17 Outubro 2017
Bohoslavsky indica que, na atualidade, esta temática se tornou um assunto de saúde pública, uma questão fundamental para compreender um processo político que começou no início do século e está se consolidando em toda a América Latina.
A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada por Página/12, 16-10-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Ernesto Bohoslavsky é um historiador e dirige o Grupo de Trabalho da Clacso chamado "Direitas contemporâneas: ditaduras e democracias", no qual participam sociólogos, historiadores e cientistas políticos. Tendo em conta os aspectos específicos de cada país da região, pode-se pensar certos vetores comuns: o lugar do Estado para estas direitas, a composição de suas bases (se é que há uma), as características sociológicas e culturais da população que acompanha estes processos, o medo de se tornar uma nova Venezuela, sua configuração em torno das ONGs, entre outros. O certo é que se torna necessário conhecer em profundidade estes processos que duram mais de uma década de construção política e mostram uma alta eficácia - o que não equivale a legitimidade em todos os casos - em seus métodos para ascender ao poder.
No Grupo de Trabalho da Clacso que você coordena vocês debatem sobre "as direitas contemporâneas". O que vocês entendem por contemporâneas? Há todo um debate sobre a caracterização dessas direitas.
No grupo participam pessoas provenientes da história, da ciência política e da sociologia. Tínhamos de encontrar uma categoria que nos permitisse trabalhar juntos e pensar sobre os problemas atuais. Daí surgiu a caracterização de "contemporânea". Com isso, fazemos referência ao tempo em que uma pessoa tem memória pessoal e também à lama em que alguém pode estar metido, não apenas utilizando os livros, mas por intermédio da experiência pessoal. Quando começa o contemporâneo? Bem, esse é um dos esportes favoritos dos historiadores. Nós acreditamos que há uma série de inovações nestas direitas que surgem no início do século XXI, a partir do que foi chamado de "maré rosa", em referência aos governos mais de esquerda. Daí o contemporâneo tem relação com os últimos 15 ou 20 anos. É uma definição concebida para a América Latina, mas que, depois, à nível nacional, sempre há de ser ajustada. Estamos diante de uma mudança de época, onde se pode encontrar saltos e diferenças a respeito do que marcou a era dos anos 1980 e 1990, a agenda da transição e consolidação da democracia e a implementação de modelos econômicos neoliberais. Há quinze anos que estudo as direitas em diversos momentos do século XX e em vários países da América Latina.
Quando comecei com isto, este era um tema de estudo "frio", não gerava nenhum tipo de engrenagem ou polêmica fora do que diziam os especialistas. Hoje, estudar as direitas é uma questão de saúde pública, ou seja, um problema de primeira magnitude. De fato, na Clacso reunimos historiadores e cientistas políticos de diferentes países que dão conta dessa questão. A Clacso normalmente financia grupos que estudam a juventude, os camponeses, as mulheres, os setores vulneráveis, mas agora decidiu apostar no estudo das direitas e parece-me que isso expressa um aquecimento da temática que excede as preocupações dos acadêmicos e que tem as suas raízes, penso eu, num interesse social notavelmente mais amplo. O ponto está em como estabelecer laços de colaboração entre um conhecimento mais acadêmico e uma práxis política.
A discussão de que há algo de novo nas direitas latino-americanas é algo que está ressoando em várias análises conjunturais.
É uma questão recorrente saber o que tem de novo no que é novo. Pensemos que a direita do Chile, no final dos anos 60, também se chamou de nova direita. A novidade tem a ver com a capacidade de mostrar-se como novo. Não apenas ser novo, mas mostrar de forma convincente que há novidade. Nesse aspecto acredito que são mais bem-sucedidos: em convencer de que eles são novos, mais do que realmente serem. Seria conveniente diferenciar o que eles são do que eles asseguram ser. Um dos pontos centrais tem a ver com a forma como seus inimigos são definidos, posto que todas as forças políticas recortam sua identidade não apenas em uma série de valores, mas também com aqueles que são deixados de fora da aliança. Parece-me que quando uma pessoa analisa o caso do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Equador, encontra um medo transnacional em torno do fantasma bolivariano que expressa várias coisas ao mesmo tempo: a possibilidade de uma ordem internacional alternativa que é orientada pelo livre mercado ou por tratados de livre comércio. Além disso, transparece uma ameaça em termos de identidade, quanto as divergências ideológicas, apesar do horizonte bolivariano estar menos definido e sólido do que os seus inimigos dizem. Sua capacidade de ameaçar a ordem global está hoje notoriamente reduzida e é mais simbólica do que fatual. No entanto, parece funcionar como um aglutinante. No final do século XVIII, o medo era que o Haiti fosse reproduzido, na década de 1950 o medo era que uma nova Guatemala fosse criada, na década seguinte, o medo era a repetição de Cuba. No século XXI o grande medo é a reprodução da Venezuela. O caso do Brasil é muito particular já que lá opera o anticomunismo, quando em realidade não há comunismo há décadas. O que se teme quando há uma desconfiança dos médicos cubanos que trabalham no nordeste do Brasil? O que esse fantasma significa? Por que resulta convincente ou verossímil que o governo de Dilma marchava efetivamente em direção a algo parecido com a Venezuela?
Você acredita que há uma mudança cultural nas sociedades latino-americanas, em seus sistemas de valores, que permitam que essas direitas possam se instalar na região?
Algo disso é bem provável que esteja acontecendo, embora seja difícil de medir. Também há a incidência de um certo desgaste inevitável com gestões sustentadas por muito tempo. O chavismo governa desde 1998. Mesmo que tivesse sido um governo perfeito (pois esteve longe de sê-lo) são quase 20 anos. O PT governou no Brasil por quase 15 anos e assim a lista continua. Isso gera desgaste e expectativas de mudança, que às vezes a direita aproveita melhor a oportunidade. Creio que algumas dessas coisas incidam nos processos e nas transformações no nível dos valores. Em alguns casos, como no Brasil, é preciso levar em consideração que um quarto da população pertence a uma corrente de pensamento neopentecostal. Essa população dificilmente tem uma agenda de legalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do consumo de drogas, etc. Portanto, em termos de transformação de valores, acredito que há um deslocamento das posturas mais solidárias e cooperativas para um sistema de valores mais individualistas e conservadores. Isso parece-me muito claro. A grande pergunta é por que aqueles que mais perdem em termos materiais sob a promoção desses valores são aqueles que suportam esses governos.
No GT da Clacso, buscam analisar a juventude e os movimentos de direita das mulheres. Qual seria uma caracterização possível?
Um ponto do projeto que acredito ser interessante é a percepção de que quem apoia a direita ou a direita social, estão em maior número do que os beneficiados diretamente pelas políticas públicas com esta orientação. Isto é resultado de um processo de hegemonia pelo qual os setores que não têm nada a perder sentem que sua pátria é essa e não outra. O que é relevante em perceber este fenômeno é a restauração da centralidade do estudo dos processos de identificação política. As opções políticas não são derivadas exclusivamente do bolso, mas também de processos mais complexos onde certos setores se sentem mais ligados ou mais distanciados a respeito de algumas orientações.
Considero desafiante fazer o exercício com as mulheres em particular, porque normalmente tem se considerado que as mulheres têm mais inclinação para a direita, porque são conservadoras em relação à ordem familiar. Por outro lado, os homens seriam mais propensos à esquerda, aos desafios e a mobilização. Esta leitura é profundamente machista, mas também é reducionista: diminui a existência de mulheres que efetivamente fizeram a revolução ou de mulheres ansiosas de que maridos e filhos marchem para a guerra. É importante desnaturalizar as opções políticas que as mulheres tomam e estudar seus processos de identificação política.
As mulheres nazistas já foram muito estudadas: elas eram felizes ao enviar seus filhos para a guerra, porque entendiam que o que estava em jogo era o destino nacional acima do individual. Uma pesquisadora norte-americana, Margaret Power, investigou as mulheres opositoras a Allende, no Chile. Ela destacou que estas mulheres se organizaram politicamente de uma forma muito moderna, autônoma e por fora dos círculos estatais, mas com uma ideologia que não era feminista. Eram mulheres que implementaram um conjunto de práticas políticas como estar na rua, forcejar e às vezes pegar em armas para defender a família tradicional e seu lugar subordinado na mesma.
Qual é o lugar do estado para esta direita contemporânea?
Há alguns meses apareceu um livro muito recente do irlandês Barry Cannon, The Right in Latin America, baseado em inúmeras entrevistas realizadas com líderes de direita de vários países latino-americanos. Cannon demonstrou que há neles uma orientação neoliberal, no sentido de que insistem que o Estado deve desregular e oferecer oportunidades para os que têm maior capacidade de empreender. Embora nessas entrevistas não se enxergasse um abandono da faceta mais social do Estado, mostrava-se uma maior crença na capacidade do mercado em oferecer serviços e oportunidades que normalmente o Estado provia. No fundo, há uma forte crença de que o mercado poderá cuidar de tudo e que, quando não conseguir, o Estado deverá suprir este limite.
Sobre a continuação de programas sociais, você considera que existem diferenças substanciais em termos de políticas públicas?
Em alguns casos, há linhas de continuidade e em outros países há uma ruptura explícita. E às vezes há continuidade de fato, com uma ruptura simbólica. O governo de Temer é de ruptura no que diz respeito à agenda do PT: a reforma trabalhista, a redução dos orçamentos universitários, a reforma previdenciária, etc. Agora, no governo de Macri há modificações regressivas nas políticas sociais, mas não há -ou ainda não há- uma privatização do sistema previdenciário, nem uma eliminação da AUH (Atribuição Universal por Filho, do espanhol Asignación Universal por Hijo, NdT). Outras mudanças, por exemplo, na política científica ou de regulamentação do mercado das comunicações, são muito mais evidentes e programáticas. Há recortes e também absurdos, evidentemente, mas não sei se há uma vontade de avançar em termos de destruição completa das políticas sociais herdadas. Não vejo uma orientação para um suicídio político, nem muito menos. O que realmente acredito é que há uma confiança em que o mercado resolverá as coisas, mas até que isso aconteça, parece necessário um estatuto social, bem diferente de um Estado inovador, como foram os governos de Evo Morales, Michelle Bachelet, Lula ou Cristina Fernández, isto é, que sejam agressivos com suas políticas sociais.
O governo vem negociando com cada sindicato, lentamente, com estratégias para desprestigiar os sindicalistas da oposição, etc. É possível ou necessária uma reforma trabalhista, como a do Brasil, aplicada na Argentina?
É difícil saber. Os organismos multilaterais têm na agenda uma reforma, e o Poder Executivo tem insistido nesse ponto. Não sei o quão viável seria introduzir isto na Argentina, porque à frente há rivais de peso. Os sindicatos são entidades poderosas na Argentina, ainda, pelo menos são mais do que no Brasil, em termos comparados. Creio que os sindicatos argentinos mostram uma grande capacidade para resistir, no bom e no mau sentido. Por um lado, o sindicalismo argentino conseguiu confrontar muitas modificações neoliberais. Mas também são, em muitos casos, resistentes a qualquer tipo de modificação democratizante de seu funcionamento. Quando uma pessoa sai do universo acadêmico, podem ser encontrados casos de pouca democracia interna, lideranças muito personalistas, muito estendidos no tempo e com uso recorrente de violência física para amedrontar ou perseguir os opositores e militantes da própria agremiação. O desafio é mudar o que nos interessa do mundo sindical argentino, sem abraçar uma legislação que chegue a colocá-los em crise.
Na análise sobre as direitas históricas da Argentina, encontra-se a necessidade destas em proibir os partidos que reúnem simpatias populares. Atualmente não há proscrição, no entanto, podemos pensar seu análogo na perseguição midiático-judicial?
Neste sentido, podemos dizer que as direitas estão forçando as regras, mais do que as estão violando. No caso do golpe do Paraguai contra Lugo, utilizaram o formato de julgamento político express, que claramente atenta contra o direito de devida defesa. Mas eles fizeram uma espécie de pantomima do que as instituições resolviam. O julgamento político contra Dilma, era insustentável para destitui-la. No entanto, ele foi levado adiante através de uma votação em que o Senado ganhou. Estão no limite: não rompem com a legalidade, não são golpes de Estado como o de Honduras, onde o presidente Zelaya foi retirado do palácio presidencial em seus pijamas. É um caminho pedregoso e ambíguo para o qual é essencial ter um poder judiciário que esteja disposto a endossar, e máquinas midiáticas que deem sentido ao que acontece. Se alguém pensa o processo dessa maneira, pode entender porque quando a via político-partidária não prospera, as direitas exploram outras vias. Isso pode ser visto muito claramente na Venezuela, onde o país é tencionado no campo das pressões de rua, nos meios de comunicação, na vida econômica, nas instâncias internacionais, e tudo isso ao mesmo tempo.
Como as ONGs (políticas) modificam o cenário político-partidário tradicional?
As ONGs parecem ter conseguido um espaço de inserção profissional e política para os seus integrantes e um âmbito propício para a difusão de certas idéias. Nos anos 80 e 90, cada partido buscava suas autoridades e responsáveis políticos entre os seus quadros. Desde o final dos anos 90 e até agora neste século, os especialistas não têm necessariamente uma filiação partidária: são experts que têm a capacidade de mostrar que eles possuem um saber neutro que é comercializável. Eles podem literalmente vendê-lo: assessorias, relatórios de produção, projetos legislativos, etc. As ONGs têm uma série de vantagens em relação a outras organizações: são transnacionais, podem operar em diversos cenários; podem receber dinheiro do exterior; não têm a obrigação de prestar contas publicamente, ou seja, podem prever uma inflação de 50 por cento, e caso se equivocarem, não acontecerá nada a eles; não precisam explicar por que assessoraram este ou aquele governo. Têm um lugar de funcionamento um pouco nebuloso, pois estão abaixo da superfície, mas tem um vínculo permanente com o Estado que recruta ali os seus recursos humanos, idéias, políticas, etc. Estes aspectos lhes dão vantagens operacionais sobre outras organizações, que estão submetidas a uma avaliação, seja em termos eleitorais ou de opinião pública.
Em muitos casos, funcionam como um espaço de formação de líderes: pessoas que são formadas em empreendedorismo e políticas sociais, e que logo darão um salto para a política, mas que não partem de uma formação político-partidária. Em determinado momento decidem converter o seu capital em capital político. Existem vários estudos feitos sobre think tanks na América Latina, o que se sabe é que os mais importantes são os de inspiração neoliberal. São organizações com capacidade de influenciar a agenda, para produzir informação qualificada, que é vendida tanto para autoridades quanto para investidores e que visam exercer uma influência concentrada sobre a cúpula social e política, que toma as decisões mais importantes.
Você mencionava o "empreendedor" como um novo agente para o Estado, o novo destinatário das políticas públicas. Como seria isso?
Alguns estudos mostram que quanto maior for a percentagem de empreendedores (entendendo por empreendedores aqueles que têm um trabalho autônomo), pior é a qualificação do país em termos de desenvolvimento humano. Onde existem mais relações formais em termos de dependência laboral, o nível de desenvolvimento humano é maior. Pelo contrário, em países com mais desempregados e empreendedores, há uma maior vulnerabilidade. A história dos empreendedores que é difundida é a de quem se saiu bem, que criaram uma ponto.com e se tornaram milionários. Mas, não contam a história dos milhares que criaram ponto.coms e se afundaram. Essa é uma primeira questão estrutural: o empreendedorismo pode ser pensado como um culto à vulnerabilidade.
Esta ideia também esteve muito presente no primeiro ano de gestão do governo Macri, que incentivava a deixar o emprego e sair a buscar o que a vida tem preparado para nós. Tudo sob a ideia, muito new age, de "caso isso acontecer, me convém". Para mim, isto é claramente lixo ideológico. Para este discurso as cadeias de segurança e solidariedade social são paralisantes para o indivíduo e inibem a sua capacidade. Isto reproduz a falsa ideia de que a fome impulsiona a criatividade. A figura do empreendedor é uma entidade individual que guiada por uma espécie de loteria genética descobriu o que poderia vender e de que maneira. Seu "êxito" é o resultado de uma genialidade individual mais do de uma construção coletiva ou de políticas públicas. Esse empreendedorismo desloca ou corrói o interesse social na manutenção das relações trabalhistas formalizadas e os laços inter-geracionais que sustentam a política previdenciária. Promove relações laborais e comerciais informais e temporárias, de modo que quem quiser fugir desse universo econômico supostamente sobre-regulado ou superprotegido pode fazê-lo, para alcançar assim a felicidade prometida.
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As direitas contemporâneas latino-americanas. Entrevista com Ernesto Bohoslavsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU