na companhia, ele se tornou sócio de um empreendimento do ramo de cerveja, água mineral e afins. Em resposta, a companhia afirmou que “não há qualquer irregularidade ou conflito de interesse, já que Marco Antônio Castello Branco não é administrador, mas acionista da empresa Krug Bier, que não participou da referida licitação”.
Em 2014, três anos antes do edital de privatização, os Ministérios Públicos estadual e federal entraram com a ação civil pública para que fossem adotadas medidas preventivas e protetivas em relação às águas de Cambuquira pelos entes responsáveis (Codemig, prefeitura de Cambuquira e Copasa – Companhia de Saneamento de Minas Gerais, que chegou a explorar as águas da cidade em 2007). A Codemig iniciou o procedimento licitatório apesar desse processo. Foi nesse contexto que o MPMG solicitou a suspensão da licitação.
A companhia mineira informou a The Intercept Brasil que desconhece esses estudos de vazão e contaminação e que a empresa contratada “deverá custear programas de monitoramento hídrico do controle de vazão e da qualidade das águas”. Em nota, enfatiza ainda que “a licitação não busca privatizar fontes e parques, mas estabelecer uma parceria produtiva com sócio apto a assegurar a execução do serviço com qualidade, em benefício de Minas Gerais e dos mineiros”.
Em fevereiro deste ano, o juiz federal Luiz Antônio Ribeiro da Cruz deu uma sentença atendendo parte dos pedidos dos Ministérios Públicos, mas negou a liminar de suspensão do edital. Na decisão, ficou determinado que a Codemig e os outros envolvidos façam o monitoramento das vazões das águas trimestralmente por dois anos e apresentem projetos de saneamento e de recuperação das águas e margens do córrego. Ainda cabe recurso.
“Nossa esperança hoje, é via recurso, mas a Justiça é lenta. A licitação funcionou com fortes indícios de fraudes, ignoradas. A situação é séria, a gente não tem um controle social dessa exploração”, conclui a advogada Ana Paula Lemes.
Segundo sua avaliação, “vamos ver cada vez mais grandes corporações tendo o domínio e a posse desse bem que é essencial a vida, um direito humano”. O fato de a água mineral no Brasil seguir as regras de exploração determinadas pelo código minerário, com viés desenvolvimentista e econômico – nota Lemes – “coloca em xeque um recurso hídrico e alimento que tem que ser preservado para futuras gerações”.
ONGs e moradores reiteram que essas privatizações estão sendo executadas sem participação da sociedade, “de uma forma violenta”, acrescenta Lemes.
A Codemig esclareceu que antes de lançar o edital, o Governo de Minas Gerais realizou prévia consulta pública sobre o tema, entre os dias 7 e 23 de fevereiro de 2017, “um processo dialógico, democrático e transparente”.
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Águas minerais brasileiras ganharam prêmios internacionais – e foram entregues a uma empresa que limpa piscinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU