20 Junho 2017
Na manhã de hoje, 20-06-2017, o Papa Francisco visitou os túmulos de dois padres italianos. Em Bozzolo, na Lombardia, província de Mântua, ele recordou a memória do Padre Primo Mazzolari, nascido em Cremona em 1890 e morreu, como pároco, em Bozzolo, em 1950. Conhecido como o pároco de Bozzolo, foi uma das mais significativas figuras do catolicismo italiano na primeira metade do século 20.
Depois o Papa visitou Barbiana, uma pequena localidade rural na região de Florença, onde foi pároco Lorenzo Milani, 1923-1967, igualmente uma figura proeminente do catolicismo italiano nos anos pré-conciliares e posteriores ao Concílio Vaticano II.
A reportagem sobre Primo Mazzolari pode ser lida aqui.
O historiador da Igreja Sergio Tanzarella consultou os atos processuais para a reconstrução do episódio da "Carta aos capelães militares", um texto que corre o risco de ser mais citado que lido.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Vatican Insider, 18-06-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
"No melhor dos casos, há uma total ignorância, fala-se do Padre Lorenzo Milani sem jamais tê-lo lido, chega-se a atribuir a ele frases que jamais pronunciou. No pior dos casos, tenta-se normalizar um personagem tão pouco aceitável pelo pensamento médio do passado e do presente". Sergio Tanzarella é historiador da Igreja, docente na Faculdade Teológica da Itália Meridional e professor visitante na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; ele consultou os atos processuais para reconstruir a história da "Carta aos capelães militares" de Padre Lorenzo Milani (1923 -1967), um dos textos mais citados do sacerdote, cujo túmulo será visitado pelo Papa Francisco na próxima terça-feira, 20 de junho, em Barbiana.
A história é distante no tempo. Em fevereiro de 1965, os Capelães Militares da reserva da Toscana emitiram um comunicado de imprensa acusando os jovens italianos objetores de consciência de serem covardes. Em sua defesa interveio Padre Lorenzo Milani com uma resposta pública a esses mesmos capelães, em que exigia respeito por aqueles que aceitam a prisão por causa do ideal da não-violência. A carta foi distribuída para a comunidade, associações e jornais, mas só foi publicada pelo semanário "Rinascita", em 6 de março de 1965. Dez dias depois, dom Milani - juntamente com Luca Pavolini, então diretor do periódico comunista - foi denunciado por seis ex-combatentes por incitação à deserção e insulto às forças armadas. Incapaz de participar do processo por causa do agravamento do tumor que o levaria, em breve, à morte, Milani escreveu um auto de defesa, em alguns aspectos ainda mais contundente que sua resposta aos capelães, enviado na forma de "Carta os juízes do Tribunal de Roma", em 18 de outubro de 1965. Desta vez, a objeção é o ponto de partida para um discurso mais amplo, que se transformou no maior tributo ao compromisso individual civil, ao “I care” - o “eu me importo” escrito nos muros da escola de Barbiana – em antítese ao "me ne frego" (não ligo a mínima, ndt) fascista.
Em 15 de fevereiro de 1966, Padre Milani foi absolvido "porque o fato não constitui um crime”. Os juízes na sentença ressaltam o vazio legislativo sobre a objeção. Após o recurso da acusação, dois anos mais tarde, o veredicto acabou sendo alterado: cinco meses para Pavolini e, para dom Milani, que morreu em 26 de junho de 1967, o "crime (é) extinto pela morte do infrator”. Pavolini foi absolvido pelo Supremo Tribunal em 1969, por uma anistia de 1966 que anulava o suposto crime para os jornalistas, uma anistia que os promotores de grau inferior nem haviam percebido.
O professor Tanzarella, enviou à editora Pozzo di Giacobbe, para a série “Il pellicano”, uma edição crítica da "Carta aos capelães militares e da Carta aos juízes" que historicamente enquadrada os eventos e revela os bastidores de um momento crucial na história recente da Itália, naqueles primeiros anos de 1960, marcados pela crise cubana, o explosivo pontificado de João XXIII, o final do Concílio Vaticano II, a guerra do Vietnã, o início dos movimentos pacifistas. Uma reconstrução feita a partir da consulta aos atos processuais.
"Na verdade", conta Tanzarella, que junto com Anna Carfora, professora de História da Igreja na Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional dos jesuítas, Federico Ruozzi e Valentina Oldano também editaram a obra de Dom Milani para o Meridiani Mondadori, dirigido por Alberto Melloni, "eu tive acesso aos atos do processo como qualquer outro cidadão que o solicite. Muito tem sido escrito sobre dom Milani, centenas de livros e milhares de artigos, mas eu percebi que fui a quarta pessoa a ter pedido o acesso aos atos do processo, depois de um aluno de doutorado, um magistrado e outro estudioso". Consultar o dossiê - "um documento não particularmente volumoso" - permitiu ao historiador revisar o evento do processo, descobrindo detalhes e episódios que restituem todo o peso do acontecido. A partir das cartas, por exemplo, "emergem as contestações feitas pelo Ministério Público, as anotações que os magistrados registraram às margens dos dois documentos, os destaques feitos nas frases de Dom Milani que eles consideraram apologia ao crime".
O professor evidencia de fato que "o que muitos esquecem é que um dos pilares das duas cartas foi uma releitura da história nacional, da unificação da Itália naquela época, para destacar que todas as guerras haviam sido desnecessárias e injustas, exceção feita pela guerra de resistência. É um verdadeiro e próprio excurso sobre os últimos cem anos de história da pátria, densa de conflitos, colonialismo implacável e sistemática opressão das classes mais fracas, um excurso desprovido de qualquer retórica comemorativa. Isso, hoje, não deixaria indiferente os que exaltam o Padre Milani e, depois, continuam a participar despreocupados à encenação de 2 de Junho (Proclamação da República, ndt)".
Para Tanzarella, "outro elemento importante são os atestados médicos solicitados para dom Milani, os inquéritos feitos para verificar seu estado de saúde, as respostas dos policiais que escrevem para o Tribunal que o sacerdote não se levantava mais da cama e não conseguia mais celebrar a missa". Atos adequados, para um tribunal, mas que permitem vislumbrar uma desconfiança contra um homem que, ao contrário, sofria "uma longa agonia, submetido a quimioterapias que causavam imensos danos, sofrimentos contínuos, noites insones, uma tosse incontrolável, sérios problemas neurológicos, incapacitação nas pernas, mas mesmo assim foi tratado por algumas pessoas como se fosse um intelectual que confortavelmente escrevia seus textos sentado à sua mesa".
"Naquela época sua mãe pediu-lhe para voltar para Florença e procurar tratamento e ele negou-se, permanecendo na linha de frente em Barbiana e continuando a preparar suas aulas na cama”. Além disso, enfatiza novamente o historiador, "é interessante a atitude de Milani, como evidenciam algumas cartas que escreveu para Aldo Capitini: ele recomendou que não deixasse vazar a carta aos juízes antes da data da audiência, porque os juízes precisavam permanecer livres. Padre Milani pediu aos seus apoiadores para, no máximo, estarem prontos para contestar a sentença, mas somente depois desta ter sido pronunciada, não antes, porque – explicava - os juízes deveriam estar livres dos condicionamentos da opinião pública".
Outro elemento que emerge das cartas, prossegue Tanzarella, "é o trabalho de dom Milani no verão de 1965, quando ele convenceu-se cada vez mais que seria solicitado um adiamento do julgamento, mais tarde confirmado para julho. Para a elaboração da "Carta aos juízes" o sacerdote consultou muitas pessoas, incluindo figuras proeminentes, como Aldo Capitini e o professor Giorgio Peyrot, responsável pelo departamento jurídico da Tavola valdense (da Igreja protestante, ndt) em Roma, especialista na época em objeção de consciência. Este último, como tive oportunidade de reconstruir a partir de documentos que encontrei nos arquivos da própria Tavola valdense, foi para Barbiana onde teve uma longa conversa com Milani na fase final de elaboração da carta, episódio que mostra o apoio oferecido pelo mundo protestante a Dom Milani”.
Anexadas ao documento de defesa, ainda, existem "algumas cartas enviadas em apoio à denúncia feita contra dom Milani, tais como uma carta de altos oficiais e soldados. Isto significa que o fenômeno cresceu, e, em conjunto com dezenas de cartas anônimas, com cartas de condenação e de ameaça, gerou certa preocupação para Milani e seus amigos. Uma preocupação de que também Barbiana fosse isolada. "Iremos te buscar", "terás o mesmo fim dos teus companheiros", são algumas das ameaças contidas nas cartas anônimas, que fornecem uma ideia do clima pesado". O professor Tanzarella explica, inclusive, que também chegaram "numerosas cartas de católicos que davam apóio a dom Milani após a publicação da carta para os juízes: os tempos estavam mudando, havia se concluído o Concílio, e vários católicos de toda a Itália, até mesmo alguns padres, escreveram para apoiá-lo".
O que emerge da reconstrução histórica e crítica de sua figura e de sua obra é que Padre Milani é mais frequentemente citado do que lido, elogiado sem que os louvores dêem origem a lógicas consequências. "Na melhor das hipóteses", resume o professor Tanzarella, "existe uma total ignorância, fala-se de Milani sem consultar as fontes, sem tê-lo lido, até descambar em invenções”. O historiador cita o exemplo de quando uma frase do padre Primo Mazzolari – o outro padre que o Papa Bergoglio vai comemorar na terça-feira, em Bozzolo (Mantova) antes de visitar Barbiana – “Para o que serve ter as mãos limpas, se ficam nos bolso?”, foi atribuída ao Padre Milani pela primeira vez por Roberto Saviano, e depois, sucessivamente, por editoras, jornalistas, até mesmo cardeais, até ser pronunciada, sempre atribuída ao Padre Milani, por Massimo Cacciari ao funeral de Dom Luigi Verzè.
O outro fenômeno, além de ignorância, é o de 'normalização', não apenas dentro das comunidades eclesiais, afirma Tanzarella: "É claro que o personagem é tão pouco aceitável pelo pensamento médio do passado e do presente que, às vezes, tenta-se domesticá-lo, até esquecer as palavras... um reducionismo onde Milani se torna pedagogo, ou se fala do "método Milani", enquanto ele mesmo dizia: "Não me perguntem o que precisa ser feito, mas como é preciso ser para fazer o que eu faço".
Um personagem, Padre Milani, muito incompreendido, que agora o Papa Francisco trata de reabilitar com a sua viagem a Barbiana. Evento que o professor Tanzarella espera tenha consequências já no dia seguinte à viagem: "Seria bom que, depois de 50 anos, ‘Experiências pastorais’ (o texto de 1958 do Padre Milani que o Santo Ofício mandou recolher das bancas julgando-o inapropriado, ndr) seja colocado nas mãos dos seminaristas".
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Lorenzo Milani, bastidores de um processo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU