28 Março 2018
“Os ataques a Emma revelam certo nervosismo ideológico. Emma representa a mudança, não apenas por ser jovem, bissexual e uma incômoda insuportável para a poderosa Associação Nacional do Rifle, mas também por fazer parte de uma geração que pode representar um momento crítico na história deste país e do mundo”. A reflexão é de Jorge Majfud, escritor uruguaio, professor na Jacksonville University, em artigo publicado por Alai, 26-03-2018. A tradução é de André Langer.
Contrariamente a outras chacinas absurdas ocorridas em escolas secundárias dos Estados Unidos, a de Parkland tem sido diferente por provocar uma onda de manifestações em massa em todos os cantos dos Estados Unidos e em várias partes do mundo. O medo: só a juventude estadunidense pode conseguir alguma mudança social neste país, ainda que sejam mudanças apenas tímidas quando comparadas com o terremoto dos anos 60, conquistas que foram, anos mais tarde, quase aniquiladas pela reação conservadora da era Reagan-Thatcher. Ou quase, porque se neste país há mais liberdades individuais do que naquela época, isso se deve a esses demonizados movimentos de resistência social e não a nenhuma das guerras contra um país pequeno e distante.
Os anos sessenta legaram muitas coisas, embora depois tenham sido gradualmente desprestigiados pela reação e pela propaganda conservadora que, segundo todas as pesquisas, aumentou a desproporção da acumulação de riqueza neste país, agora concentrada quase exclusivamente em uma pequena minoria, enquanto dezenas de milhões de trabalhadores e estudantes não têm nada além de dívidas, dezenas de milhares morrem a cada ano por causa das drogas ou do suicídio (morrem mais soldados quando retornam do que nos campos de batalha; eu conheci o drama pessoal de mais de um) e dezenas de milhares morrem por armas de fogo. Nos Estados Unidos, somente as crianças (essas que recebem fuzis nos seus aniversários e os escoteiros promovem como símbolo de liberdade e masculinidade) matam mais pessoas, por acidente, do que todos os terroristas juntos, mas sobre isso não se ouve uma única palavra em nenhum apaixonado debate político.
Se este país nas últimas gerações conseguiu algumas liberdades, não foi por causa dos soldados no Vietnã, como afirma o sagrado clichê, mas se deve àqueles corajosos organizadores de lutas sociais como Luther King ou César Chávez. A Guerra do Vietnã foi miseravelmente perdida e, além de milhões de mortos, não deixou nada de positivo para este país. Menos liberdades e direitos. Por outro lado, a revolução feminista do Ocidente, dos negros no Sul da União e dos diaristas da Califórnia deram, esses sim, resultados concretos, embora hoje estejam na berlinda da última reação, que talvez não seja outra coisa que um punhado de afogados de uma ordem cambaleante.
Um dos rostos visíveis do mais recente movimento é o de Emma González, sobrevivente do massacre de Parkland e filha de exilados cubanos. Emma representa muitos outros cubano-estadunidenses da sua geração, jovens libertados da paranoia e da obsessão pela derrota de Baía dos Porcos, que, em todo caso, precisa conviver com elementos da velha geração, alguns dos quais são considerados terroristas até pelo FBI, mas que, em todo caso, andam livres em Miami.
Um dos poucos escritores e intelectuais que representam este grupo, a escritora Zoe Valdés, referiu-se a Emma González como uma comunista “machorra” (estéril). A acusação não é nova. Ao longo da história, os grupos mais reacionários, as tradicionais classes dominantes da América Latina e até dos Estados Unidos (eu diria que em menor grau), praticaram o macartismo, segundo o qual qualquer crítico capaz de dizer suas verdades incômodas ao poder dominante é, automaticamente, um comunista. E pouco importa se essas verdades são objetivamente documentadas. Se você disser que o golpe de Estado na Guatemala de 1954 foi orquestrado pela CIA e pela UFC contra um governo democrático, você é comunista. Se você disser o mesmo sobre o Chile em 1973, você é marxista-leninista, etc.
No entanto, os comunistas não precisam ser apontados. Em geral, os comunistas são reconhecidos como tais. Os fascistas, racistas e machistas, por outro lado, não. É preciso adivinhá-los ou deduzi-los de acordo com seus ditos e ações.
Agora, que uma jovem e milhões de jovens marchem por suas vidas e questionem com determinação a religião das armas, que não se encaixem no estereótipo imposto (pré-fabricado e reduzido a uma caricatura) do patriota, nos estreitos limites dos mitos sociais, que não seguem os caminhos traçados pelas vacas sagradas rumo ao matadouro, transforma-os em perigosos comunistas. Mas me parece que esse hábito de rotular de comunista todo crítico inconformado, todo democrata radical, é um pouco exagerado. Miami, por sua vez, está cheia de ex-comunistas que um dia se deram conta, como por uma súbita revelação, do grande negócio (econômico e moral) que era envolver-se na bandeira do vencedor e mudaram de lado ou tornaram-se mais caubóis que John Wayne.
A escassez de recursos intelectuais daqueles que sacam a palavra mágica (comunista) como quem saca um revólver é bem conhecida. Há alguns anos, o pai cubano do senador e candidato à presidência, Ted Cruz, afirmou que a Teoria da Evolução era uma perversão do marxismo. Até mesmo a teoria da mudança climática, que ameaçava os lucros das super-petroleiras, até recentemente era o produto dessas pessoas más.
Esta geração (uma parte significativa) teve a coragem de dizer ‘Chega, basta’. E o disse de forma escandalosa para uma sociedade fanática: “chega de orações e de condolências”. Por isso, devem demonizá-los como comunistas ou perigosos rebeldes, lésbicas ou conspiradores, como nos anos cinquenta os sulistas marchavam com cartazes denunciando a imoralidade dos ativistas com cartazes que diziam que “a integração racial é comunismo” enquanto pediam aos seus governantes para que salvassem a “América cristã”.
Os ataques a Emma revelam certo nervosismo ideológico. (Um candidato republicano a definiu como “lésbica skinhead”. Ela se assume como bissexual. Não é rebelde por ser lésbica, mas por ter a coragem de se assumir como é em uma sociedade hostil e, não poucas vezes, hipócrita.) Emma representa a mudança, não apenas por ser jovem, bissexual e uma incômoda insuportável para a poderosa Associação Nacional do Rifle, mas também por fazer parte de uma geração que pode representar um momento crítico na história deste país e do mundo. Homens e mulheres (sobretudo os homens) escreveram leis e constituições. Homens e mulheres (sobretudo as mulheres) podem e devem reescrevê-las de acordo com as necessidades dos vivos, e não dos mortos.
Nem Zoe Valdés nem ninguém tem autoridade moral para criticar essa corajosa jovem. Todo o resto são clichês da Guerra Fria que a nova geração não engole tão facilmente. São medos próprios dos superpoderes, que não são poderes absolutos e sabem quando um tremor repentino mexe suas bochechas.
Nos próximos anos veremos uma luta existencial da reação da onda neopatriarcal, nacionalista, racista e imperialista (caricatos anos oitenta ainda em ascensão, hoje no poder político), contra uma geração mais jovem, a pé, pronta para resistir às narrativas que escondem os verdadeiros problemas do mundo, disposta a não acreditar em mitos que nem mesmo funcionam, com rebeldia suficiente para dizer algo tão simples como ‘Chega’.
Assista ao discurso de Emma, em inglês:
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Emma González: quando a masculinidade de Zeus treme - Instituto Humanitas Unisinos - IHU