21 Fevereiro 2018
A inédita intervenção federal no Rio de Janeiro, com a transferência do controle da segurança do Estado para um general, ainda engatinha, mas, em termos de agenda, já tomou de assalto o país e despertou os fantasmas sobre os limites e riscos da atuação do Exército na vida política brasileira, ecoando traumas nada adormecidos da última ditadura. Enquanto especialistas em segurança pública e ativistas de direitos humanos debatiam os eventuais problemas para atuação das Forças Armadas nas ruas fluminenses, foi o próprio comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, que deu combustível de vez às polêmicas comparações. Durante a reunião dos conselhos nacionais da República e da Defesa na segunda-feira, Villas Bôas afirmou que estava preocupado com a instituição de uma nova “Comissão da Verdade” após o fim da intervenção no Rio.
A reportagem é de Afonso Benites, publicada por El País, 21-02-2018.
A declaração, divulgada primeiro por uma colunista da GloboNews Cristiana Lôbo e confirmada por três participantes da reunião no Palácio da Alvorada, correu como pólvora porque muitos dos críticos da intervenção federal, parte ou não da oposição partidária ao Governo Temer, viram nela um pedido de impunidade e desrespeito.
Afinal, Villas Bôas fazia referência nada menos do que à Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída apenas no Governo Dilma Rousseff (2010-2016), que investigou graves violações de direitos humanos especialmente no último regime militar. Em seu relatório de conclusão, de 2014, 377 pessoas foram apontadas pela CNV como responsáveis pelos delitos, impedidos até agora de serem julgados por conta da vigência da Lei da Anistia.
"As comissões da verdade se fazem necessárias exatamente quando os agentes do Estado se autoconcedem mecanismos de impunidade caso atuem em desacordo com os diplomas legais em vigência", protestou, em nota de repúdio ao general Villas Bôas, os membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada por lei em 1995 e predecessora da CNV. A comissão lembrou na nota que foi graças ao trabalhos como o da CNV que se conseguiu a identificação, justamente nesta terça-feira, do desaparecido político Dimas Antônio Casemiro entre as centenas de remanescentes ósseos da vala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo. Militante de esquerda, Dimas foi morto em abril de 1971 por agentes do Estado na ditadura após dias de tortura.
Um conjunto de procuradores da áreas criminais e de direitos humanos também divulgou nota técnica com vários reparos ao decreto da intervenção. Nele, fizeram questão de frisar a "perplexidade" com a declaração de Villas Bôas. "(A declaração) é grave, principalmente, porque ela legitima os abusos da ditadura. Uma ditadura que torturou, matou, censurou. E isso em um momento onde visões revisionistas ganham peso na sociedade. E, pior, ela aponta para a ideia de que esse é um momento de exceção, como ele acredita que foram de exceção os anos da ditadura, e que nesses momentos, militares devem ter carta branca para violarem direitos sem que tenham que prestar contas a civis", escreveu, em sua página do Facebook, Pedro Abramovay, ex-secretário da Justiça do Governo Lula e diretor para a região da Open Society Foundations.
A fala de Villas Bôas remete concretamente preocupações legais a respeito das consequências da atuação no Rio que provocam grande mal-estar no contingente militar.
Três participantes da reunião no Alvorada relataram que Villas Boas, um crítico contumaz do uso dos militares na segurança pública, está temeroso com a intervenção. “Ele sabe que vários crimes vão cair nas costas dos subordinados ao interventor. E ele não quer que esses militares sofram na Justiça”, ponderou uma autoridade que esteve no encontro com o presidente Michel Temer.
Seja como for, a legislação em vigor já é polêmica por si só. Desde 1996, os militares denunciados por homicídios eram julgados da mesma maneira que os civis, pelo Tribunal do Júri. Mas, em outubro do ano passado, isso mudou em alguns casos. O Congresso Nacional aprovou uma lei que transfere da Justiça comum para a militar a responsabilidade para julgar os militares que cometerem homicídios durante operações militares. A lei foi batizada pelas entidades de direitos humanos como “licença para matar”. Apesar de já estar vigente, foi questionada no Supremo Tribunal Federal e, nos próximos meses, pode ser declarada inconstitucional.
Antes mesmo de verbalizar sua preocupação com a questão jurídica do Rio, Villas Bôas já havia deixado claro que as diversas operações envolvendo militares poderiam ser inócuas. Uma reportagem do Congresso em Foco trouxe à tona declarações do general sobre o assunto. Em uma delas, disse que o uso de tropas na segurança pública era “desgastante, perigoso e inócuo”. No fim do ano passado, ele foi mais direto e usou sua conta no Twitter para esboçar seu desconforto: “Preocupa-me o constante emprego do @exercitooficial em ‘intervenções’ (GLO) nos Estados. Só no Rio Grande do Norte, as FA já foram usadas 3 X, em 18 meses. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados com prioridade ‘Zero’. Os números da violência corroboram as minhas palavras”. Nos últimos dois anos, o governo empregou as tropas em 18 operações de Garantia de Lei e Ordem (GLO). Nenhum balanço sobre essa atuação foi divulgado até o momento.
Agora, atropelado pela jogada política do Planalto no Rio, o esforço de Villas Bôas parece ser também tentar conter os danos à imagem da instituição, no centro da polêmica por causa do Rio. O general, prestes a se aposentar e enfrentando esclerose lateral amiotrófica, uma doença generativa agressiva, anunciou ter pedido ao Exército "uma campanha de esclarecimento junto à sociedade brasileira".
O movimento não é à toa. O fantasma da ditadura militar não apareceu apenas na citação da CNV. Já na sexta-feira, quando o presidente Michel Temer (MDB) assinou o decreto da intervenção, uma das principais buscas no Google era “intervenção militar”. Em algumas horas do dia apareceram entre as principais buscas termos como “intervenção federal” ou “AI-5” – o ato institucional de 1968 foi o mais severo da ditadura, suspendeu garantias constitucionais e fechou o Congresso Nacional.
Nesta terça, o Exército divulgou mensagem no Twitter diferenciando "intervenção federal" de "intervenção militar". Já o Comando Militar do Leste, dirigido pelo novo interventor do Rio, general Walter Braga Netto, também divulgou sua nota de esclarecimento: "O processo de intervenção está em fase inicial. A equipe que trabalhará diretamente com o interventor está sendo formada e será anunciada nos próximos dias. De igual modo, as primeiras ações serão divulgadas oportunamente. Salienta-se que a intervenção é federal; não é militar. A natureza militar do cargo, à qual se refere o decreto, deve-se unicamente ao fato de o interventor ser um oficial-general da ativa do Exército Brasileiro".
A intervenção federal do Rio terminou a terça-feira completamente ratificada pelo Congresso Nacional. Na madrugada, a Câmara aprovou o decreto de Temer. No fim da noite, foi a vez do Senado. Mas, enquanto os militares tentam se comunicar diretamente com o público e se queixam em privado sobre uma possível falta de amparo legal, as entidades da sociedade civil já se movimentam contra a intervenção. A Associação de Juízes para a Democracia emitiu uma nota de repúdio ao decreto de Temer. No documento, a entidade diz que o ato presidencial está “eivado de inconstitucionalidades”: “A natureza militar da intervenção, mal disfarçada no parágrafo único do art. 2º do decreto, além de inconstitucional, remete aos piores períodos da história brasileira, afrontado a democracia e o Estado de Direito.”
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Intervenção federal no Rio desperta fantasmas sobre o papel do Exército - Instituto Humanitas Unisinos - IHU