31 Julho 2017
Há um aspecto oculto do empenho do Papa Francisco, porque ocorre longe das câmeras e dos jornalistas. Portanto, não é “visível” à opinião pública. É um espaço que Jorge Mario Bergoglio reservou a si mesmo, para evitar que a sua atividade de líder da Igreja Católica e de chefe de Estado sufoque a sua dimensão de pároco. Trata-se das missas matinais, que ele celebra na residência Santa Marta perante cerca de 30 pessoas, fiéis de paróquias romanas ou peregrinos que vêm do exterior.
A reportagem é de Marco Politi, publicada por Il Fatto Quotidiano, 27-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Oculto” não significa secreto, porque as missas são documentadas. Mas, em comparação com o noticiário cotidiano, baseado em imagens, esse aspecto de Francisco permanece quase nas sombras.
Mas as suas homilias de pároco, menos altissonantes do que aquelas proferidas perante as multidões, são extremamente interessantes para entender o núcleo do pensamento de Francisco e a visão que o acompanha no seu esforço de reforma da Igreja.
Os críticos do pontífice tendem a retratá-lo como “pouco teólogo”, quando, na realidade, as suas palavras deliberadamente simples e compreensíveis para um público vasto são sustentadas por um pensamento complexo.
Um pensamento voltado a captar os desafios que a grande mudança devida à secularização coloca diante da velha “Igreja do catecismo” e da tradição fossilizada. Essa igreja tornou-se em grande parte alheia às gerações mais jovens, que, silenciosamente – sem contestação –, colocam-se fora do campo, e o papa, para usar uma imagem, é como um semeador que lança sementes de reflexão.
Gianpiero Gamaleri, sociólogo e professor de Ciências da Comunicação em universidades seculares e eclesiásticas (dentre outras coisas, ele é membro do conselho administrativo do Centro Televisivo Vaticano), acompanha há muito tempo o Bergoglio das celebrações matinais, e a estas dedicou um atento monitoramento, rico em comentários, reunido em um volume intitulado Santa Marta: Omelie [Santa Marta: Homilias] (Ed Libreria Editrice Vaticana).
“O Papa Francisco – ressalta – é muito sensível aos eventos.” E, nessa capacidade de manter unidos a atenção aos fatos do mundo contemporâneo, os episódios do Evangelho e a inspiração religiosa, está certamente o segredo da comunicabilidade do atual papa.
Tome-se como exemplo apenas a pregação de uma manhã de março de 2016. “Há três dias morreu alguém, aqui, na rua, um sem-teto: morreu de frio. Em plena Roma, uma cidade com todas as possibilidades para ajudar. Por que, Senhor? Nem mesmo uma carícia... Mas eu me confio, porque Tu não decepcionas. Senhor, eu não te entendo. Esta é uma bela oração. Mas, sem entender, eu me confio em tuas mãos.”
Aí está tudo. A exortação a não fechar os olhos diante das tragédias cotidianas, a “teologia da não compreensão do silêncio de Deus”, a confiança em Cristo que vem da fé.
A Igreja em que Francisco pensa ou, melhor, como ele diz, o “Reino de Deus” não se confia à “religião do espetáculo (...) sempre (em busca de) coisas novas, revelações, mensagens (...) Fogos de artifício que iluminam por um momento”. (Para quem quiser entender, é um arquivamento das multirrevelações de Medjugorje).
O Reino de Deus não é uma “estrutura bem feita, toda em ordem, organogramas bem feitos...”. É algo que se constrói na cotidianidade, o produto de um caminho, um crescimento. A rigidez não serve, nem mesmo o “fixismo” (Bergoglio muitas vezes inventa palavras).
Crer no Espírito Santo significa “ir em frente”, enquanto os Doutores da “encantam” com as ideologias. É evidente que tal abordagem seja desestabilizadora para os defensores de uma doutrina concebida como lei e ordem e de uma Igreja militarmente organizada.
Emergem nessas homilias – em parte preparadas, em parte desenvolvidas de improviso – muitas experiências diretas de Bergoglio. Como o olhar sobre a “fila de mães nas prisões de Buenos Aires (...) mulheres (que) sofriam não só a vergonha de estarem lá, mas também as mais feias humilhações nas revistas que eram feitas nelas antes de entrarem...”.
Muitos outros impulsos são captados nessas pregações. A repulsa pela corrupção, a valorização da dúvida (até mesmo João Batista, lembra Francisco, duvidou), a exigência de que o perdão seja total e, portanto, envolva que os outros esqueçam o pecado cometido, a importância de que a fé cristã seja caracterizada pela “alegria” e pelo “estupor”, e nunca por rotinas. A denúncia definitiva de que o terrorismo, que se envolve em religião, é “satânico”.
No dia da morte do padre Jacques Hamel, degolado na França por adeptos do Isis, Francisco exclamou como líder religioso (e geopolítico): “Como eu gostaria que todas as confissões religiosas dissessem: ‘Matar em nome de Deus é satânico!’”.
As intuições que vêm das homilias de Santa Marta vão em todas as direções. Gamaleri observa que a mensagem de Francisco tem um apelo universal. Certamente, as pesquisas confirmam que o papa argentino fala para além das fronteiras confessionais e filosóficas.
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Papa Francisco secreto: nas homilias de Santa Marta, o seu pensamento de verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU