04 Abril 2017
Autor de best-sellers de divulgação científica, físico teórico fala sobre seu método para escrever livros técnicos direcionados ao público leigo, discorre sobre seu campo de estudo, conhecido como gravidade quântica, explica o erro na concepção de tempo da maioria das pessoas e discute os avanços da ciência.
A entrevista é de Henrique Gomes, doutor em física pela Universidade de Nottingham (Reino Unido) e pesquisador no Perimeter Institute for Theoretical Physics (Canadá), publicada por Folha de S. Paulo, 02-04-2017.
Poucos físicos teóricos têm o privilégio de liderar uma comunidade de pesquisadores. Um número ainda menor merece o respeito e a atenção dos filósofos da ciência. Há, por fim, o ar extremamente rarefeito em que reside o italiano Carlo Rovelli, habitado por aqueles que, além de tudo, escrevem com sucesso para o público leigo.
Prova disso é o best-seller "Sete Breves Lições de Física" (Objetiva), que, em sua terra natal, vendeu mais que o romance "Cinquenta Tons de Cinza". Agora, ele lança no Brasil o livro "A Realidade Não É o que Parece" [trad. Silvana Cobucci, Objetiva, 246 págs., R$ 39,90].
Aos 60 anos, Rovelli está frequentemente imerso em discussões com seus pares e alunos, é contatado para entrevistas e convidado para conferências –em maio, participa do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, no Brasil. Para ter tranquilidade, veleja a partir do cais de Marselha, na França, onde trabalha há 20 anos na Universidade Aix-Marseille (ele também é professor da Universidade de Pittsburgh, nos EUA).
Sua área de atuação é conhecida como gravidade quântica.
Para a maioria das pessoas, gravidade é a força que sentimos nos puxando para baixo. Só que essa visão simples, baseada em Isaac Newton (1643-1727), revelou-se insuficiente para descrever o que conhecemos do Universo.
Desde Albert Einstein (1879-1955), as ideias de Newton foram superadas, absorvidas em uma explicação mais abrangente, a teoria da relatividade geral.
Nela, a gravidade assemelha-se mais ao eletromagnetismo: um campo que pode variar de lugar para lugar e de instante para instante, não uma força instantânea entre corpos. Esse campo é o espaço-tempo. Ele dita quão longe as coisas estão umas das outras, tanto no espaço quanto no tempo.
De acordo com essa nova visão, mesmo objetos sem massa, como a luz, sentem a influência da gravidade. Nesse mundo não newtoniano, o campo pode se contorcer e formar ondas, como as detectadas pelo grupo do Laser Interferometer Gravitational-Wave Observatory (Ligo), nos EUA, em 2016.
Ao longo do século 20, a área da física conhecida como mecânica clássica, responsável por descrever o movimento dos corpos, também passou por revisões profundas. Seu maior problema é expressar a posição e a velocidade dos objetos de maneira precisa –um determinismo que não se sai bem no mundo microscópico.
A mecânica quântica veio tentar resolver essas dificuldades. De acordo com essa nova teoria – cujo funcionamento ainda está sujeito a divergências–, uma partícula pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Sua posição e sua velocidade exatas não são conhecidas; sabe-se apenas qual é a probabilidade de ela estar em cada lugar.
O desafio da gravidade quântica é fundir a relatividade geral de Einstein à mecânica quântica.
O objetivo de Rovelli é explicar a sua própria abordagem do problema, conhecida como gravidade quântica de loop. Mas ele não se contenta em descrever a teoria ou explicar como ela atualiza Newton.
Sua ambição é demonstrar a unidade histórica da saga humana para compreender a natureza –de Tales de Mileto aos dias de hoje, passando por Anaximandro, Newton e Einstein, entre outros.
Eis a entrevista.
O senhor é um dos poucos físicos teóricos que também escrevem livros para o público leigo. O que inspirou o senhor a isso?
Eu pensava em escrever para uma audiência leiga havia muito tempo. Estava encantado pela física com que trabalhava e queria compartilhar essa beleza. Além disso, muitas pessoas pediam um livro de gravidade quântica. Mas, por muitos anos, quis me concentrar na ciência. Um dia, pensei que precisava escrever pelo menos um livro técnico antes de escrever para o grande público. Então, depois de terminar duas obras com os resultados de minha pesquisa, fiquei livre para escrever para todos.
Como se equilibra entre ser tecnicamente correto e ainda assim acessível ao grande público?
Eu não me pergunto o que poderia incluir que ainda seria compreensível. Em vez disso, continuamente me pergunto o que posso cortar. Quero eliminar o máximo de detalhes e manter só o que for necessário para a compreensão do ponto central. Portanto, não abro mão de estar correto tecnicamente.
A maioria dos físicos de hoje reserva pouco tempo para estudar filosofia natural e sua história. O sr. acha que, erudição à parte, muito se perde com essa omissão?
Os grandes físicos do passado, como Einstein, Newton, Heisenberg, Galileu etc., todos tinham vasta cultura, que incluía filosofia e história das ideias. Eram ávidos leitores. Acho que a atual especialização leva à superficialidade ao lidar com avanços na física.
Muitas discussões do passado podem ser inspiradoras para os problemas de hoje. O mero conhecimento de opções conceituais já exploradas abre nossa mente e nos ensina que o que pensamos pode ser unidimensional. Muitos físicos hoje acreditam que exploram ideias revolucionárias só porque adicionam dimensões espaciais, partículas ou matemática complicada.
Eles não percebem que estão usando a mesma estrutura conceitual. Heisenberg podia encontrar um modo de pensar sobre a natureza completamente novo, e não era por acaso que ele também conhecia muito sobre a ciência antiga.
O ideal é encontrar um equilíbrio entre o conhecimento já existente e nossa própria visão de mundo. Hoje, porém, parece que as pessoas dão peso cada vez maior para a própria visão de mundo.
Excesso de respeito pelo conhecimento existente bloqueia o progresso. Mas descartá-lo não leva a nada, só à tolice. Concordo que hoje muitos grupos se acham livres para pensar como querem, resultando não em aumento de criatividade, mas em absurdos. É sempre difícil encontrar o equilíbrio.
O desequilíbrio fica muito evidente quando olhamos para movimentos de ceticismo diante do aquecimento global ou para a pandemia de notícias falsas. O sr. acredita que a ciência possa perder sua posição de árbitro no campo dos fatos objetivos?
O ceticismo quanto ao aquecimento global é o pior –e hoje o mais perigoso– exemplo da pandemia de notícias falsas. Mas esses não são fenômenos novos. A negação dos efeitos nocivos dos cigarros, anos atrás, foi similar e promovida por interesses privados. Claro que a ciência não tem todas as respostas, mas não recorrer à ciência quando ela está disponível é autodestrutivo. Espero que a humanidade não seja tão tola.
Falando de ciência, as pessoas têm uma ideia errado do que é o tempo?
Com certeza. A maioria não sabe que os ponteiros de um relógio numa montanha andam mais rápido que os de um relógio num vale.
Certo, porque a Terra distorce o tecido do espaço-tempo. No livro, o senhor fala de um "presente estendido", o que acredito ser uma mudança qualitativa ainda mais profunda na concepção de tempo. Pode explicá-lo brevemente?
Acredito que o "presente estendido" é a maior mudança em nossa compreensão da estrutura temporal do mundo. Uso a expressão para caracterizar o conjunto de eventos que não estão no passado nem no futuro de uma determinada pessoa num determinado momento.
Na noção comum de tempo, o que não é nem passado nem futuro –a saber, o presente– é só um momento instantâneo em todo o universo: como um retrato de todas as coisas "exatamente agora".
Einstein, porém, descobriu que isso está errado; entre o passado e o futuro de uma determinada pessoa num determinado momento há uma duração que, a uma distância daquela pessoa, pode se estender por anos. Portanto, não existe "o estado de tudo exatamente agora".
Na sua opinião, por que o tempo tem recebido tanta atenção nos estudos da gravidade quântica?
Porque Einstein compreendeu que o ritmo da passagem do tempo é determinado por um campo. Se esse campo é quântico, então o tempo deve ter propriedades quânticas, e nós ainda não temos ideias muito claras a respeito disso.
Existe um jeito simples de explicar a dificuldade conceitual de dotar o tempo de propriedades quânticas?
A teoria quântica é a descoberta de que grandezas físicas oscilam aleatoriamente. É difícil conceber o tempo como algo que oscila, que continuamente se move para frente e para trás...
Por que se tem estudado tanto os buracos negros se há tão pouco acesso experimental a eles?
Bom, isso vem mudando. Astrônomos estão reunindo observações de buracos negros. Se tudo der certo, em alguns anos o telescópio Event Horizon [ou Telescópio do Horizonte de Eventos, uma rede internacional de telescópios] deve nos possibilitar ver o disco negro do buraco negro no centro da galáxia.
Minha esperança é que possamos detectar sinais de explosão de buracos negros. Eles são objetos fascinantes por si, e podem ser o portal para a compreensão da gravidade quântica.
Outras teorias dentro da gravidade quântica preveem explosões em buracos negros?
A previsão foi feita no contexto da gravidade quântica em loop. Ainda não está claro se o fenômeno é previsível por outras abordagens [como teoria das cordas].
Se essa se tornar uma previsão sólida para a gravidade quântica em loop, estará pronto para aceitar um eventual falseamento da teoria?
Claro. Minha maior curiosidade é descobrir se uma teoria na qual trabalho é verdadeira ou falsa. Espero que seja verdadeira, mas pode ser falsa, e quero saber. Por ora, não estamos nem perto de um falseamento, porque há várias hipóteses (por exemplo, a existência de buracos negros muito antigos) que precisam ser verificadas independentemente para falsear a teoria.
Existe falseamento direto, mas não tão frequentemente como indica o filósofo [Karl] Popper.
Em geral, o que ocorre com as teorias científicas é que suas previsões são verificadas tantas vezes que se tornam confiáveis em seus domínios (é o caso da gravidade newtoniana e da relatividade geral), ou, não sendo capazes de levar a nenhuma previsão, tornam-se estéreis.
Se continuarmos sem muitos experimentos na gravidade quântica, existem outras formas de avaliar se a teoria está no caminho certo?
A ciência não avança apenas com novos resultados empíricos. Copérnico não tinha mais dados do que Ptolomeu. Einstein não tinha dados novos significativos para a relatividade geral, e talvez nem para a relatividade restrita. Precisamos de testes empíricos, contudo, para verificar se a hipótese está correta. Não há outro jeito.
O que o senhor acha das tentativas recentes – bem recebidas por quem estuda a teoria das cordas – de reformular os critérios do sucesso de uma teoria, na linha do que tem sido chamado de "pós-empirismo"?
Acho muito equivocadas. Não se deve confundir as inúmeras razões que podemos ter para investigar algo (como as pistas seguidas por um bom detetive) com a evidência necessária para acreditar que algo seja verdade (como a evidência de que um bom juiz precisa para mandar alguém para a prisão).
Como detetives investigando a realidade, somos livres para usar todo tipo de pista. Mas, como juízes tentando verificar se uma teoria de fato descreve a realidade, precisamos testá-la empiricamente. Isso é o que torna a ciência bem-sucedida; esquecer disso é escorregar no precipício das notícias falsas.
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Físico Carlo Rovelli fala dos erros que cometemos em nossa ideia de tempo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU