03 Julho 2017
“Pell demonstra ao Colégio Cardinalício que os gostos conservadores e autoritários não devem bastar na escolha dos bispos. Também aqui, nesse Colégio, ele não vê a hora de que a primavera evangélica do Papa Francisco acabe.”
A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha. O artigo foi publicado por La Repubblica, 30-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tornado Pell se abateu sobre o Colégio Cardinalício reunido em consistório. Com danos que alguns vão tentar usar contra o Papa Francisco.
Pequenas vozes maliciosas dentro e fora dos sagrados palácios logo passaram a dizer que o papa tinha escolhido Pell para o C9 (O Conselho dos nove cardeais que auxiliam Francisco na reforma da Cúria).
Recordaram a “confiança” do papa naquele cardeal a quem confiou, poucos meses depois da eleição, as questões financeiras vaticanas. Que Francisco tinha construído o escritório que Pell, depois, tinha usado de modo tão personalista a ponto de forçar o próprio papa a dar origem a novas (muitas) comissões para equilibrar aquele que havia se tornado um centro de poder (muito) autocrático. E disseram que essa “crise” fará bem ao papa: que é um modo para dizer que o papa não está indo bem...
Tentemos, então, esclarecer quatro pontos.
Primeiro: a questão dos pedófilos padres (dos pedófilos não padres, parece-me que nos ocupamos pouco) não foi resolvida, nem podia ser resolvida, nem será resolvida com declarações bombásticas sobre a “tolerância zero” ou sobre a “vergonha”. Uma e outra, de fato, são o mínimo exigido de todos diante de crimes tão horríveis. O problema da Igreja é se perguntar quem, como e por que escolheu como bispos figuras que, como disse o próprio Pell, com franqueza desconcertante diante da Royal Commission australiana que investigava os padres estupradores, tinham a “predisposição a não acreditar nas crianças”.
Não é cristianismo, mas ideologia clericaloide aquela que coloca sobre o prato da balança a dor das vítimas e a honra da Igreja: e é somente com uma conversão espiritual que a Igreja pode se defrontar com um crime que afunda as suas raízes na falta de fé.
Segundo: a tentativa de usar o tornado Pell para manchar a imagem do papa faz parte de um desígnio, que tem como alvo muitas nomeações próximas e, em um horizonte impreciso, o futuro conclave. O conclave passado, que escolheu Bergoglio, estava convencido de que os problemas da Igreja eram todos italianos, todos curiais e todos venais. E Bergoglio, que queria se mostrar complacente com os antagonistas (exceto para Scola), viu em Pell, conservador determinado em teologia e nos modos, alguém para se mostrar aberto.
Francisco, de fato, governa (como o padre Arrupe) com normas invariadas e com os inimigos por perto. E Pell, depois de ter se prestado a polemizar com Francisco, agora é usado para fazer com que se acredite que a sua desastrosa acusação é um “golpe” contra o papa. A ponto de impressionar os cardeais do consistório, provenientes de mundos tão distantes entre si, de modo a fortalecer as pequenas corjas que têm interesse e capacidade de catalisar as suas orientações.
Terceiro: a decisão de remover Pell dos cargos por parte do papa é um exercício solene da autoridade apostólica. Liberando-o dos ofícios, Francisco, de fato, permite/obriga Pell a se apresentar diante dos juízes civis (em 2016, ele foi interrogado em vídeo, de Roma, por razões de saúde). Nos tempos de Wojtyla, o então arcebispo de Boston foi levado para Roma como arcipreste de Santa Maria Maior: assim, o cardeal Law gozou daquela certa imunidade que o tornou inalcançável à Justiça estadunidense.
Mandar Pell perante os juízes para que ele se defenda lá não é um ato devido: reconhece que a falível justiça humana é uma passagem sem a qual a Igreja não poderá refletir sobre o “seu” problema: isto é, quem fez bispos homens sem discernimento, que ordenam sucatas humanas e, depois, cobrem os seus delitos.
Quarto: a autodefesa de Pell. Ao se declarar inocente da acusação de ele também ter sido um estuprador de crianças na juventude, o cardeal parece fazer uma distinção entre a perpetração desse crime (que ele nega ter cometido, assim como fazem todos os inocentes e quase todos os culpados) e o acobertamento do crime (algo que ele tinha admitido que a sua Igreja tinha feito). Mas, mais do que uma defesa, é uma autoacusação.
Não saber captar a dor das próprias vítimas é a marca de todos os estupradores, que projetam na vítima um chamado à violência que existe apenas na sua crueldade ou na sua perversão autoabsolutória. Independentemente de como seguir o processo na Austrália, mesmo que as acusações se demonstrem falsas, esse equívoco é o suficiente para embaraçar o Colégio Cardinalício.
No prefácio a uma biografia dedicada a Pell – “O defensor da fé”, em 2004 – George Weigel, filósofo-guia do catolicismo conservador que via nele um Martini de direita, tinha-o elogiado como um homem de fortes princípios, cujo peso teria sido decisivo no Colégio Cardinalício. Em certo sentido, Weigel tinha razão: Pell demonstra ao Colégio Cardinalício que os gostos conservadores e autoritários não devem bastar na escolha dos bispos. Também aqui, nesse Colégio, ele não vê a hora de que a primavera evangélica do Papa Francisco acabe, é bom lembrar.
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Pell e a medida de Francisco. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU