26 Junho 2017
O uberiado é mais complexo do que o proletariado. O que marca a sua distinção com o período anterior é a ausência de regulação, escreve Cesar Sanson, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em artigo escrito para o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 25-06-2017.
Já se tornou comum falar em ‘uberização do trabalho’. Conceito que denota a veloz tendência das novas modalidades e condições de trabalho oriundas das inovações tecnológicas transformadas em aplicativos que possibilitam a prestação de serviços através da interação entre o digital, o físico e o biológico. O Uber é o exemplo mais citado desse bem sucedido case. Mas há muitos outros.
A condição de trabalho na uberização é caracterizada pela ausência de regulação quando se tem como referência a sociedade industrial. Não é correto afirmar que a uberização elimina direitos, uma vez que a mesma já nasce livre das amarras de qualquer regulação. É intrínseco ao modelo a não vinculação com direitos. O sucesso do aplicativo se tornou possível em função da total ausência de regulação.
Por isso, deveríamos falar em ubercapitalismo e não em uberização. O ubercapitalismo pretende a supressão do Estado como mediador entre o capital e o trabalho e transforma todos em trabalhadores individuais, apartados entre si, cada qual, lutando por sua sobrevivência. Essa é a novidade do modelo ubercapitalista.
Não é de todo absurdo associar o que está acontecendo agora com outro momento histórico: a Revolução Industrial. As altas chaminés das indústrias têxteis, o seu chamejar noturno, o trepidar incessante das máquinas e a agitação das multidões operárias vergaram o feudalismo e fizeram surgir o proletariado. Agora, o correspondente ao ubercapitalismo é o uberiado. No lugar do proletariado devemos agora falar em uberiado.
As mudanças nos padrões das relações de trabalho em que a regra é a ausência de regras é resultante dessa reorganização do capitalismo. Logo, o Uber é hoje o que a indústria têxtil foi para o capitalismo industrial. Com uma diferença significativa, a indústria têxtil possibilitou o assalariamento – quantia fixa paga por um mês de trabalho sem intermitência – e direitos como jornada de trabalho, férias, previdência. O Uber é o desmonte do conceito do assalariamento e seu rol de direitos.
O uberiado é o trabalhador do século XXI por excelência. Não o é ainda quantitativamente, mas virá a ser. A condição do uberiado é a ausência da regulação. Não há mais contratos, salários fixos, jornadas de trabalho pré-definidas, local de trabalho. O ubercapitalismo é a exponencialidade da flexibilidade e da instabilidade.
O uberiado, porém, não é homogêneo. O ganho flexível para cima ou para baixo depende das capacidades cognitivas. Porque essa é outra característica do ubercapitalismo, ele é portador do paradigma produtivo assentado sobre o conhecimento. O conhecimento é agora, o que o binônimo carvão-aço foi para a Revolução Industrial. É o conhecimento que permite a alavancagem da produtividade. O conhecimento, entretanto, é um recurso imaterial. Ele não é ‘disponível’ e pré-determinado como o recurso material.
Note-se que o Uber, por exemplo, vale mais do que a General Motors ou a Ford. Essas montadoras são oriundas do capitalismo material. O Uber integra a emergente economia do imaterial. Essa economia substitui o capital físico pelo capital intangível, um capital associado a conceitos e ideias e não mais coisas. Uma economia que tem o poder de alterar padrões de consumo, de trabalho e relacionamento entre as pessoas.
Na economia imaterial, a inovação produtiva já não é criada apenas pelo capitalista, mas emerge sobretudo das energias produtivas do próprio trabalho, ou seja, o sujeito do trabalho joga um papel determinante como parte integrante da própria forma de organizar a produção. Em outras palavras, a principal fonte do valor reside agora nos recursos imateriais, no conhecimento demandado ao trabalhador e não apenas no capital fixo, a maquinaria.
O uberiado, portanto, não é homogêneo como o proletariado da sociedade fordista, o que significa dizer que ser ‘uberário’ não significa necessariamente ganhar pouco, embora essa seja a regra. Dependendo das capacidades cognitivas um trabalhador no ubercapitalismo pode ganhar muito. Tome-se como exemplo a cadeia produtiva de uma montadora do futuro. Nela, os designers, projetistas de peças e desenvolvedores de softwares farão o seu trabalho sem vínculo empregatício, mas serão bem pagos, uma vez que o seu conhecimento é imprescindível para a montadora. O uberiado é mais complexo do que o proletariado. O que marca a sua distinção com o período anterior, como já afirmado, é a ausência da regulação.
E como ficarão as lutas por emancipação do uberiado? Teremos ações coletivas? No lugar dos sindicatos surgirá algo? Por ora, nada pode ser antecipado. O ubercapitalismo, porém, apresenta brechas que permite uma reflexão dialética. Considerando-se que principal fonte do valor no ubercapitalismo reside no conhecimento, é interesse do capital subordinar o conhecimento individual e coletivo [general intellect] ao seu projeto de acumulo rentista.
Mas, há uma novidade. O conhecimento requerido pelo capital é também de propriedade de quem o fornece e da mesma forma que pode servir ao projeto do capital, pode também servir a um projeto emancipatório. Uma pista de outro projeto de economia e de relações de trabalho, mas não apenas, pode ser encontrado em experiências da economia colaborativa, nas redes sociais produtivas autônomas, no cooperativismo de plataforma.
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Ubercapitalismo e uberiado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU