04 Abril 2018
Em junho de 1966, menos de dois anos antes de ser assassinado, o Rev. Martin Luther King pregava no púlpito de Atlanta sobre a dança dinâmica entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa, a morte e a ressurreição, o desespero e a esperança.
"A Igreja deve dizer aos homens que a Sexta-feira Santa é um fato da vida tanto quanto a Páscoa; o fracasso é um fato da vida tanto quanto o sucesso; a decepção é um fato da vida tanto quanto a realização", disse. Luther King acrescentou ainda que Deus não nos prometeu que evitaríamos "provações e tribulações”, mas que "para quem tem fé em Deus, esse Deus tem o poder de dar uma espécie de equilíbrio interior através de sua dor".
A reportagem é de Michael Eric Dyson, publicada por The New York Times, 31-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Michael Eric Dyson, pastor batista, é autor do livro "What Truth Sounds Like: Robert F. Kennedy, James Baldwin, and Our Unfinished Conversation About Race in America”, que será lançado em breve.
Praticamente desde que ele emergiu no cenário nacional, em meados dos anos 50, até seu fim trágico em 1968, dez dias antes da Páscoa, Luther King foi perseguido pela morte. Foi a sua fé profunda que fez com que ele atravessasse suas muitas provações e tribulações, até ser fatalmente baleado na varanda de uma pousada às 18:01 de 4 de abril, em Memphis.
A fé convocou Luther King, ordenado pregador batista, ao ministério. Isso fez com que ele causasse problemas para Jesus e levou-o a criticar a Igreja, criticar o mundo ao seu redor e, por sua vez, ser criticado por isso. Ao honrar seu legado hoje, não devemos deixar a complacência ou a fé limitada nos cegar para o que precisa mexer conosco também.
Luther King acreditava fervorosamente que um compromisso com Deus era um compromisso de melhorar a humanidade e que as práticas espirituais de oração e adoração deveriam se traduzir em preocupação com os pobres e vulneráveis. Certamente Luther King gostaria que vivêssemos sua fé específica: trabalhar para vencer o racismo, posicionar-se contra a guerra e combater a pobreza com políticas públicas iluminadas e compassivas.
Durante sua vida, ele ficou decepcionado com a complacência tanto da igreja negra quanto da branca. E estaria igualmente decepcionado hoje. No geral, a igreja branca continua sendo um bastião de indiferença ao sofrimento do povo negro. Os evangélicos brancos continuam entrados na piedade pessoal como medida do verdadeiro cristianismo, negligenciando o Evangelho Social que dá vida às palavras de Jesus perante a multidão. Luther King via a fé como um chamado urgente para servir, uma ética altruísta de preocupação que, segundo ele, citando o profeta hebreu Amós, faz correr "a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene”.
Hoje, em meio ao dogmatismo ressurgente e às profundas divisões nos Estados Unidos, a fé é muitas vezes considerada um oásis em retiro, um paraíso de desengajamento político. Este domingo de Páscoa, ao marcarmos os 50 anos da morte de Luther King, é um momento propício e necessário para lembrar sua fé — e reacender sua urgência.
Luther King muitas vezes declarava sua vocação de pastor citando uma espécie de genealogia bíblica do discurso sagrada negro, através do percurso de sua família: "Eu cresci na igreja. Meu pai é pastor, meu avô era pastor, meu bisavô era pastor, meu irmão é pastor. O irmão do meu pai é pastor. Então eu não tive muita escolha".
Mas sua fé sofreu mudanças significativas. No início, ele foi desencorajado de fazer parte do ministério por uma linha na pregação negra muito emotiva mas pouco sensata. Depois, no Morehouse College, seu encontro com pregadores como o diretor Benjamin Mays fez com que ele acreditasse que o ministério era intelectualmente respeitável.
Uma situação em que estava cozinha, por volta de meia-noite, tomando um café depois de receber ligações ameaçando explodir seus miolos e sua casa durante o boicote aos ônibus de Montgomery fez com que, mesmo tomado pelo medo, Luther King tivesse um senso da inabalável presença de Deus. Ele dizia que, em vez de herdar a fé, ele próprio teve de estabelecer os termos de sua relação com o Todo-poderoso.
"Precisei conhecer Deus por mim mesmo", explicou. "Eu ouvia uma voz interior me dizendo: 'Martin Luther, lute pela moralidade, lute pela justiça, lute pela verdade. E eis que eu estarei convosco, até o fim do mundo.'"
E assim fez Luther King pelo resto da vida. Sua fé levou-o a combater Jim Crow, o ódio horrendo que se reproduzia na alma branca e a inferioridade assombrosa que deixava na mente dos negros. Levou-o a falar com valentia contra negros serem linchados, bombardeados e baleados quando o que queriam era apenas o que os brancos já tinham: tomar um café em qualquer lancheria, ficar em qualquer hotel que pudessem pagar, beber água em qualquer fonte por que passassem, sentar onde quisessem no ônibus... e frequentar a escola mais próxima.
A fé de Luther King fez com que ele entrasse em desacordo com os cristãos brancos que acreditavam que sua missão era manter as raças separadas — as mesmas pessoas cujos antepassados acreditavam que seu dever era escravizar os africanos e punir os negros que tentavam fugir do sofrimento. Luther King percebeu que não estava simplesmente em guerra contra uma sociedade construída sobre o apartheid legal, mas que também tinha de lutar contra uma cultura racista cujo suporte teológico advinha do cristianismo branco.
Os evangélicos brancos opunham-se a Luther King porque dividiram corpo e alma de forma conveniente: a raça era uma questão social que deveria ser determinada por regras na sociedade e leis geradas pelo governo. Essa visão significava que o status quo racista era sagrado. O objetivo da religião era salvar as almas do povo negro através da pregação de um evangelho de arrependimento pelo pecado pessoal, mesmo que a segregação frequentemente encontrasse um mandato bíblico branco. Depois que Luther King falou no Seminário Teológico Batista do Sul (Southern Baptist Theological Seminary), em 1961, a principal instituição da maior denominação protestante dos EUA, muitas igrejas brancas do sul suspenderam suas verbas.
Se os racistas radicais é que eram uma clara ameaça ao bem-estar dos negros, os brancos moderados que alegavam apoiar os direitos civis mas pediram cautela na busca por justiça acabaram se revelando uma praga ainda pior. Em 1963, oito sacerdotes brancos do Alabama emitiram uma declaração pedindo que os líderes negros diminuíssem a intensidade da campanha contra a segregação em Birmingham, no Alabama. Os clérigos citavam "forasteiros" que tinham ido para Birmingham para liderar manifestações "insensatas e inoportunas".
Os clérigos brancos acusaram os protestos negros de incitar o ódio e a violência através de suas "medidas extremas", argumentando que a pressão por sua causa "deve se dar nos tribunais e nas negociações com os líderes locais, e não nas ruas".
Sua declaração levou Luther King, preso por protestar contra a injustiça, a elaborar a famosa “Carta da prisão de Birmingham", em que quase chegou “à lamentável conclusão de que a maior pedra no caminho dos negros em seu avanço rumo à liberdade não é o White Citizen’s Counciler ou o membro da Ku Klux Klan, mas os brancos moderados, que são mais zelosos da 'ordem' do que da justiça”. Foram os mesmos moderados brancos que levaram Luther King, perto do fim de sua vida, a concluir que "a maioria dos estadunidenses é inconscientemente racista”.
Não foi apenas a igreja branca que Luther King teve de combater. Em 1961, ele juntou-se a outros ministros negros que estavam insatisfeitos com a liderança conservadora da Convenção Batista Nacional para formar um grupo de oposição, a Convenção Nacional Batista Progressista (Progressive National Baptist Convention). Algumas das críticas mais duras de Luther King foram reservadas à igreja negra. Menos de dois meses antes de falecer, Luther King e sua Conferência da Liderança Cristã do Sul convocaram uma reunião de ministros em Miami.
"Não viemos a Miami para brincar", advertiu aos ouvintes em um discurso intitulado "To Minister to the Valley". E não brincou mesmo. "Vamos admitir que até a igreja negra muitas vezes foi luz de ré em vez de ser farol", pregou ele. Enquanto a injustiça social rugia, os ministros ficaram calados "detrás da segurança dos vitrais". Enquanto seus membros sofriam pela pobreza, pronunciavam "irrelevâncias piedosas e trivialidades hipócritas".
E Luther King chegou com tudo: "Vamos admitir que muitas vezes estivemos mais preocupados com a distância entre os eixos dos carros e quanto dinheiro teremos nas celebrações de aniversários do que com os problemas das pessoas que possibilitaram que tivéssemos essas coisas". Luther King argumentava que "a grande tragédia é que o cristianismo não via que estava à beira de uma revolução”.
E ainda não vê.
Enquanto órgãos negros são punidos ou caem no esquecimento, no reinado repressivo da brutalidade policial, muitas igrejas brancas permanecem em silêncio. Na verdade, um número esmagador de evangélicos brancos juntam-se para apoiar um presidente que demonstrou abraçar publicamente a religião ainda menos que Ronald Reagan. Porém, os evangélicos brancos rezam pelo presidente Trump enquanto seu governo e suas palavras perseguem os negros, imigrantes, transexuais e pobres. Há certa oposição corajosa entre os Batistas do sul, como o crítico de Trump Russell Moore, que ousou discordar. Mas são poucas vozes.
O comportamento da igreja negra também foi vergonhoso. Com algumas notáveis exceções, as igrejas dos negros muitas vezes foram cronicamente indiferentes à luta contra a supremacia branca. Neste domingo de Páscoa, a pregação obediente de muitos ministros destaca um Deus crucificado sem se deter na morte do jovem de 22 anos Stephon Clark, em Sacramento, durante um tiroteio que até mesmo o prefeito da cidade, Darrell Steinberg, disse que estava “muito errado”.
Em vez disso, as igrejas do povo negro tiveram prosperidade pessoal e ascensão à custa do Evangelho Social que Luther King pregava. Para cada pastor progressista como Frederick Douglass Haynes, em Dallas, há centenas de pastores que transformam suas terríveis advertências sobre o pecado em carros cada vez maiores e ainda mais dinheiro para seus lucrativos aniversários pastorais. Para cada um que prega a virtude da consciência social, como Gina Stewart, em Memphis, há muitos outros que usam a Bíblia apenas para repreender os devassos e pecadores.
Alguns ministros negros chegaram a franzir a testa a respeito das falhas morais de Luther King como desculpa para evitar a mensagem promovida por ele quando era pastor itinerante da justiça social. Luther King tem o crédito de reconhecer seus defeitos e alertar as pessoas a não torná-lo santo.
Martin Luther King Jr. foi um religioso que não se importava de causar confusão para Deus. Ele acreditava que seu propósito na vida era trazer justiça ao maior número de filhos de Deus possível, proclamando o poder revolucionário de crer. E não era mera metáfora: ele acreditava que os Estados Unidos deveriam passar por uma "revolução de valores", para que pudessem começar a cumprir a missão do Evangelho de cuidar dos que mais precisam da ajuda de Deus.
"Deus não chamou os Estados Unidos para fazer o que está fazendo no mundo hoje", disse Luther King em seu famoso sermão “Meu Instinto de Bumbo”, realizado do púlpito de sua casa, na Igreja Batista de Ebenezer, em Atlanta, dois meses antes de ser assassinado. "Deus tem um jeito de colocar até mesmo países no devido lugar. O Deus que eu adoro tem um jeito de dizer: 'Não brinque comigo'".
Enquanto os Estados Unidos, na encarnação atual, com a liderança atual, oscilam entre a arrogância, o isolacionismo e a vaidade, que são os portais do declínio moral e da autodestruição política, o país precisa relembrar a fé de Martin Luther King Jr. Ele via a fé como instrumento de mudança, uma fonte constante de inspiração para refazer o mundo à imagem justa e redentora de Deus. No dia sagrado da Páscoa, em vez de nos encolhermos na segurança da fé, devemos, assim como fez Luther King, carregar o fardo que pertence aos menos afortunados e voltar a servir à humanidade.
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Esquecemos no que Luther King acreditava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU