03 Agosto 2017
Tudo bem que a experiência de um soldado raso merece ser lembrada em qualquer relato de guerra, mas o diretor Christopher Nolan desperdiçou quase tudo o que poderia haver de realmente interessante no seu filme sobre a retirada de Dunquerque.
O comentário é de Marcelo Coelho, publicado por Folha de S. Paulo, 02-08-2017.
"Dunkirk", com Aneurin Barnard, Fionn Whitehead e alguns astros "especialmente convidados", como Kenneth Branagh e Mark Rylance, mostra bem o pavor dos combatentes ingleses, encurralados numa pontinha da França, no início da Segunda Guerra Mundial.
Enquanto esperavam os barcos que poderiam levá-los de volta à Inglaterra, numa retirada humilhante face à fúria da "Blitzkrieg" nazista, eram submetidos a um bombardeio aéreo sistemático.
Seguindo as fotografias da época, o filme mostra bem as longas filas de soldados cortando aquela plana praia de areia, enquanto o inimigo despeja suas bombas: a sobrevivência é uma loteria, e quem se esconde pode se dar ainda pior.
É o caso de um grupo que se abriga no casco de um barco encalhado, esperando a maré subir para escapar do inferno. A situação se presta a um dos momentos mais tensos de "Dunkirk", em que está em jogo a dúvida entre ceder ao desespero e manter um mínimo de conduta moral.
Mas aí já estamos há mais de uma hora acompanhando bombardeios e confusas batalhas aéreas, num filme sem pulso, sem rumo, que hesita entre vários personagens sem saber dar relevo a nenhum.
Pois a situação da grande maioria dos cerca de 250 mil soldados em Dunquerque é a de uma quase total passividade. Sem dúvida, em algum nível sempre há decisões a tomar, atos de covardia astuciosa ou de heroísmo se desenvolvem mesmo naquele impasse.
Mas é pouco diante do drama que, pelo que leio a respeito, estava sendo vivido entre os responsáveis militares pela operação. Primeiro, houve a escolha crucial entre continuar combatendo ao lado dos franceses e dos belgas e proceder a uma retirada completa do Exército.
Imagine-se o peso político de um recuo em massa: como responder à acusação de que os ingleses estavam abandonando seus aliados, estavam sendo covardes, ou, pior ainda, estavam secretamente entrando em acordo com o inimigo?
O comandante inglês, marechal John Gort, percebeu que, se continuassem a guerra em território francês, todo o Exército seria aniquilado. Entre maio e junho de 1940, a Alemanha fez 1,85 milhão de prisioneiros franceses.
Gort decidiu a retirada no dia 25 de maio de 1940. As incertezas eram imensas, e é triste que o filme não tenha se interessado em destacar nada disso.
Questão básica: por que as tropas alemãs deixaram os ingleses esperando naquele ponto, sem avançar em cima deles?
O site thoughtco.com apresenta duas teorias a respeito da crucial parada do Exército de Hitler. A primeira é que os alemães estavam cuidando de preservar a Inglaterra para um eventual armistício. A segunda é que temiam enfiar seus tanques nos pântanos que cercavam a cidade.
Outra parte do Exército alemão estava perto, em Calais. Por três dias, um grupo de soldados ingleses segurou a situação por ali, garantindo o tempo necessário para que as embarcações inglesas pudessem retirar os soldados presos na praia.
Em determinado momento, os comandantes britânicos perceberam que era impossível fazer o transporte de tanta gente, em tão pouco tempo, apenas em grandes navios de guerra. Já nos seus planos iniciais, conforme o site que estou citando, consideravam-se capazes de salvar apenas 45 mil dos 250 mil e tantos soldados que tinham.
Dá para imaginar o tipo de cálculo, e de decisão moral, em que estavam mergulhados –coisa que um filme tão preocupado com explosivos e rajadas não se decidiu a investigar.
Não havia como contar a história de Dunquerque sem apresentar a força do patriotismo inglês, da ética dos milhares de cidadãos civis que se engajaram na salvação dos seus soldados.
Há uma bela cena, com uma bela frase de Kenneth Branagh, nessa hora de "Dunkirk" -algo estragada pela música. Para não ficar totalmente fora desse grande evento moral, o filme apresenta o dono de um barquinho de passeio, junto com seu filho e um ajudante, decididos a cruzar o canal da Mancha para participar do resgate.
Só que Christopher Nolan quis tratar de muitas situações ao mesmo tempo, sem dar conta de nenhuma. "Dunkirk" é um tiro n'água.
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Sem pulso, rumo ou personagem de destaque, 'Dunkirk' é um tiro n'água - Instituto Humanitas Unisinos - IHU