03 Novembro 2017
“Conservar o depósito não significa manter as fórmulas e as doutrinas como elas foram expressadas no passado, mas requer o desenvolvimento de todas as virtualidades contidas nos eventos aos quais as fórmulas se referem.”
A opinião é do teólogo e padre italiano Carlo Molari, e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado na revista Rocca, n. 22, 15-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesses últimos tempos, o Papa Francisco voltou várias vezes a refletir sobre o caminho da verdade e do seu desenvolvimento na história. Sem dúvida, a sua perspectiva é evolutiva. Conservar o depósito não significa manter as fórmulas e as doutrinas como elas foram expressadas no passado, mas requer o desenvolvimento de todas as virtualidades contidas nos eventos aos quais as fórmulas se referem. O processo se realiza adquirindo novos dados que envolvem ou a correção dos erros anteriores, ou a sua coordenação com uma consciência nova.
A espécie humana, também, de fato, está em evolução. Os sujeitos, através das relações e das experiências, mudam os modos de pensar e renovam perspectivas, tornando-se, assim, capazes de profundas mudanças culturais e espirituais. O Papa Francisco voltou a esse assunto em um articulado discurso ao congresso organizado no 25º aniversário da constituição Fidei depositum, de João Paulo II (11 de outubro de 1992), com a qual era publicado o Catecismo da Igreja Católica.
Ao Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, ele recordou que “não é suficiente encontrar uma linguagem nova para dizer a fé para sempre; é necessário e urgente que, diante dos novos desafios e perspectivas que se abrem para a humanidade, a Igreja possa expressar as novidades do Evangelho de Cristo que, embora contidas na Palavra de Deus, ainda não vieram à tona”.
A constituição Fidei depositum, introduzindo o Catecismo, estabelecia também o horizonte do seu dinamismo: “Deve ter em conta as explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja. É também necessário que ajude a iluminar, com a luz da fé, as novas situações e os problemas que ainda não tinham surgido no passado. O Catecismo incluirá, portanto, coisas novas e velhas (cf. Mt 13,52), porque a fé é sempre a mesma e simultaneamente é fonte de luzes sempre novas”.
Nessa perspectiva, o Papa Francisco desenvolveu uma reflexão sobre a evolução da doutrina partindo da constituição dogmática do Vaticano II Dei Verbum, que disse: “A Igreja na doutrina, na sua vida e no seu culto perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo aquilo em que crê” (DV n. 8, Ev 1, 882). “A Palavra de Deus (comenta o papa) não pode ser conservada em naftalina, como se fosse uma velha coberta a ser protegida contra os parasitas! Não. A Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, que progride e cresce porque tende a um cumprimento que os homens não podem parar. Só uma visão parcial pode pensar o ‘depósito da fé’ como algo estático. O Espírito Santo continua falando à Igreja e, para fazê-la progredir com entusiasmo, é preciso se colocar em religiosa escuta”.
“Essa lei do progresso, de acordo com a feliz fórmula de São Vicente de Lérins: ‘annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate’ (consolida-se ao longo dos anos, dilata-se no tempo, sublima-se com a idade, Commonitorium 23.9: Pl 50), pertence a uma peculiar condição da verdade revelada na sua transmissão pela Igreja, e não significa, de modo algum, uma mudança de doutrina”.
Como exemplo concreto, o papa referiu-se à doutrina relativa à pena de morte, que requer uma mudança do próprio Catecismo, mesmo na sua última formulação. Na edição de 1992, o parágrafo 2.266 dizia: “A doutrina tradicional da Igreja reconheceu fundado o direito e o dever da legítima autoridade pública de infligir penas proporcionais à gravidade do delito, sem excluir, em casos de extrema gravidade, a pena de morte”.
A edição de 1997 especificava: “A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor. Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana. Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’ (EV 56)” (n. 2.267).
O Compêndio do Catecismo publicado por Bento XVI em 2002, no número 469, resumia: “A pena infligida deve ser proporcional à gravidade do delito. Hoje, na sequência das possibilidades do Estado para reprimir o crime tornando inofensivo o culpado, os casos de absoluta necessidade da pena de morte ‘são agora muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’ (Evangelium vitae). Quando forem suficientes os meios incruentos, a autoridade deve limitar-se ao seu uso, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum, são mais conformes à dignidade da pessoa humana e não retiram definitivamente ao culpado a possibilidade de se redimir”.
Nesse meio tempo, João Paulo II, na mensagem de Natal de 1998, desejando o crescimento do consenso sobre as medidas em favor do homem, indicara, entre as mais significativa, a de “banir a pena de morte” (L’Osservatore Romano, 28-29 de dezembro de 1998, p. 7). Encontrando-se nos Estados Unidos um mês depois, repetiu o desejo e o pedido: “A dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem mesmo a quem causou um grande mal. A sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar aos criminosos a possibilidade de se revisarem. Portanto, renovo o apelo (...) para abolir a pena de morte, que é cruel e inútil” (L’Osservatore Romano, 29 de janeiro de 1999, p. 4).
O Papa Francisco, hoje, refere-se tanto ao “progresso da doutrina por parte dos últimos pontífices”, quanto à “mudança de consciência do povo cristão, que rejeita uma atitude anuente em relação a uma pena que lesa pesadamente a dignidade humana” e conclui com determinação: ela é “inadmissível”.
“Deve-se afirmar com força que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que humilha, de qualquer modo que seja perseguida, a dignidade pessoal. É, em si mesma, contrária ao Evangelho, porque é decidido voluntariamente suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e da qual só Deus, em última análise, é o verdadeiro juiz e garante. Nunca homem algum, ‘nem sequer o homicida, perde a sua dignidade pessoal’ (Carta ao presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 20 de março de 2015), porque Deus é um Pai que sempre espera o retorno do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e inicia uma nova vida. A ninguém, portanto, pode-se tirar não só a vida, mas também a própria possibilidade de um resgate moral e existencial que redunde em favor da comunidade”.
No passado, o recurso a esse “remédio extremo e desumano” pareceu ser, na falta de maturidade social e de instrumentos de defesa, “uma consequência lógica da aplicação da justiça a que se deve ater”"; até mesmo no Estado Pontifício, muitas vezes, ela foi utilizada, “ignorando o primado da misericórdia sobre a justiça”.
“Assumimos as responsabilidades do passado e reconhecemos que aqueles meios eram ditados por uma mentalidade mais legalista do que cristã. A preocupação por conservar íntegros os poderes e as riquezas materiais levara a superestimar o valor da lei, impedindo que se chegasse a uma maior profundidade na compreensão do Evangelho. No entanto, permanecer neutros hoje diante das novas exigências para a reafirmação da dignidade pessoal, nos tornaria mais culpáveis.”
O papa especificou que não há contradição com o passado, porque a Igreja sempre defendeu a vida humana desde o início até a morte natural; “é o desenvolvimento harmônico da doutrina”, que exige que se abra mão dos argumentos “contrários à nova compreensão da realidade”.
“Nesse círculo virtuoso, o diálogo revela a verdade, e a verdade se alimenta de diálogo. A escuta atenta, o silêncio respeitoso, a empatia sincera, a autenticidade de se pôr à disposição do estrangeiro e do outro são virtudes essenciais a serem cultivadas e transmitidas no mundo de hoje.”
Mas “toda a substância da doutrina e do ensinamento” deve ser “orientada para a caridade que nunca terá fim”: “Sempre e em tudo deve-se enfatizar o amor de nosso Senhor”. Como diz Paulo, “agindo de acordo com a verdade na caridade, buscamos crescer em todas as coisas” (Efésios 4, 25). A fórmula “agindo de acordo com a verdade” também poderia ser traduzida como “buscando a verdade no amor” ou “realizando a verdade no amor”: o termo grego, de fato, é a mesma palavra “verdade” conjugada como verbo, como se em português se pudesse dizer: “verdadeando” [veritando, em italiano] a existência na caridade, para expressar a ideia de que o amor sempre torna verdadeira a existência.
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Não se conserva a verdade em naftalina. Artigo de Carlo Molari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU