23 Junho 2017
Numa era marcada pela selvageria do Uber, é preciso estabelecer claramente os direitos dos trabalhadores que atuam no mundo virtual. Eis um primeiro esboço.
O artigo é de Trebor Scholz, publicado como quarto capítulo, revisado e adaptado por Outras Palavras, do livro Cooperativismo de Plataforma, publicado no Brasil pela Fundação Rosa Luxemburgo e editoras Elefante e Autonomia Literária. A tradução é de Rafael Zanatta.
Leia aqui os três primeiros capítulos:
Uma discussão técnica de valores, regras e princípios para as plataformas cooperativas, sem dúvida, é para aqueles já comprometidos. Em primeiro lugar, é claro, deve existir um anseio por soluções cooperativas. Astra Taylor mantém a sabedoria de Elaine Browne, antiga líder do movimento Panteras Negras: “você nunca se organiza ou se mobiliza a partir de princípios abstratos”.[1] Por outro lado, uma vez comprometidos, princípios e valores associados com o cooperativismo de plataforma se tornam essenciais.
Juliet Schor conduziu duzentas entrevistas com trabalhadores da economia do compartilhamento. Sua sugestão é:
Tenha certeza que você tem a proposição de valor correta. O que você está oferecendo precisa ter um valor econômico para as pessoas que você quer atrair. No ambiente das entidades sem fins lucrativos, isso é algo que falta. O ambiente de empresas que buscam lucro encontra essa proposição com frequência.[2]
Para além dos pontos de Schor, influenciados pelo pensamento do sindicato alemão ver.di,[3] estou propondo os seguintes princípios para a cooperação digital:
1 – Propriedade: uma das principais narrativas do que era chamado de economia do compartilhamento era uma rejeição da propriedade. A “geração Y”, ou geração do milênio, não está interessada em posses físicas, é o que dizem; só quer “acessar as coisas”. Não faz download das músicas; quer fazer streaming. Não compra carros; é fã de viagens compartilhadas. Nossa narrativa é sobre uma Internet centrada nas pessoas.
A Internet foi desenhada como uma rede militar e científica em 1969. Mas, de 1990 a 1994, a National Science Foundation planejou passar a rede para empresas privadas que seriam donas de cabos e roteadores. Em 1995, o fundo público de infraestrutura para a Internet, NSFNET – National Science Foundation Network, foi oficialmente passado ao setor privado. Desde então, a Internet nos trouxe muito em quase todas as áreas, mas deixou a questão da propriedade compartilhada intocada.
Capa do livro Cooperativismo de Plataforma, de Trebor Scholz. (Foto: Autonomia Literária)
Esse debate não é sobre gatos fofinhos no Reddit; é sobre uma Internet de propriedade. Plataformas cooperativas de propriedade coletiva, possuídas pelas pessoas que geram a maior parte do valor em seu sistem, podem revigorar essa mentalidade pública inicial. O cooperativismo digital pode mudar o modo como pessoas comuns pensam sobre suas relações na Internet.
2 – Pagamentos decentes e garantia de renda: em 2015, em sistemas de trabalho das grandes corporações, como o Mechanical Turk da Amazon, trabalhadores novatos – que geralmente possuem boa formação educacional – foram pagos entre dois e três dólares por hora, o que é uma desgraça em um país rico como os Estados Unidos. Assim como trabalhadores domésticos, que são escondidos nas casas das pessoas, os trabalhadores digitais permanecem invisíveis, escondidos entre algoritmos. A Domestic Workers Alliance revidou. Em um evento na Casa Branca, introduziu o “Código de Bom Trabalho” com uma demanda simples: “todos precisam de um pagamento justo e benefícios para sobreviver”.[4]
3 – Transparência e portabilidade de dados: transparência não é somente transparência operacional. O mercado online cooperativo Fairmondo, por exemplo, enfatiza que todo o orçamento da cooperativa é disponibilizado publicamente. Mas a transparência é também aplicada ao manejo dos dados, especialmente dos dados dos consumidores. Deve haver transparência no modo como os dados são coletados, analisados, estudados e para quem eles são vendidos.
4 – Apreciação e reconhecimento: uma boa atmosfera de trabalho deve fazer parte desta discussão. Os trabalhadores merecem o reconhecimento e a apreciação dos proprietários e operadores. A habilidade dos trabalhadores de se comunicar com os operadores das plataformas é central nesse contexto. Quando os trabalhadores são remunerados com atraso, não compensados ao longo do tempo,[5] ou demitidos, têm o direito real a uma explicação.
5 – Trabalho co-determinado: plataformas de trabalho deveriam envolver trabalhadores desde o momento da programação e durante o seu uso. Dessa forma, também, os operadores podem aprender muito mais sobre o ritmo de trabalho dos trabalhadores. Como Juliet Schor disse, “comece [uma cooperativa] com as pessoas com que você quer permanecer”. Desde o primeiro dia, envolva as pessoas com as quais você quer povoar sua plataforma.
6 – Uma moldura jurídica protetora: plataformas cooperativas demandam ajuda jurídica pois elas são consideradas incomuns. Esta ajuda é também necessária quando se trata de defender cooperativas contra ações legais. A vitória das sociedades é alcançada por meio de seu controle sobre o sistema jurídico, econômico e político. As leis dos EUA subsidiam corporações em detrimento do bem-estar das pessoas. Por exemplo, cooperativas podem precisar de regulações locais amenas para manter um nível de disputa igualitário Legisladores podem desafiar as cooperativas, ou fazerem lobby para torná-las ilegais. Por fim, como Frank Pasquale observou, há uma inconsistência bizarra na legislação concorrencial dos EUA, baseada na diferença entre monopólios e cooperativas.[6] Enquanto monopólios possuem passe livre, se surgirem “naturalmente” (seja lá o que isso significa), uma federação de cooperativas tentando derrubar uma empresa estabelecida pode ser responsabilizada, de acordo com a legislação concorrencial, se tentar controlar os preços ou mesmo definir padrões de conduta. Enquanto os EUA aceitam os monopólios, quando estes jogam vagamente com as regras, isso é inaceitável quando se trata de cartéis. Os poderes do governo promovem o sistema de dominação corporativa e a marginalização das classes médias.
7 – Proteções trabalhistas portáveis e benefícios: tanto os trabalhadores do setor de trabalho autônomo e temporário quanto os trabalhadores da economia tradicional deveriam ser capazes de receber benefícios e proteções, dentro e fora de cenários cambiantes de trabalho. Proteções sociais não deveriam ser restritas a um ambiente de trabalho específico. O governo francês está testando essa ideia e, nos EUA, Steven Hill, um autor baseado em São Francisco, é uma das pessoas que fez essa proposta no seu último livro Raw Deal: How the ‘Uber Economy’ and Runaway Capitalism are Screwing American Workers. Cada trabalhador receberia uma “Conta de Seguridade Individual”, por meio da qual todo negócio que contrata aquele trabalhador pagaria uma pequena “taxa de rede de segurança” relacionada ao número de horas durante as quais o trabalhador está empregado naquela empresa. Esses fundos seriam usados para pagar cada rede de segurança dos trabalhadores. Além disso, esse plano iria garantir auxílio-doença e férias pagas para cada trabalhador.[7]
Uma consequência importante dessa proposta é que, ao colocar quase todos os trabalhadores em um nível similar, seriam enormemente reduzidos os incentivos para que empregadores se apoiassem em autônomos como uma forma de evitar pagar os benefícios e o apoio a trabalhadores. Essas mudanças podem ser implementadas no nível local ou estadual. A população não precisaria esperar que um Congresso disfuncional se mova nessa direção. Muito irá depender dos detalhes desse programa, o que pode também facilmente se tornar um disfarce para mais desregulamentação.
8 – Proteção contra comportamento arbitrário: o Uber é conhecido por sua disciplina arbitrária e por suas práticas de demissão. Sem qualquer aviso, motoristas podem ficar sem qualquer renda.[8] As razões para demitir motoristas geralmente não são claras, na medida em que a empresa recusa-se a responder às exigências dos motoristas, que demandam uma explicação, um problema que outros trabalhadores também enfrentam em outras plataformas.[9] No Lyft, motoristas que não obtêm cinco estrelas são expulsos da plataforma. Os consumidores assumem poderes gerenciais sobre as vidas dos trabalhadores, o que tem enormes consequências.
E se isso não fosse suficiente, o sistema de reputação da Uber penaliza motoristas por passageiros desastrados, que simplesmente tocam no botão errado ao avaliar um motorista, colocando sua vida cotidiana em risco.
O sistema de reputação dos trabalhadores da Uber é hospedado “na nuvem”, em um servidor centralizado e privado da empresa. Assim como com outros grandes atores do capitalismo de compartilhamento, isso torna impossível para os trabalhadores aproveitar suas suas reputações. Quando partem para outra plataforma, precisam começar do zero. Como consequência, é essencial que os trabalhadores estabeleçam seus próprios sistemas de reputação e identidade descentralizados. Projetos como Traity[10] ou Crypto Swartz[11] estão trabalhando nessa direção.
9 – Rejeição de vigilância do ambiente de trabalho: exigências como os diários da oDesk[12] ou as resenhas constantes do TaskRabbit precisam ser rejeitadas.
Onde está a dignidade do trabalho nesses sistemas? Como você se sentiria ao acordar toda manhã se fosse obrigado a competir para conseguir o trabalho que você terá que fazer naquele dia? Como você se sentiria se fosse avaliado a cada quatro horas por pessoas que nem conhece? Tais práticas de vigilância violam a dignidade dos trabalhadores.
10 – O direito de se desconectar: os trabalhadores também precisam do direito de se desconectar. O trabalho digital decente deve ter fronteiras claras, as plataformas cooperativas precisam deixar um tempo para o relaxamento, aprendizado lento e trabalho político voluntário.
É importante articular tal visão, guiada por tais princípios elevados. Nossa inabilidade em imaginar uma vida diferente, no entanto, seria o triunfo supremo do capital.
Não é surpresa quando digo que o cooperativismo digital encontra enormes desafios, da auto-organização e gestão dos trabalhadores à tecnologia, design, educação, financiamento de longo prazo, escala de trabalho, escala de salários, competição com gigantes multinacionais e consciência pública. Outros desafios incluem a filtragem de membros centrais de uma cooperativa, seguro, competição com gigantes multinacionais e conscientização. Pensar nos obstáculos claramente importa. Ingenuidade e acenos entusiásticos não são o suficiente. Jodi Dean tem um bom argumento quando ela afirma que “o Goldman Sachs não dá a mínima se você cultiva galinhas”. Mas os proprietários de empresas ficarão interessados se conseguirem lucrar com o crescimento de cooperativas de galinhas, sustentadas por um mercado online. Para tornar realidade o bom trabalho digital, as pessoas que pensam de modo semelhante precisam organizar e lutar por propriedade democrática e direitos.
Outro desafio é o da mobilização dos trabalhadores: trabalhadores da economia informal não encontram colegas na pausa para almoço, não param para bater papo nos corredores de sindicatos. Estão, em sua maioria, isolados uns dos outros. “Se essas pessoas precisam conquistar propriedade e poderes de decidir, o fortalecimento de suas redes sociais deve ser parte desse projeto”, enfatiza a economista Paola Tubaro em resposta à ideia do cooperativismo de plataforma.[13]Ocorreram algumas tentativas de criar novas formas de solidariedade entre trabalhadores, incluindo uma intervenção de design como o Turkopticon, um sistema de reputação de empregadores usado por trabalhadores na plataforma Mechanical Turk. Considere também o Dynamo, uma comunidade baseada em petições. Mas tudo isso tem muito pouco a ver com as organizações do trabalho tradicionais e também não cumpre a tarefa de organizar plataformas cooperativas mais facilmente.
O desafio continua: como você organiza trabalhadores distribuídos, em primeiro lugar?
Por Rafael Zanata
Desde sua entrada no Brasil em 2014, a empresa Uber tem provocado diversas reações políticas e legislativas. Em São Paulo, vereadores mobilizaram-se para proibir o aplicativo por meio de uma lei municipal. Em diversas ocasiões, taxistas e sindicatos organizaram paralisações e protestos contra a empresa.
Em 2015, uma “batalha judicial” teve início. Decisões judiciais determinaram a suspensão do serviço Uber e foram, posteriormente, anuladas ou suspensas. Professores e advogados foram contratados como pareceristas para defender posições favoráveis ou contrárias ao funcionamento do aplicativo de acordo com a legislação brasileira.
No final de 2015, a Prefeitura de São Paulo encontrou duas alternativas. Primeiro, criou uma categoria de “táxis pretos”, emitindo 5 mil novos alvarás para motoristas. Depois, propôs a criação de uma nova categoria jurídica para “Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas” (ottcs), fazendo com que os motoristas comprem créditos pelo uso do viário urbano, “legalizando” a situação de empresas como Uber.
No modelo proposto pela Prefeitura de São Paulo, os aplicativos precisam ser credenciados e informar trajeto, dados dos motoristas, sistema de avaliação, e devem emitir recibo eletrônico por corrida. O alvará é emitido, exigindo-se Carteira Nacional de Habilitação profissional e curso de formação. A prefeitura cobrará uma taxa por quilômetro rodado e definirá um valor máximo por tarifa cobrada pelos aplicativos. A prefeitura também liberou os serviços de “caronas solidárias”, onde usuários dividem custos de corrida. Em 10 de maio de 2016, a prefeitura aprovou o Decreto n. 56.981, que permitiu a operação de plataformas como Uber. De acordo com o decreto, as empresas precisam comprar “créditos de quilômetros” para “exploração intensiva da malha viária pelos serviços de transporte individual remunerado de utilidade pública”. O preço público será variável e considerará o impacto urbano, o impacto no meio ambiente, na fluidez do tráfego e o gasto público relacionado à infraestrutura urbana.
Notas:
[2] Schor, Juliet. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy, 13-14 nov. 2015.
[3] ver.di. Innovation und Gute Arbeit. Digitale Arbeit.
[4] good work code.
[5] Cerca de 70% de freelancers nos Estados Unidos reportam que são pagos com atraso com frequência.
[6] Pasquale, Frank. Mitigation Strategies for Platform Cooperatives. In: platform cooperativism conference. Making it Work: Platform Coop 2015, 13 nov. 2015. Ver também: Woodcock, Ramsi. Inconsistency in Antitrust. University of Miami Law Review, v. 68, 03 dez. 2013.
[7] Atualmente, 60 milhões de trabalhadores do setor privado nos EUA não possuem acesso ao auxílio-doença.
[8] Huet, Ellen. How Uber’s Shady Firing Policy Could Back-fire on the Company. Forbes, 30 out. 2015.
[9] Para a discussão da situação do Mechanical Turk da Amazon, ver Irany, Lilly. Difference and Dependence among Digital Workers: the case of Amazon Mechanical Turk. The South Atlantic Quarterly, v. 114, n. 1, p. 225-234, jan. 2015. doi: 10.1215/00382876-2831665.
[10] Traity.
[11] Crypto Swartz Will Get You Pa id for Your Great Content. The CoinFront, 23 jun. 2014.
[12] Os “diários de trabalho” do oDesk (agora UpWorks) documentam o fluxo de trabalho. Isso inclui fotografias repetidas dos trabalhadores com câmeras que são embutidas nos computadores e fotografias das telas de trabalho do computador para verificar o progresso do trabalho realizado.
[13] Tubaro, Paola. Discussing Platform Cooperativism. Data Big and Small.
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Dez princípios para o cooperativismo digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU