16 Junho 2016
Divulgação: Outras Palavras |
O Estadão traz no pé da página A8, hoje, lá no cantinho direito, a seguinte notícia: “Ataque deixa um índio morto e cinco feridos”. Contei 77 palavras na notícia, incluídos, os artigos, preposições e palavras inevitáveis, como “Mato Grosso do Sul” e “terra indígena Dourados Amambaipeguá I”. Não encontrei o nome do morto. “Uma liderança indígena”. Deu tempo de registrar o “o ataque de 70 fazendeiros armados em 60 veículos”.
Quase uma palavra para cada fazendeiro.
O comentário é de Alceu Luís Castilho, jornalista, publicado por Outras Palavras, 15-06-2016.
Esse descaso da imprensa representa uma metralhadora às avessas. O pé de página é a vala – quando muito – onde os jornais brasileiros enterram as centenas de Guarani Kaiowá mortos nos últimos anos, entre assassinados, atropelados, mortos por problemas básicos de saúde e os que, em meio ao confinamento histórico do qual são vítimas, se suicidaram. Cada uma das 77 palavras significa o silêncio entre cada bala assassina.
Ontem foi assassinado Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 23 anos. Com dois tiros. Outros três indígenas correm risco de vida. Uma criança de 12 anos, Josiel Benites, foi baleada no abdômen. Vejamos este trecho do relato do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), bem mais completo que o do Estadão:
– Em filmagens feitas pelos próprios Guarani e Kaiowá é possível ver uma centena de homens armados, queimando motos e demais posses dos indígenas. A maioria dos indivíduos está vestida com um uniforme preto; nas filmagens, é possível ouvir gritos de: “Bugres! Bugres!”, forma pejorativa usada para se referir aos indígenas na região sul do país. Caminhonetes circulam como moscas ao redor dos homens de preto e das enormes fogueiras usadas para incendiar tudo o que antes era o pouco que estes Guarani e Kaiowá possuíam.
Voltemos para 2013. Mas ainda em Caarapó. Nesse mesmo município do Mato Grosso do Sul, onde proprietários rurais declaram uma quantidade de terras superior à área do município (e a gente acha que mora num país normal), foi assassinado Denilson Barbosa, de 15 anos. Com um tiro na cabeça e outro no pescoço. Ele e mais dois indígenas estavam indo pescar – e os fazendeiros não deixam.
O texto do Cimi de 2013 (apenas três anos atrás, mas, para a imprensa brasileira, um passado distante e inexistente) informa que, nessa reserva, 5 mil Guarani Kaiowá vivem em 3.594 hectares de terra. Menos, por exemplo, que a quantidade de terras pertencentes, no mesmo Estado, ao senador cassado Delcídio do Amaral. Os indígenas aguardam demarcação. (O estudo relativo à TI Amambaipeguá foi aprovado em maio pela Funai. Às vésperas do golpe. Terá sido coincidência a nova investida dos fazendeiros?)
É preciso ser justo com a imprensa. Nos anos 70, em plena ditadura, eram bem mais frequentes as notícias sobre violações de direitos de indígenas e camponeses, ou sobre os assassinatos e massacres no campo. Em 2016, ao longo de governos golpistas ou democraticamente eleitos (todos eles indiferentes ao massacre dos Guarani Kaiowá), os jornais consideram Denilson, Josiel ou Clodiodi brasileiros de menor importância.
É como se os chamassem de bugres, tal qual os fazendeiros assassinos. Aos berros. Quase um carro para cada um. “Bugres, bugres, bugres! Sabem qual a parte que lhes cabe neste jornal? Este pé de página!” (Risos do editor. O redator se esforça em condensar a notícia nas 77 palavras possíveis e ela nem chega ao mesão, onde se decidem as notícias da primeira página. Lá temos Dunga, Eduardo Cunha, Tia Eron, Temer, Haddad, Sarney, Jucá. Romero Jucá, o ex-presidente da Funai? Sim, Jucá. A política brasileira se repete como extermínio).
O maior massacre de 2016, um dos maiores dos últimos anos, ganha sua dose jornalística de escárnio. Hashtag: jornalismo bugreiro. #jornalismobugreiro
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Massacre de indígenas no MS é também um massacre midiático - Instituto Humanitas Unisinos - IHU