13 Dezembro 2017
Em meados de novembro, na altura em que muitos pensavam que fosse o ponto alto das revelações sobre má conduta sexual por parte de homens poderosos da mídia (depois de Harvey Weinstein e Louis C.K., mas antes de Charlie Rose e Matt Lauer), o programa New Yorker Radio Hour apresentou uma série de entrevistas sobre as repercussões do dilúvio incessante de contos sórdidos de má conduta e assédio sexual de homens.
O comentário é de Jamie L. Manson, mestre pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual, publicado por National Catholic Reporter, 12-12-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Em uma entrevista, a autora feminista e ativista bell hooks foi questionada sobre as origens da agressão e da violência masculina. Ela disse ao editor do New Yorker David Remnick que, apesar de ter lido vários comentários desde as primeiras revelações sobre Weinstein, quase nenhum comentarista tinha usado a palavra "patriarcado" para explicar a causa de todo este comportamento inadequado.
"Queremos agir como se fosse uma psicopatologia masculina individual", disse ela, ao invés de admitir que tal comportamento tem sido considerado normal para os homens pelo sistema patriarcal.
Ultimamente, parece que quase todos os dias um homem sai do centro de atenções, como se fosse uma praga. Mas nestes casos a praga tinha sua própria autoria. E, como ela assinala, o patriarcado criou as condições de produção dessa praga.
O patriarcado é qualquer sistema em que os homens detêm o poder e do qual as mulheres, em grande parte, são excluídas. Em uma estrutura patriarcal, homens poderosos dominam as mulheres, as crianças, a natureza e outros homens. Frequentemente, uma das principais maneiras com que os homens predominam sobre as mulheres é a fixação e o controle da sexualidade feminina.
Em Hollywood e na mídia, a elite, as classes dominantes de homens ricos agem como se criassem reis. Elas têm o poder de decidir que rostos ficarão famosos, que vozes serão influentes e que nomes desconhecidos vão se tornar nomes familiares. O sistema patriarcal permite que estes homens abusem do seu poder através da coerção sexual e da dominação das mulheres e, em alguns casos, de menores.
O sistema patriarcal da indústria do entretenimento permite níveis obscenos de má conduta sexual, abusos de poder nojentos e conspirações do silêncio. Se parece que já vimos esse filme antes, é verdade. Lembram-se do filme "Spotlight"? A estrutura patriarcal que levou a esse momento em Hollywood é muito semelhante ao sistema que está na raiz da longa crise de abusos sexuais da Igreja Católica Apostólica Romana.
A Igreja Católica pode não ter inventado o patriarcado, mas certamente o santificou. O sistema patriarcal que permitia que atores, produtores e jornalistas famosos andassem por aí como deuses não é muito diferente do patriarcado que durante séculos disse aos sacerdotes que eles são homens divinos, excepcionais, com a missão especial de dominar leigos modestos e perdidos.
Se Hollywood tivesse papa, certamente seria Harvey Weinstein, com sua autoridade onipotente de tornar imortais feições dos atores ou condená-los à irrelevância, e com seu acesso a recursos capazes de impor sigilo e fazer rumores indecorosos desaparecerem. Estamos descobrindo que Charlie Rose e Matt Lauer atuavam quase como bispos, dominando seus próprios feudos, com poder ilimitado e pouca responsabilidade.
Como acontece no sistema patriarcal, tanto nos escândalos da Igreja como nos da indústria do entretenimento, a maioria das vítimas era mulheres e menores. Na crise da Igreja, é claro, a maior parte das vítimas era crianças, mas também há casos não reportados de padres que cometeram atos de violência sexual e condutas inapropriadas com mulheres adultas.
Seja cometendo crimes em Hollywood, na sala de redação ou na Igreja, os agressores que prosperam em um ambiente patriarcal parecem se encaixar num perfil psicológico muito semelhante.
Em seu recente artigo, "The Power of Preying", a Dra. Alexandra Katehakis explica por que os homens buscam mulheres no trabalho. Ela também poderia escrever sobre sacerdotes que cometem abuso sexual.
"Estes homens têm grandes oportunidades de seduzir o inocente conquistando sua confiança e fazendo falsas promessas", ela escreve. "Eles se baseiam na probabilidade de que o medo das vítimas de se exporem irá impedi-las de exporem o abusador."
Ela também explica por que, depois de ser violadas, tantas vítimas permanecem em silêncio:
Quando o predador ataca, a vítima fica desorientada — alguém que ela admirava, em quem confiava, a violou. Os atos sexuais acontecem rapidamente, deixando a vítima em uma névoa de confusão, impedindo que ela se mova ou determinando o que é adequado ou não naquele momento.
Segundo Alexandra Katehakis, esses atos são uma "forma erótica de ódio", que nasce de sentimentos de inadequação sexual, de vergonha e de sentir-se no direito.
"Quem mais, a não ser um homem que se sente profundamente (se é que inconscientemente) inadequado, acharia excitantes atos não consensuais e sem conexão, e encontraria prazer neles?", questiona.
Ela acredita que grande parte dos abusadores sofreu "graves abusos verbais, físicos ou emocionais na infância”.
Explica, ainda, que "eles têm uma personalidade baseada na vergonha que se manifesta em uma sexualidade também baseada na vergonha. Quando um homem poderoso 'exerce' sua sexualidade sobre alguém, simplesmente quer dizer que ele está regulando sua raiva, guardada há muito tempo (geralmente pelo gênero com que cometeu o crime), exercendo-a através da linguagem mímica do sexo."
Tragicamente, estes homens debilitados encontram refúgio em sistemas patriarcais, nos quais têm acesso a mulheres e crianças de forma incomparável, sobre os quais exercer sua raiva erotizada, muitas vezes com pouca responsabilidade. E no caso de uma vítima se pronunciar, estes predadores podem contar com a proteção de seus companheiros patriarcas.
Tendo em conta o quanto o abuso sexual é alimentado pela vergonha, não é de se admirar que tenha sido desenfreado dentro da Igreja Católica, onde a moralidade sexual, desde o tempo de Santo Agostinho, é baseada na noção de que o desejo sexual é pecaminoso e irremediável.
Muitas pessoas esperam que o momento cultural do "#MeToo" origine um reconhecimento em que as mulheres, finalmente, vivenciem respeito e justiça no trabalho, bem como a oportunidade de ter melhores cargos e posições de liderança baseados unicamente em seus talentos.
Mas também há um movimento #ChurchToo que surgiu junto com o #MeToo, em que vítimas de abuso sexual, particularmente católicas e evangélicas, estão se pronunciando. Como testemunham suas histórias, é um passo muito além a caminho da justiça nas tradições patriarcais cristãs, em que, como escreveu uma blogueira, "o marido comanda, a esposa se submete e os filhos obedecem".
Se achamos que a situação de Hollywood é difícil, tente levar em conta as teologias católicas e evangélicas que insistem que Deus ordenou o universo para que o homem seja sempre destinado a ser líder e autoridade.
A Igreja está tão arraigada em suas formas patriarcais que não deve ser surpresa que iniciativas como a comissão papal do Papa Francisco sobre o abuso sexual no clero não conseguiu aprovar qualquer reforma real, e, em vez disso, excluiu a participação das vítimas.
Na semana passada, a Arquidiocese de Nova York se vangloriou — talvez em resposta ao contexto cultural atual — do fato de que 189 vítimas/sobreviventes de abusos tinham recebido, juntas, US$ 40 milhões de indenização. Os lugares de acolhimento oferecem o tão esperado suporte a vítimas, individualmente, mas não criam as mudanças estruturais necessárias para enfrentar as causas fundamentais do abuso sexual.
Se neste momento divisor de águas em Hollywood e a mídia lembram os católicos de alguma coisa, é no sentido de os sistemas patriarcais serem um terreno fértil para a violência e a má conduta sexual. Acima de tudo, nos mostra que o abuso sexual somente será erradicado da Igreja se continuarmos desafiando seu patriarcado, que é a verdadeira raiz do problema.
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Seja em Hollywood ou no Vaticano, o patriarcado permite que os homens cometam abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU