26 Abril 2017
Checamos a afirmação de que as contas do sistema tiveram um superávit de R$ 658 bilhões de 2005 a 2015.
A reportagem é de Patrícia Figueiredo, publicada por EcoDebate, 25-04-2017.
“É uma falácia dizer que existe déficit. Em dez anos, entre 2005 e 2015, houve uma sobra de R$ 658 bilhões.” – Guilherme Portanova, assessor jurídico da Confederação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (Cobap), em entrevista publicada em 7 de dezembro.
Um dos temas mais polêmicos no debate sobre a reforma da Previdência tem invadido os grupos de WhatsApp. Defensores do projeto afirmam que há um rombo nas contas do governo causado pelas aposentadorias e que, se nada for feito, a situação só vai piorar. Críticos dizem que, na verdade, sobra dinheiro e que o déficit não existe. Uma corrente distribuída recentemente menciona uma reportagem na qual foi entrevistado o advogado Guilherme Portanova, representante da Confederação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (Cobap). Para ele, não há déficit e, de 2005 a 2015, houve sobra de R$ 658 bilhões. O Truco – projeto de verificação de fatos da Agência Pública – analisou esses dados, que são bem diferentes daqueles informados pelo governo. A conclusão é que os dois lados usam metodologias distintas para chegar a resultados matematicamente corretos e, segundo especialistas, igualmente válidos, de acordo com o critério adotado. Por isso, a frase de Portanova foi classificada como discutível.
A reportagem procurou a Cobap e pediu a fonte dos dados usados pelo advogado. A assessoria de imprensa da entidade informou que Portanova se baseou em números levantados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip). O próprio Portanova disse que usou uma tabela elaborada em conjunto por 19 entidades sociais, entre elas a Anfip. O documento foi apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) em ação que questiona iniciativas governamentais relacionadas ao financiamento do sistema de seguridade social (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – 415). De acordo com a tabela, o resultado no período entre 2005 e 2015 seria um superávit de R$ 657,7 bilhões, número muito próximo do apontado pelo advogado.
A assessoria da Anfip confirma que a tabela fornecida por Portanova foi elaborada com dados da entidade. O valor do superávit anual, no entanto, é revisto a cada novo relatório. Segundo os dados mais atualizados, o superávit no período de 2005 a 2015 seria um pouco menor, de cerca de R$ 656,72 bilhões.
A afirmação de Portanova, de que haveria uma sobra de R$ 658 bilhões entre 2005 e 2015, baseia-se em dados de toda a seguridade social, não apenas da Previdência. É aí que está a origem do dilema em torno da existência ou não do déficit. O artigo 194 da Constituição não é claro quando define que a seguridade social “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.
Especialistas afirmam que o conceito pode gerar diferentes interpretações. “O terreno da seguridade social é muito nebuloso. Há pouca transparência. É muito complicado fazer uma conta que feche no final porque se trata de um sistema fundado na ideia de solidariedade: você está pagando para os de trás, esperando que os da frente paguem para você”, afirma o professor Marcus Orione Gonçalves Correia, professor ligado ao Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
O conceito é bastante amplo também para Gilberto Braga, professor de finanças no Ibmec-RJ. “Seguridade social pode ser tudo que vê o fim social. Obras de saneamento, por exemplo, podem ser consideradas, indiretamente, parte do conjunto da seguridade”, argumenta.
O governo federal defende que a seguridade social registra déficit desde 2002. É o que mostra o balanço oficial apresentado pelo Ministério do Planejamento em março. De acordo com o documento, o rombo foi de R$ 258,7 bilhões em 2016. Entre 2005 e 2015 – período apontado como superavitário por Portanova –, a pasta calcula um déficit de R$ 803,6 bilhões.
Críticos da reforma da Previdência alegam que a Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas, seria, em parte, responsável por esse déficit. Mas segundo o mesmo balanço do Ministério do Planejamento, o conjunto da seguridade social é deficitário mesmo sem a incidência da DRU. Nesse caso, o déficit sem a DRU seria de R$ 157 bilhões em 2016 e de R$ 258,4 bilhões no período mencionado por Portanova, entre 2005 e 2015. Correia, da USP, critica o modo como o governo administra as receitas do conjunto. “Não tem como continuar fazendo essas desonerações e DRUs e argumentar que é necessária uma reforma. Ainda que houvesse déficit, esse sistema não é sustentável”, diz.
Já os cálculos da Anfip apontam para a existência de superávit no conjunto da seguridade social. Isso ocorre porque a contabilidade feita pela organização difere daquela usada pelo Planalto. Ela exclui despesas como os pagamentos de aposentadoria de servidores públicos e oficiais militares, por exemplo, e inclui receitas como os valores desvinculados via DRU. A lista completa de despesas e receitas consideradas no cálculo está disponível na tabela 8 da página 43 do relatório de 2015 da Anfip. “O governo coloca na conta os servidores públicos e os militares, mas na Constituição não está expresso que o pagamento de oficiais reformados e servidores entra no conjunto da seguridade social”, afirma o economista Vilson Antonio Romero, presidente da Anfip.
O relatório elaborado pela entidade justifica por que tais despesas foram excluídas da contabilidade. “O pagamento das aposentadorias militares é um ônus público, não tem natureza previdenciária propriamente dita”, diz o documento. “Independentemente das razões que justifiquem esse regime dos militares e as suas regras de contribuição, os dados desse regime nunca poderiam ser somados às contas de seguridade social”. Vale lembrar que, no regime de previdência militar da União, toda a contribuição é feita pelo governo – os descontos nos pagamentos de militares servem apenas para custear pensões, pagas para as famílias em caso de morte.
Romero acrescenta que os números da Anfip são endossados por diversos órgãos: “Nossa análise tem o aval de instituições como o Conselho Federal de Economia (Cofecon), Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)”, diz Romero. “Todas essas [entidades] referendam os números da Anfip.”
Portanova, autor da frase checada e integrante do grupo responsável pelo relatório, também critica a contabilidade governamental. “O governo afirma que há déficit porque não computa todas as receitas previstas no Artigo 195 da Constituição. Se a seguridade social é superavitária, não tem como a Previdência ser deficitária”, afirma o advogado. O governo rebate as críticas apresentando os dados dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, que apontam para existência de déficit, e alega que, sem reforma, não haverá fundos para a seguridade no futuro. “A reforma da Previdência é necessária para garantir que todos os aposentados receberão seus benefícios no futuro. É uma necessidade, não é questão de posição política”, afirma o Ministério da Fazenda, em nota à imprensa divulgada em 6 de abril.
Marcus Correia, da USP, foi um dos especialistas independentes procurados pela reportagem e concorda com os cálculos feitos pela Anfip. Para ele, a contabilidade do governo é “nebulosa e arbitrária”. “A Anfip tem números muito mais interessantes e é uma entidade muito séria”, afirma. “Esse déficit apresentado é decorrente de uma distorção provocada por uma das partes pagadoras, que é o governo. Se você realocasse os valores desviados por meio de desonerações, DRUs, ou as contribuições sociais, como PIS, Pasep e Cofins, utilizadas em outros fins, não haveria déficit.”
Mas os cálculos da Anfip não são unanimidade entre os especialistas consultados. O economista Gilberto Braga, do Ibmec-RJ, discorda da contabilidade da instituição e afirma que os cálculos mais próximos da realidade brasileira são os apresentados pelo Planalto. “Eu não diria que há uma manipulação ou uma falsidade nestes relatórios independentes. Eu tenho certeza que eles estão corretos do ponto de vista contábil e matemático”, diz. “O que existe é uma variedade de critérios entre as diferentes contabilidades na hora de considerar o que são as receitas e as despesas da seguridade.” Ele acredita que a contabilidade do governo é a que mais se aproxima da realidade atual. “Na minha ótica, a desvinculação não muda nada, os recursos não deixam de ser usados. No final tudo que tem fechar. E, mesmo descontando as DRUs, a conta não fecha”, explica.
A análise dos dados feita pela reportagem mostra que as duas metodologias, apresentadas pelo governo e pela Anfip, trazem resultados diametralmente opostos. E especialistas não são unânimes em afirmar qual delas seria a mais correta. Diante disso, o Truco confere a classificação de discutível à frase de Guilherme Portanova, diretor da Cobap que se apoiou em dados da Anfip. A conclusão sobre ela varia de acordo com a metodologia adotada – ou seja, depende do que é considerado como receita e despesa da seguridade social.
O julgamento da ADPF 415 no STF vai exigir que os ministros apontem a contabilidade mais adequada. A arguição pede para o STF declarar que as contribuições sociais são tributos com destinação específica e que não comportam desvinculações e desvios, além de solicitar também a suspensão da tramitação da PEC da Reforma da Previdência. Se a arguição for declarada procedente, o Supremo terá referendado os argumentos que justificam a contabilidade de instituições como a Anfip e a Cobap.
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Sobra dinheiro na seguridade social? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU