28 Outubro 2015
Um depoimento revelador de Túlio Kahn, doutor em ciência política pela USP e um dos principais criminólogos do país.
Passei a prestar atenção na questão das armas de fogo quando trabalhava no Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), no final dos anos 1990, e a ONU (Organização das Nações Unidas) publicara um estudo internacional sugerindo que o Brasil era o país onde proporcionalmente mais se usava armas de fogo para cometer homicídios.
A reportagem é de Túlio Kahn, publicada por CartaCapital, 28-10-2015.
Havia uma percepção difusa de que as armas estavam de algum modo ligadas ao nosso crescente número de assassinatos – tanto que em 1997 o porte ilegal passou de contravenção a crime e é criado o SINARM (Sistema Nacional de Armas) – mas pouquíssimos estudos empíricos sobre o tema.
Como sempre, sofríamos do crônico problema da falta de dados e de pesquisas para embasar políticas públicas. A Lei 4937, de 1997, produziu um forte impacto na venda de armas no país e para reclamar da queda de 40% no faturamento, a indústria começou a divulgar seus dados. Na literatura internacional aventava-se a hipótese de que a taxa de suicídios local tinha forte relação com a disponibilidade de armas e agora dispúnhamos de dados para testar esta correlação no Brasil.
Este foi meu primeiro levantamento sobre o tema em 1999: tomamos as vendas anuais de armas da Taurus em 1997 e 1998, por Estado, calculamos a taxa de armas por habitante e comparamos com a taxa de suicídios disponibilizada pelo Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde). E ali estava: confirmando um levantamento internacional que Martin Killias fizera anos antes com 18 países, encontramos uma forte correlação (r=.58) entre a quantidade de armas vendidas nos Estados pela Taurus e suas respectivas taxas de suicídio. Não havia o tal “efeito displacement” (que afirmava que “quem quer se matar se mata de qualquer jeito”). Nos Estados com menos armas, menos gente se matava.
Hoje já está estabelecido que a relação entre suicídios e disponibilidade de armas é tão grande que, se você não sabe ao certo quantas armas existem em circulação num lugar, pode-se tomar a taxa de suicídio como uma medida substituta. Esta foi a estratégia seguida por Daniel Cerqueira, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aliás, para corroborar os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre a queda dos homicídios em São Paulo, em sua tese de doutoramento.
O principal motivo para se portar arma, segundo as sondagens de opinião, é a proteção contra crimes. A segunda razão é “se sentir forte” e a terceira “fazer boa impressão com os colegas”, como revelou a pesquisa de Nanci Cardia do NEV (Núcleo de Estudos da Violência, da USP), em 1999.
Mas será que a arma de fogo realmente protege quem a usa ou aumenta o seu risco? Esta foi a segunda oportunidade que tive de estudar o tema, como colaborador, em 2000, de uma pesquisa conduzida por Jacqueline Sinhoretto e Renato Lima para a Secretaria de Segurança de São Paulo. Em 1999, Ignacio Cano, do Iser (Instituto de Estudos da Religião), já estudara milhares de roubos no Rio de Janeiro e concluíra que o risco de levar a pior durante um assalto – ser ferido ou morto – era maior para quem tinha arma de fogo e reagira.
Os dados de São Paulo iam na mesma direção: segundo o DataFolha, cerca de 18% dos paulistas andavam armados. Entre as vítimas de latrocínio, 28% estavam armadas, sugerindo, portanto, que o uso da arma aumenta o risco de ser morto num assalto. O sociólogo Claudio Beato acaba de divulgar neste mês um estudo feito com 78 mil vítimas corroborando as conclusões destes levantamentos anteriores, usando dados da pesquisa nacional de vitimização.
A mídia dava muita atenção na época ao armamento pesado em mãos dos traficantes e os defensores das armas argumentavam que o grande problema da violência era causado por armas importadas, de grosso calibre, nas mãos dos criminosos. A discussão acabou pautando uma série de pesquisas sobre o tipo de armas envolvidos nos crimes.
Para a surpresa geral, os grandes vilões não eram os fuzis AR-15, mas os bons e velhos revólveres Taurus e Rossi, calibres .32 ou .38. Os criminosos valorizavam a indústria nacional. Foi o que detectou nova pesquisa do Iser, de 2000, analisando 590 armas apreendidas no Rio em razão de crimes: 57% eram Taurus e 31%, Rossi.
Em 2004, me encontrava na Secretaria de Segurança de São Paulo e pesquisando 15 mil armas apreendidas pela polícia encontrei números bastante parecidos: 56% eram da Taurus; 14%, Rossi. Levantamentos do Instituto Sou da Paz trazem os mesmos padrões. Assim caia por terra o argumento de que o perigo vinha de fora.
Foram esses estudos que subsidiaram o debate sobre a questão das armas de fogo e seu envolvimento com os níveis intoleráveis de homicídios no Brasil, e que ajudaram a criar um cenário favorável para a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Não se trata, como alguns afirmam, de medida petista para preparar a revolução bolivariana no Brasil. A discussão começou bem antes e quase todo o projeto foi elaborado durante o período de Fernando Henrique Cardoso como presidente, sendo apenas fruto da dinâmica congressual o fato de ter sido aprovado no primeiro ano da gestão Lula.
A medida já constava do Plano Nacional de Segurança Pública de 2000, do qual tive oportunidade de participar. Acompanhei de perto o processo, tanto como conselheiro do Instituto Sou da Paz quanto como diretor da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), no último ano do governo FHC, e de fato o controle de armas era uma questão consensual na comunidade acadêmica bem como entre os principais partidos.
Lembro de passagem que, durante o período como gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública, autorizei a compra de milhares de armas pelas polícias, que, na minha opinião, são as únicas que devem portá-las.
Na época da aprovação do Estatuto tinha acabado de assumir a coordenação da CAP (Coordenadoria de Análise e Planejamento, órgão da Secretaria da Segurança Pública de SP responsável pela sistematização final e análise dos dados, onde os homicídios começavam a declinar lentamente desde a Lei de 1997, que transformou o porte ilegal de contravenção em crime.
Os dados de 2004 começaram a chegar e as diferenças eram nítidas: apesar do aumento das revistas e das buscas e apreensões, a polícia conseguia apreender cada vez menos armas. A proibição do porte e o aumento da punição e da fiscalização fizeram as armas saírem de circulação. Todos os indicadores mostravam isso: o número de armas perdidas pela população também caíra, junto com as apreensões de armas ilegais.
Como consequência da diminuição das armas em circulação – a queda dos homicídios medidos pelo Infocrim (a base de dados sobre a violência do governo paulista) e pelo Datasus – teve uma aceleração abrupta após dezembro de 2003. Estamos falando aqui de uma mudança de patamar, de uma quebra de nível na série histórica.
Usando series temporais e diversos procedimentos metodológicos (teste de Chow, análise de intervenção, modelos ARIMA, etc.) estimamos em 2005 que o Estatuto diminuiu em 12,9% o volume de armas apreendidas no Estado, em 14,8% os homicídios na Capital, em 17% as agressões intencionais com armas de fogo (Datasus), em 17,8% os latrocínios no Estado e em 25,9% na Capital.
Naquela época, munido dos dados do Infocrim, passei as estudar a morfologia da queda e a investigar todos as eventuais hipóteses para explicar o que ocorria em São Paulo, que apresentava quedas na criminalidade similares às festejadas quedas de Nova York, Cali ou Bogotá.
Os dados mostravam que a queda era generalizada no Estado, abrupta e ocorria em áreas ricas e pobres, afetava jovens e velhos, homens e mulheres, brancos e negros. A data do ponto de inflexão, a velocidade, força e características da queda sugeriam que o Estatuto do Desarmamento era o melhor candidato para explicar o fenômeno em São Paulo, ao lado de outras variáveis de alguma importância, como a demografia, uso do Infocrim, aumento na resolução de crimes de homicídio, melhorias na gestão das polícias e etc.
Diversos estudos, utilizando fontes e metodologias diferentes, corroboram o que encontrávamos na SSP. O Ministério da Saúde estimava em 2006 que o Estatuto invertera a tendência de crescimento linear da década anterior e que o impacto era da ordem de 24%.
Um grupo de epidemiologistas publicou na Health Affairs um estudo relacionando a queda no número de hospitalizações ao Estatuto. Utilizando dados da SSP-SP, diversas teses acadêmicas corroboravam os achados iniciais, como a de Gabriel Hartung, de Marcelo Justus dos Santos e de Daniel Cerqueira, três economistas que utilizam econometria pesada para garantir a robustez dos achados. Todos eles encontraram impactos significativos do Estatuto do Desarmamento sobre os homicídios em São Paulo.
Os ganhos não são permanentes. As armas estão guardadas nas casas e quando crescem os roubos e aumenta a sensação de insegurança, elas voltam a circular, como durante a crise econômica de 2009, que criou um “soluço” na tendência de queda dos homicídios em São Paulo. Trata-se de uma análise racional de custo-benefício: quando o cidadão se sente inseguro, encara os riscos de andar armado.
Isso ajuda a entender porque os efeitos do Estatuto foram desiguais pelo país. Num dos últimos escritos sobre o tema, um artigo para a Revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugeri em 2011, com o apoio de evidências, que os efeitos foram maiores nos Estados do Sudeste e menores no Nordeste em razão das diferentes conjunturas e dinâmicas socioeconômicas destas regiões: onde o crescimento econômico foi acelerado, como nas capitais nordestinas, houve um aumento dos crimes patrimoniais e da sensação de medo, que levou a população a circular com suas armas e, consequentemente, a um crescimento dos homicídios na região.
Não havia “clima” para falar em desarmamento, ao contrário do Sudeste, onde a estabilidade e mesmo a queda de alguns crimes contribuiu para o sucesso da nova Lei.
Em linhas gerais, isso foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios; o estrago é feito pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na mão dos criminosos; portar armas aumenta o risco de ser ferido ou morto num assalto; tanto a Lei 4937/97 quanto o Estatuto do Desarmamento tiveram efeitos significativos sobre os homicídios em São Paulo; estes efeitos são tanto maiores quanto melhor for a implementação e mais favorável a conjuntura.
Nos meus 30 anos de segurança pública, não encontrei nenhuma outra medida ou política pública que tivesse efeitos tão significativos sobre a criminalidade quanto o Estatuto teve. Agora o lobby das armas, aproveitando a conjuntura anti-governo, quer acabar com umas das poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país.
Pouco adianta falar em pacto para a redução dos homicídios se o Estatuto for revogado. Os homicídios irão retomar com toda a força a trajetória linear de crescimento observada desde os anos 1980 até 2003. Foi o que ocorreu durante a farra das armas. É o que vai acontecer novamente caso o Estatuto seja revogado, na convicção quase unânime da comunidade acadêmica que se debruçou sobre o tema. Se está ruim com ele, ficará muito pior sem.
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"Onde há mais armas, há mais suicídios e homicídios" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU