30 Mai 2017
A partir de 1930, a vulnerabilidade de presidentes eleitos tornou-se o feijão com arroz da política nacional. A instabilidade decorre da incapacidade dos governantes de lidar com a ascensão do povo como ator relevante e portador de demandas novas num país marcado pela desigualdade.
O comentário é de José Murilo de Carvalho, cientista político e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, é autor de "Cidadania no Brasil, o Longo Caminho" (Civilização Brasileira), em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 28-05-2017.
Mirar o passado para entender o presente é complicado, pois a história não se repete nem como tragédia, nem como farsa; assemelha-se mais ao rio de Heráclito, em que não se pode entrar duas vezes. No entanto, há sem dúvida continuidades que justificam o exercício.
A crise atual, em sua dimensão política, foi deslanchada pela substituição do chefe de Estado sem a intervenção de eleições. Não que se trate de novidade entre nós. Desde 1930, por dentro da Constituição ou à revelia dela, tem sido frequente esse tipo de substituição.
Antes, houve a estabilidade imperial e a da Primeira República. Uma foi garantida pelo sistema monárquico-constitucional do Segundo Reinado (1840-1889), em que o chefe de Estado não era eleito; a outra, de 1889 a 1930, pelo arranjo oligárquico montado a partir de Campos Sales (1898-1902).
Uma simples estatística demonstra a mudança havida depois de 1930, ano a partir do qual a vulnerabilidade da Presidência em eleições diretas virou o feijão com arroz de nossa política.
Nesse período de 87 anos, somente cinco presidentes eleitos pelo voto popular, excluídos os vices, completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Juscelino Kubitschek (1956-1961), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014).
Quatro não completaram: Getúlio Vargas (1951-1954), Jânio Quadros (1961), Fernando Collor (1990-1992) e Dilma Rousseff (2015-2016).
Além disso, sete não foram eleitos pelo voto direto: Getúlio Vargas (1930-1945), Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979), João Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990).
Estabelecido o fato, o passo seguinte é buscar alguma explicação para ele. Um modo de fazê-lo é procurar o surgimento de outro fenômeno político da época.
O que mais chama a atenção, embutido na própria Revolução de 1930, é a entrada do povo na vida política, deixando de ser o bestializado de Aristides Lobo (em 1889, a respeito da Proclamação da República, o jornalista escreveu: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava").
A Primeira República não tinha povo. Nela, apenas 5% da população votava; a participação popular se dava à margem do sistema representativo, em revoltas urbanas, como a da Vacina, messiânicas, como as de Canudos e do Contestado, ou greves operárias nas grandes cidades.
Após 1930, sob inspiração do cenário internacional, surgiram a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Revoltas pipocaram pelo país, muitas delas chefiadas por oficiais militares de segundo escalão ou mesmo sargentos, como as de 1935 e 1938. Ao final da década, os trabalhadores, na defensiva até então, passaram a ser interpelados pelo governo e se transformaram em ator político intrassistêmico.
Com a democratização de 1945, a inclusão do povo passou a ser feita também por via eleitoral e se deu a passos largos. Se em 1930 votavam 5% da população (menos de 2 milhões de pessoas), em 1945 já foram 13% (6 milhões de pessoas), aí incluídas as mulheres, admitidas à cidadania política pelo Código Eleitoral de 1932.
Daí por diante, o crescimento foi constante. Em 1960, o número de votantes subiu a 18%. Em 1986, chegou a 47%. Em 2014, os habilitados a votar já eram 71% dos brasileiros, cerca de 140 milhões de pessoas. Foi um tsunami de povo no sistema representativo.
Acoplado a esse crescimento veio o instrumento capaz de tornar a participação politicamente eficaz: a gestação de um inédito partido dos trabalhadores.
O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi criado em 1945 por inspiração de Getúlio Vargas, que, para tanto, credenciara-se pela legislação trabalhista de 1943 (CLT).
Gerado no bojo do queremismo, que pedia uma constituinte com Vargas, o partido se expandiu depressa: em 1946, elegeu 22 deputados; em 1962, dois anos antes do golpe de 1964, contava 116 representantes na Câmara.
Em contraste, os dois principais partidos conservadores, o PSD e a UDN, que tinham mais de 80% dos assentos na Câmara em 1945, caíram para 51% em 1962.
Ficou famosa, e contribuiu para sua queda, a frase dita por Vargas em discurso dirigido aos trabalhadores no Dia do Trabalho em 1954: "Hoje estais com o governo, amanhã sereis o governo". Era uma declaração impensável poucos anos antes e não foi repetida depois.
O combate ao PTB marcou duas crises. Em 1954, o pretexto foi a corrupção; em 1964, o comunismo.
A oposição a Getúlio e a João Goulart beneficiou-se amplamente do clima de guerra fria e da intervenção militar. A entrada do povo, vinho novo, tinha explodido o sistema, odre velho. O novo ator, via partido e sindicatos, trazia demandas que ameaçavam um país secularmente marcado por persistente desigualdade.
Pela primeira vez, entrou na agenda política, trazida pelo PTB, a cobrança de políticas distributivas encarnadas nas reformas de base propostas por Goulart. Embora ainda escorados no Estado, os portadores da nova agenda ensaiavam passos mais independentes – e foram defenestrados.
A fase seguinte, a da ditadura (1964-1985), apresentou aspectos contraditórios quanto à participação popular.
De um lado, em 21 anos, 53 milhões de brasileiros foram incorporados ao sistema político pelo direito ao voto, número igual à população total do país em 1950.
Do outro, extinguiram-se os partidos que desde 1945 vinham configurando um novo sistema representativo; eliminaram-se as eleições diretas para cargos executivos; cassaram-se deputados e fechava-se o Congresso sempre que a Casa se recusava a atender às exigências do Executivo.
Até a eleição de 1982, o partido oficial, a Arena, manteve maioria na Câmara, com base sobretudo nos votos das regiões mais pobres. O sucessor da Arena, o PDS, era chamado de partido do Nordeste.
Ao mesmo tempo, houve dramática mutação na estrutura ocupacional e na taxa de urbanização. Milhões migraram para as cidades, fugindo ao controle dos coronéis.
Na década de 1980, a oposição começou a ganhar eleições tanto para o governo dos Estados quanto para o Senado, forçando o retorno do multipartidarismo.
A história da representação após 1985 é conhecida. Foi marcada principalmente pelo surgimento do PT (em 1980), cuja proposta era retomar em novas bases a representação do povo/trabalhador com uma agenda voltada para a redução da desigualdade.
Como o PTB nos anos 1950, o partido teve crescimento rápido e, sem guerra fria e interferência militar, conseguiu chegar ao poder, embora pagando o alto preço de uma aliança conservadora com o PMDB.
Antes disso, a consistência ainda frágil das legendas redundou na eleição de Fernando Collor, um aventureiro sem base partidária que teve o destino que se sabe.
Com a sequência Fernando Henrique-Lula, que durou 16 anos, parecia que o país finalmente entrara em um ciclo virtuoso, no qual a democracia política (entrada de povo) parecia conjugar-se com a democracia social (igualdade) e a estabilidade política.
A entrada maciça de novos atores na política e a diversificação da sociedade pela urbanização e pelo crescimento econômico, acopladas à multiplicação de partidos (hoje são 35), teve como consequência a fragmentação da representação, inclusive a das camadas populares.
Hoje, não há um povo eleitoral, há vários povos.
Há o povão das políticas sociais, sobretudo do Bolsa Família, que não se manifesta enquanto essas políticas são mantidas. Há o povo muito aguerrido formado por operários e setores da classe média, organizado em sindicatos e associações. Há o povo que foi à rua em 2013, de comportamento errático, composto de setores da classe média. E há o povo das redes sociais, de impacto crescente na política, mas ainda de difícil avaliação.
A diversificação da sociedade, a democratização da política e a fragmentação dos partidos estão na base da crise atual.
O impeachment de Dilma Rousseff deveu-se – para além de seus erros elementares na política econômica que inviabilizaram a continuação de uma política distributiva – à corrosão de sua base parlamentar e à imensa corrupção gerada pela necessidade de comprar alianças de outras siglas.
Uma corrupção de que participou com destaque o próprio PT, que, com isso, perdeu boa parte de sua credibilidade política e de sua eficácia como defensor das mudanças sociais.
Passados 87 anos de 1930, ainda estamos lutando com o problema de construir uma democracia inclusiva, capaz de sustentar governos representativos que possam combinar estabilidade institucional com implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades da maioria dos representados.
A ser correta minha argumentação, seria plausível atribuir a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.
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Brasil não soube assimilar entrada do povo na vida política, diz historiador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU