31 Janeiro 2018
Decreto de Morte, como nomeia a carta divulgada pelos indígenas, autoriza despejo de retomadas Guarani e Kaiowá próximo a tekoha onde ocorreu o Massacre de Caarapó.
A reportagem é de Guilherme Cavalli, publicada por Ascom Cimi, 29-01-2018.
Essa notícia pode se confundir com tantas outras. Isso porque o procedimento se repete incansavelmente. A reintegração de posse emitida pelo 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados (MS) há três meses ordena o despejo das comunidades tradicionais Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu, dos povos Guarani e Kaiowá. A cena que se desenha na região guarda semelhanças da ocorrida em 2016. Na ocasião, fazendeiros se reuniram e atacaram o acampamento da retomada tekoha Toro Paso, apoiados por jagunços, pistoleiros uniformizados e encapuzados. O massacre de Caarapó vitimou Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, cinco Guarani e Kaiowá foram baleados e seis outros feridos. Hoje a tekoha Toro Paso passou a se chamar Kunumi Poty Verá, nome guarani de Clodiodi. Em português significa Guerreiro Iluminado.
O Decreto de Morte, como nomeia a carta divulgada pelos indígenas em apoio a retomada, emitido há três meses determina a desocupação da fazenda Santa Maria, município de Caarapó, na terra indígena Dourados Amambai Pegua 1. No interior da TI em questão, estão diversos tekoha retomados pelos Guarani e Kaiowá nas últimas décadas – Paí Tavy Terã, Ñandeva, Ñamoy Guavira’y, Jeroky Guasu, Tey’Jusu, Kunumi Vera, Guapo’y, Pindo Roky e Itagua.
A partir da decisão de reintegração de posse foram enviados Ofícios ao Corpo de Bombeiro com solicitação de que uma ambulância e equipe médica acompanhasse a ação de despejo. Com argumentos de um possível clima de “animosidade”, se prevê na decisão judicial a possibilidade de novo massacre.
Datada em 24 de outubro e assinado pelo juiz federal Moises Anderson Costa Rodrigues, o documento estabelece a retirada dos indígenas em “improrrogáveis 90 dias”. A data “venceu” na última quarta-feira. Indígenas temem violência. O processo (0000738-09.2017.4.03.6002) foi movido pela Agropecuária Penteado, arrendatária da Fazenda Santa Maria, e tem como réu a União Federal, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A atualização mais recente do processo ocorreu no dia 15 de janeiro e aguarda manifestação do Ministério Público Federal (MPF).
Em carta de apoio aos Guarani e Kaiowá das retomadas que se encontram ameaçadas de despejo, indígenas do Mato Grosso do Sul denunciam o “projeto de morte do Governo” que ordena “desocupação forçada” a ser cumpridas pela Polícia Federal e Militar. “Há muito tempo estamos esperando que o estado nos reconheça como gente, muitos de nós já morreram esperando a demarcação efetiva de nossas terras tradicionais e o cumprimento de nossos direitos garantidos na Constituição federal”, declaram.
“A única resposta que ouvimos até agora da justiça e do Governo Federal são mais decretos de morte, este despejo com certeza será o segundo Massacre de Caarapó contra o nosso povo”. A paralisação das demarcações, efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), sustenta a atmosfera de encarceramento dos indígenas em um espaço incapaz de garantir a vida das comunidades, sitiadas na primeira metade do XX pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
“Não aceitaremos mais viver confinados como bichos à espera do abate, a exemplo de tantos outros líderes indígenas do nosso e de tantos outros povos deste país, nós seguiremos vivos”. As três retomadas foram realizadas devido à crise humanitária, realidade das Reservas de Dourados, com 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena em três mil hectares, e Tey Kue, criada na década de 30 e que confina sete mil indígenas em pequeno espaço. A fazenda que incide nas tekoha – lugar onde se é – Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu pertence a Agropecuária Penteado. A propriedade era utilizada para produção de soja.
“O projeto de extermínio do governo é claro, ordens de despejos, bombas de gás, armas de fogo, tropas de choque, só o ajudaram a cumprir mais rápido o seu propósito de nos matar”
No Mato Grosso do Sul 15 indígenas foram assassinados em 2016, mortes que coloca o estado como o mais violento para povos tradicionais, segundo os dados do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas, publicado anualmente pelo Cimi. Na carta anexada abaixo, indígenas acusam o Estado de se responsabiliza pelas mortes devido as políticas “de opressão” adotadas contra os povos tradicionais. “Esse tipo de interpretação não resolverá os conflitos por terra neste Estado, pelo contrário, só aumentarão, mais mortes que aconteceram sempre. Somente a demarcação e devolução destas terras para nós povo Guarani e Kaiowá, sanará estes conflitos”.
Na raiz do conflito agrário e violência no campo está a concentração de terras rurais nas mãos de poucos. Conhecido como o grande potencial das fronteiras agrícolas, o MS tem 92% do seu território como propriedade privada, dos quais 83% são latifúndios. “Não queremos as terras dos fazendeiros, não queremos toda a terra do estado de Mato Grosso do Sul, nós só queremos as nossas terras tradicionais, a terra onde nossos antepassados viveram, o restante pode ficar tudo para os ricos, para a bancada ruralista, para o governo, para o capital internacional, para quem mais quiser”. É no MS que se encontra a maior concentração fundiária do país, de acordo com Atlas Agropecuário lançado pela Imaflora em parceria com o GeoLab, da Universidade de São Paulo (USP).
No estado mais violento para os povos indígenas existem 102 terras indígenas com pendências para finalização do procedimento demarcatório, 74 em nenhuma providência para demarcação. No Brasil, apenas 30,9% das terras indígenas possuem algum processo administrativo finalizado. São 836 terras indígenas com pendência administrativa para seus procedimentos demarcatórios. Destas 836, um total de 530 terras – o equivalente a 63,3% – não tem quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos indigenistas governamentais. Com a tese do marco temporal e os efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), o chamado Parecer Antidemarcação, a postura do Governo Temer é de inércia. É realidade que gera conflito e insegurança em centenas de comunidades.
Em 2013, na reintegração de posse de uma fazenda incidente sobre a Terra Indígena Burity, no município de Sidrolândia (MS), Oziel Gabriel Terena foi assassinado por um disparo feito pelas forças policiais. Em 12 de junho de 2016, Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi morto no tekoha Toro Paso, em Caarapó (MS). “Não recuaremos, aqui morreremos, assim como o nosso irmão Clodiolde”, asseguram em documento. O Ministério Público Federal, dias depois do assassinato de Clodiodi, denunciou 12 indivíduos por formação de milícia privada no MS.
“Atiraram sem trégua, encapuzados de milícia paramilitar”, diz um verso da música Meu Glorioso Clodiodi, do Ruspo (ouça aqui).
Sete casos ocorreram no MS caracterizados como conflitos relativos a direitos territoriais. Em 2016 foram registrados ataques às comunidades indígenas das terras Kurusu Ambá, Dourados Amambaipeguá e Guaiviry, dos povos Guarani e Kaiowá.
Nós Povos Indígenas Guarani Kaiowá de todos os tekohá (09 Retomadas) e da Reserva indígena Tey Kuê da T.I Dourados Amambai peguá I, estamos reunidos e mobilizados em favor das comunidades tradicionais Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu e contra a ação de despejo concedida pelo juiz federal da 1ª instância Moises Anderson Costa Rodrigues a estas três comunidades e todo o povo Guarani e Kaiowá do estado de MS.
Senhor Juiz, povo do Mato grosso do Sul, do Brasil e do Mundo, ouçam a nossa voz, estamos gritando por justiça, há muito tempo estamos esperando que o estado nos reconheça como gente, muitos de nós já morreram esperando a demarcação efetiva de nossas terras tradicionais e o cumprimento de nossos direitos garantidos na Constituição federal, a única resposta que ouvimos até agora da justiça e do governo federal são mais decretos de morte, este despejo com certeza será o segundo Massacre de Caarapó contra o nosso povo.
Diante de tanta violação de direitos Humanos e indígenas deixamos aqui o nosso apelo, a nossa vida e a nossa luta, a nossa resistência é a nossa sobrevivência, morrer por alguma coisa, estamos dispostos a morrer pela nossa terra, pela nossa existência, pelo nosso futuro, por isso lutaremos, o nosso objetivo é reconstruir o nosso jeito de ser e de viver em nossas terras tradicionais. Nossas crianças ainda enfrentaram muitas décadas pela frente e por elas não abriremos mão, não recuaremos, aqui morreremos, assim como o nosso irmão Clodiolde (Assassinado em 14 de junho de 2016 no Massacre de Caarapó) aqui ficaremos.
O sangue de nosso guerreiro Clodiolde banhou a nossa terra, brotando em nós sementes e frutos de luta e resistência em busca da liberdade para o nosso povo Guarani e Kaiowá, não aceitaremos mais viver confinados como bichos a espera do abate, a exemplo de tantos outros lideres indígenas do nosso e de tantos outros povos deste país, nós seguiremos vivos.
O projeto de extermínio do governo é claro, ordens de despejos, bombas de gás, armas de fogo, tropas de choque, só o ajudaram a cumprir mais rápido o seu proposito de nos matar, assim também aconteceu com o nosso parente Oziel Gabriel assassinado em 2013 na T.I Buriti pela policia federal que cumpria a ordem de “reitegração de posse” para os fazendeiros da região.
As ações dos poderosos deste País contra nós povos indígenas não param por ai, decretos, portarias, leis, teses vem sendo fortemente investidas contra nossos direitos. A portaria 303, a pec 215, o marco temporal são provas vivas deste projeto que visa tirar sempre mais direitos.
Com o marco temporal, por exemplo, o governo vem tentando novamente punir os povos indígenas, negando a nossa história. Ora o mesmo governo que nos expulsou de nossos territórios no passado é agora o que quer nos dizer que só tem direto as nossa terras tradicionais os povos que estavam nas mesmas em 5 de outubro de 1988. Por que será que não estávamos lá? O direito do povo guarani Kaiowá a suas terras tradicionais é imemorial, não começa em 88, começa no dia em que nasceu o primeiro índio nestas terras, hoje brasileiras.
Esse tipo de interpretação não resolverá os conflitos por terra neste estado, pelo contrario só aumentarão, mais mortes aconteceram sempre. Somente a demarcação e devolução destas terras para nós povo guarani e Kaiowá, sanará estes conflitos, não queremos as terras dos fazendeiros, não queremos toda a terra do estado de mato grosso do sul, nós só queremos as nossas terras tradicionais, a terra onde nossos antepassados viveram, o restante pode ficar tudo para os ricos, para a bancada ruralista, para o governo, para o capital internacional, para quem mais quiser.
Chega de terror contra nossas comunidades, chega de opressão, chega de massacres, chega de tentar nos desindianizar, chega de tentar nos desterritorializar, este modelo não serviu pra ninguém ate agora, se não aos poderosos deste país, deixem nos viver livres, sendo nós mesmos dentro de nossas terras tradicionais.
Queremos dizer que a terra e nós índios somos um único corpo, que não podemos viver sem a terra e ela sem nós. Se isso acontecer morreremos todos. A terra é o elemento essencial para a nossa sobrevivência, portanto avisamos, se a “justiça” insistir em cumprir mais este decreto de morte, nós povo guarani e Kaiowá da T.I dourados amambai pegua I estaremos prontos e postos pra enfrentar, não temos armas, nem bombas matérias, mais temos a nossa reza e a nossa esperança na justiça. Por nossas crianças não recuaremos, Confiantes, sem medo e sem arrogância estamos preparados, Resistiremos sempre!
Nós povo guarani e Kaiowá não somos proprietários da terra, do contrario nós pertencemos a ela, somos seus filhos, seus frutos, por isso, lutamos por nossa mãe!
Todos aqueles que lutam em defesa da vida, não permitam mais injustiças, não permitam mais genocídio contra o nosso povo guarani Kaiowá, não permitam mais despejos, a cada índio que morre é um pouco de sua historia que morre também, junte-se a nós.
Pela terra, por mais vida, justiça e liberdade, Resistiremos!
Terra indígena Dourados Amambai pegua I, Aldeia Tey Kuê,
Caarapó/MS 24 de janeiro de 2018.
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Ordem de despejo contra retomadas poderá repetir massacre de Caarapó, temem Guarani e Kaiowá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU