Por: João Flores da Cunha | 24 Mai 2017
Por detrás da máquina governamental que exerce o poder sobre nossos corpos e nos controla, há apenas um vazio. Esse foi o centro da fala de Rodrigo Karmy Bolton, professor e pesquisador da Universidad de Chile, que proferiu no dia 23-5 a conferência Glória e uso: Giorgio Agamben e a crítica ao presente. Sua palestra faz parte do VI Colóquio Internacional IHU – Política, economia, teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, que ocorre nos dias 23 e 24 de maio na Unisinos, no campus de São Leopoldo.
Em relação à obra O Reino e a Glória, Karmy notou que, entre outros pensadores, Giorgio Agamben foi influenciado pelo teólogo alemão Erik Peterson, de onde retirou a compreensão do cristianismo como uma teologia oikonômica, e não política. Segundo o professor, “é fundamental entender que a pergunta agambeniana não é teológica, posto que não se formula em termos de ‘o que é a glória?’, e sim em termos de ‘como funciona o dispositivo de glorificação?’”.
Assim, o objetivo é compreender a pragmática desse dispositivo, e não uma suposta essência que estaria por trás. A tese desenvolvida por Agamben em O Reino e a Glória, conforme Karmy, é “que as formas clássicas de glorificação que atuavam no espaço restrito da liturgia cristã acabaram por impregnar o conjunto da vida social, configurando o que Guy Debord denominou sociedade do espetáculo”.
Portanto, constitui-se uma vinculação, na obra de Agamben, entre os conceitos de biopolítica e de sociedade do espetáculo. Nesse sentido, a democracia moderna “é uma democracia gloriosa, na qual a oikonomia se resolve integralmente em glória”, a qual acaba por dominar a vida social.
No pensamento de Agamben, “a governamentalidade não é outra coisa que a performatividade da glória. Não há um detrás das formas de glorificação, mas tão somente a performatividade de sua produção incondicionada”, segundo Karmy.
O pesquisador assinalou que essa visão distancia Agamben de teóricos marxistas, na medida em que, para esses, “por detrás da ideologia, existem interesses reais de classe”. Para Agamben, por outro lado, “detrás da ideologia, ou das formas de glorificação, não há nada. A performance é precisamente o poder, o modo de exercício do poder”.
"A performance é precisamente o poder, o modo de exercício do poder" (Foto: João Flores da Cunha)
“Por que o poder precisa da glória?”, é a pergunta que Agamben se coloca no início desta obra, registrou Karmy. “É porque, com a glória, o poder oculta o vazio que é constitutivo de sua própria práxis. A glória, no fundo, nada oculta. Não há, atrás dela, uma realidade que seria necessário revelar, mas tão somente o vazio, ou o trono vazio, que configura o próprio centro da máquina governamental”. Nesse sentido, “a glória oculta nada, que no fundo é o que a própria glória é”, afirmou Karmy.
A partir da colocação do problema, Agamben passa a investigar a interrupção da máquina, “que só pode ter lugar onde a máquina governamental deponha seu dispositivo glorioso e exiba sua própria intempérie, seu trono vazio constitutivo”, segundo Karmy. “O dispositivo glorioso não faz outra coisa que capturar a inoperosidade da vida humana e ocultar o abismo que atravessa-a, obliterando o fato de que o mistério da máquina é que, finalmente, não tem mistério algum”, de acordo com o professor.
Agamben se dedica então a pensar o que revoga a máquina: a insurreição. Se Hannah Arendt havia proposto a ideia de ação, Agamben a substitui por uso, e se propõe a pensar o uso como categoria política fundamental. Assim, ele pretende fundar uma teoria política a partir da noção de uso, e não de ação; busca retirar a centralidade da ação e associar a práxis ao uso.
“Como pensar para além do sagrado? Como conceber uma noção de práxis que não pertença, no fundo, à esfera jurídico-religiosa? ”. Seguindo nessa linha de raciocínio, Agamben busca associar a vida feliz ao uso, e ao que o pensador configura como uso dos corpos.
Nesse sentido, Karmy assinalou que Agamben se propõe a pensar não em um poder constituinte, como Antonio Negri, mas em uma potência puramente destituinte, “que seja capaz de revogar as máquinas do poder e abrir a vida humana ao inexplorado campo do uso”.
Uma proposta de Agamben desse uso é a comédia, segundo Karmy. “Não há nada mais impensado do que a risada, a gargalhada, a irrupção da alegria que desconcerta as zonas sagradas”, assinalou. Agamben surge, portanto, como “um pensador cômico, que não faz mais do que deixar de lado a substância com que se erige toda máquina, mostrando o vazio de uma práxis sem fim”.
Assim, “se a filosofia tem uma aposta por realizar, não será a da simples crítica, ou de trazer consigo a verdade, mas a de rir, voltando-nos à alegria do pensamento, sobre cujo termo os filósofos encontraram uma vida feliz, sob a noção de contemplação” – que é um momento de felicidade, na tradição filosófica.
“Se a filosofia abraça uma forma de vida, ou uma vida feliz, é porque essa se apresenta como o antídoto mais eficaz contra toda máquina, fazendo impossível que a potência se transforme em poder, que a vida feliz termine no simples gozo capitalista, e, portanto, que seja absolutamente impossível para o poder isolar algo assim como uma vida nua”, de acordo com o professor.
“A comicidade como tentativa de desarticulação das máquinas inscreve Agamben no interior de uma cadeia secreta da tradição filosófica, que se encontra na fissura aberta por Averróis e o averroísmo latino”, afirmou Karmy.
“Exibir o trono vazio, abrir a práxis capturada pela violência, constituirá o gesto agambeniano por excelência. Atrás de toda máquina, não há ninguém e nada. Carece de substância, porque está inteiramente vazia. Cômica será a operação que restitui o uso relativo à sacralização trágica imposta pelas diversas máquinas do poder”, assinalou o pesquisador.
Rodrigo Karmy (Foto: João Flores da Cunha)
Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidad de Chile, onde leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Humanidades. É autor de Políticas de la interrupción. Ensayos sobre Giorgio Agamben (Santiago de Chile: Editorial Escaparate, 2011), Políticas de la excarnación. Para una genealogía teológica de la biopolítica (Buenos Aires: UNIPE: Editorial Universitaria, 2013) e Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporáneo (Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2016).
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Agamben e o vazio que constitui a máquina governamental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU