04 Abril 2018
"Enquanto se procura encher a população de raiva cega contra o crime, de forma individualizada e isolada, trata-se de impedir que a sua indignação ética - essa sim consciente e disposta a enfrentar toda a injustiça, especialmente a social - se informe bem e se coloque decididamente em ação contra a sua verdadeira e violenta causa", alerta Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Dia 4 deste abril estão se completando 50 anos do assassinato de Martin Luther King. Tudo o que este reconhecido pacifista representou, não só para a emancipação social das/os negras/os dos Estados Unidos contra o racismo, como para os direitos humanos civis e sociais de todo o mundo, deveria servir de advertência para aqueles grupos de brasileiras/os arregimentados em confronto violento de ódio recíproco, escapando hoje de todo o controle público ou privado.
Não faltam testemunhos do passado chamando a atenção para lições como as de “a violência gera sempre novas violências”, “onde interfere a paixão humana, imenso é o campo do imprevisto”, “já passou o tempo do dente por dente olho por olho”, etc...
Até hoje o famoso discurso proferido pelo negro Martin Luther, em 28 de agosto de 1963, confirma essas lições, sendo lembrado como uma das mais notáveis defesas de direitos a serem respeitados e garantidos sem necessidade do uso da violência, mesmo aquela considerada legítima quando parte de um Estado realmente democrático e de direito.
Os Estados Unidos viviam, então, no auge da crise social sob a qual as/os negras/os sofriam de ódio, preconceito, discriminação, repressão imposta à sua dignidade, o respeito minimamente devido a qualquer ser humano. Guardadas as grandes diferenças e proporções, uma situação como essa não está, mesmo assim, de todo ausente no Brasil contemporâneo.
Um exemplo aparentemente isolado desse fato vem de ser dado pelo ex senador Eduardo Suplicy. Lembrando uma das passagens do discurso de Martin Luther, desculpou-se, junto a dois integrantes do Movimento Brasil Livre, por entender inconveniente comparecer a um evento programado anteriormente, no qual ele participaria para, certamente, opinar sobre as causas dessa contaminação de ódio e violência que hoje divide grupos de brasileiras/os de diferentes ideologias e interesses, sob total desconsideração das previsíveis e más consequências daí decorrentes.
Acusando diretamente representantes daquele Movimento, por constituírem parte responsável desse grave problema, Suplicy repetiu Martin Luther, conforme pode-se ler em diversas publicações da internet: “Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta no plano alto da dignidade e da disciplina. Não podemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Todas as vezes e a cada vez, nós precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a força física com a força da alma.”
Eduardo Suplicy está detectando, em tempo, que o pavio do ódio e da intolerância - até aqui se preparando para aproveitar a ocasião mais oportuna - já foi aceso, e há quem queira chegue sua faísca à bomba da explosão, dependendo apenas, talvez, do que decidir o Supremo Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus impetrando pelo ex presidente Lula, neste mesmo 4 de abril.
O que há de comum entre as agressões recíprocas circulando nas redes sociais, descendo às fake news, inspirando beligerância, medo, angústia, insegurança, chegando ao cúmulo de aconselhar até a utilização de armas para enfrentar “inimigos” (!?), é a circunstância de cada parte se considerar dona da verdade e da moral privada e pública, toda a corrupção política viciando apenas a pessoa ou o grupo que a ela se contraponha. O ruído das acusações, de ordem moral predominantemente, não permite ser ouvida qualquer advertência sensata, prudente, inclusive aquela indispensável para qualquer do povo se conscientizar de a violência de hoje não ser episódica. Ela se encontra estruturalmente presente em poderes de dominação aos quais serve de escudo para se perpetuarem impunes, como o demonstra Gisalio Cerqueira Filho, num estudo publicado em 1987 (“Brasil, violência e conciliação no dia a dia”, Porto Alegre: Editora Sergio Fabris), ainda válido para o que está acontecendo agora no país:
“Embora frequentemente o debate sobre a violência se detenha na questão criminal e recalque a violência no quotidiano, há sempre uma possibilidade de, analisando-se a violência numa perspectiva histórica, tratarmos da brutal exclusão dos setores dominados nos processos decisórios das sociedades latino-americanas em geral - e na sociedade brasileira em particular. Todavia, os meios de comunicação de massa privilegiam especificamente as práticas criminais tidas como violentas; conferindo a essas manifestações um caráter de desvio, com relação a normas que regularizam a vida social. Assim fazendo, os meios de comunicação social acabam por entravar o processo de descoberta pessoal e coletiva de que a violência, para além das práticas criminais, pode estar entranhada na própria forma como a estrutura social se organiza. Mais ainda: de que a violência se manifesta de modo impiedoso justamente sobre os mais fracos e oprimidos e nunca igualmente sobre todos.”
Chega-se assim novamente ao ponto oculto dentro das relações sociais, mas nunca deixado de ser denunciado por quem tem olhos de realmente ver, ouvidos de realmente ouvir, sentimentos e emoções motivando realmente agir. Enquanto se procura encher a população de raiva cega contra o crime, de forma individualizada e isolada, trata-se de impedir que a sua indignação ética - essa sim consciente e disposta a enfrentar toda a injustiça, especialmente a social - se informe bem e se coloque decididamente em ação contra a sua verdadeira e violenta causa.
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O desperdício das lições de não violência no Brasil de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU