14 Março 2017
Ele é o primeiro presidente latino-americano a ser recebido em audiência pelo Papa argentino, seu vizinho da frente. De Montevidéu, onde mora com sua esposa senadora, ele leva pouco menos de três horas de catamarã para cruzar o Rio da Prata e chegar a Puerto Madero, e, dali, se pode ir a pé até a residência de Bergoglio, defronte à Praça de Maio.
Quando Pepe Mujica era presidente, entre março de 2010 e o mesmo mês de 2015, nunca fez esse trajeto. Ele preferiu esperar e viajou 12 mil quilômetros para chegar a Roma, levando de presente o livro de um amigo em comum com o Papa argentino que iria visitar, o historiador e filósofo uruguaio Alberto Methol Ferré, falecido em novembro de 2009. “Ele nos abriu a mente”, comentou Mujica quando entregou o livro. “Ele nos ajudou a pensar”, respondeu-lhe Bergoglio, com um sorriso de compreensão. Uma hora de conversa e um breve comentário ao sair retrataram o encontro entre os dois rioplatenses, o Papa e o Presidente: foi como falar “com um amigo do bairro”, disse Mujica a um jornalista; “um homem sábio, fez saber o Papa através do seu porta-voz. O ex-presidente do Uruguai de 81 anos, com um passado guerrilheiro, nunca mais perdeu de vista o Papa argentino. Até hoje.
Ao microfone, admite que não lembra o que estava fazendo ou onde se encontrava naquele 13 de março, há quatro anos. “Um dos meus defeitos é não lembrar os passos que dei”, desculpa-se. “Sobretudo agora que já não tenho muito tempo pela frente e tento me concentrar nas chaves dos tempos que virão”. Mas diz ter muito claro “a gigantesca surpresa que tivemos”. O plural majestático reflete um modo de ser reservado e próprio do homem do campo. “Parecia-nos difícil que a Igreja tivesse tanta audácia renovadora para eleger um latino-americano e, sobretudo, um personagem tão singular e um pouco contestatório da filosofia concreta que os últimos papas tinham aplicado. Foi um ponto de virada, uma mudança global de toda a orientação da Igreja até esse momento. O que diz muito sobre a sabedoria e os misteriosos recursos dessa realidade tão velha que é a Igreja católica, apostólica e romana. Foi capaz de imprimir uma forte mudança na luta por sua credibilidade em um momento de fenomenal crise no mundo. Quando seu peso histórico e social estava sendo colocado em xeque desde muitos ângulos, a Igreja – com o novo papa – deu-se conta de que sua sorte estava começando a ser questionada no mundo dos pobres e a causa dos pobres, e tentou retomar a profundeza da velha mensagem cristã”.
A entrevista é de Alver Metalli e publicada por Vatican Insider, 11-03-2017. A tradução é de André Langer.
Por que velha?
Velha não no sentido pejorativo, mas no sentido da eternidade, pelo menos da eternidade humana. Eu me considero um admirador político da Igreja católica, apostólica e romana.
“Admirador político”?
Sim, admiro o trabalho da Igreja católica, a gigantesca obra civilizadora que realizou em termos humanos, apesar dos seus defeitos. A língua e a presença da Igreja católica na América Latina são as duas colunas vertebrais da formação do nosso modo de ser. Não reconhecer isso é sinal de superficialidade. Os povos latino-americanos, sobretudo os pobres, são massivamente crentes, e ao longo de toda a nossa história a Igreja teve uma grande participação na construção das nossas nacionalidades. A Igreja está profundamente misturada com as nossas raízes. Língua e Igreja são as duas coisas que mais nos unem. O fato de que eu tenha minhas dúvidas como homem de fé, é outra história. A questão de fundo é como são as pessoas do meu povo, da minha sociedade, quem são os latino-americanos, e isso se deve entender e respeitar. Por isso, quando a Igreja disputa seu espaço, a legitimidade da sua presença, não posso ser neutro, sinto-me amigo, como instituição e como história. Eu sei que se pode censurar a Igreja por muitas coisas, mas é muito mais o que devemos reconhecer-lhe. Porque, em última análise, o que teria para lhe cobrar são os defeitos dos homens, não da Igreja, não da instituição.
E a você, de onde lhe vem esta sabedoria, essa tradição? De seus pais, de sua história, das experiências que viveu...? Porque não é comum ouvir um político de esquerda, que foi presidente do país mais laico da América Latina, falar dessa maneira.
Sempre fui um apaixonado pela história da nossa América Latina, e para onde quer que se olhe encontrei-me com a Igreja. Desde a época da revolução e do nascimento e afirmação das ideias republicanas. Em todos os acontecimentos emancipatórios americanos sempre houve a pluma de um sacerdote por trás do pensamento dos libertadores. Porque os sacerdotes eram um caudal de formação universitária, do pensamento de sua época; eles conheciam a filosofia antiga e o pensamento moderno, o humanista e o científico, e o retransmitiam. É muito difícil conceber o nosso Artigas sem alguns padres que ele tinha ao seu lado.
Nas épocas mais difíceis, mais primitivas, a Igreja teve um papel de santuário, de conservação da sabedoria primitiva da civilização greco-romana que se conservou nos mosteiros, e de alguma maneira em um mundo difícil e de barbárie e de guerra, como foi o feudalismo, manteve acesa a mecha da civilização. Depois vieram outros tempos, mas a história da Igreja, ao longo dos séculos, foi como que um protetor para recolher e conservar parte dessa velha sabedoria que a dor da humanidade tinha acumulado. Transmitiu-a, com maior ou menor consciência, como um espório do futuro.
Não houve nenhum sacerdote que influenciasse você?
Provavelmente sim. Eu tive muitos amigos entre os frades conventuais franciscanos, alguns deles que moravam na Itália até há pouco. Em suma, estou convencido de que o mais fundamental do homem é a fé. Vivemos nos tempos da ciência, mas se você tira a fé, não existe sociedade. É um ato de fé se vou a um banco, deposito alguns pesos e eles me dão um comprovante, porque eu acredito que vão me devolver os pesos quando for lá e pedi-los de volta. Tenho mercadoria, vendo-a porque vão me pagar; é um ato de fé – eu, como sei se vão me pagar? Toda a sociedade está construída sobre a fé. No dia em que tirarmos a fé, estamos acabados.
A questão permanece. Esta sua atitude, crítica e valorizadora do que é a Igreja na história da humanidade, do que é a fé para a vida dos latino-americanos, do pontificado de Francisco, tem sua origem nos estudos que fez, no conhecimento que amadureceu através dos anos ou há algo mais em sua experiência pessoal?
Ambas as coisas. Do ponto de vista histórico, quanto mais para trás olho na história dos grupos humanos, sempre me encontro com pessoas que creem em algo que vai além da sua própria vida. Que é sobrenatural. Considero que o homem é o animal mais utópico que existe. Porque necessita acreditar em algo, em algo não tangível, não questionável, em algo que está além dele mesmo. Crer é uma característica antropológica do homem. A evolução das religiões é o desenvolvimento adulto dessa necessidade.
Ajuda a morrer bem, você disse certa vez...
Eu estive internado no hospital e vi pessoas morrerem... E, muitas vezes, pensei que se a religião desempenha a função de ajudar a morrer bem, bendita seja a religião! No dilema da vida e da morte precisamos acreditar em algo além, que não se corrompe. Cuidemos, prestemos atenção na religião! Eu, com meus limites, não posso questioná-la. Por isso a respeito. A religião é um serviço humano, uma necessidade humana. Respeito a atitude religiosa do homem em geral, é verdade, mas eu sou do Ocidente, nasci na América Latina. A imagem de Deus que aqui semearam tem um rosto cristão, apostólico, romano. E isso penetrou profundamente em milhões e milhões de latino-americanos. Quem sou eu com minhas dúvidas diante do universo para questionar o valor que este tem! Tenho que respeitá-lo. Por isso, eu lhe dizia que sou um admirador político do papel da Igreja católica. Claro, podem me jogar na cara os defeitos deste ou daquele, os limites de uma pessoa ou de outra. Mas, do que nos surpreendemos! Se ela é formada por homens e os homens são ecléticos, pecadores, cheios de erros, que culpa tem a Igreja?
Pode-se dizer sem retórica, sem que pareça um exagero dialético, que estes quatro anos do Papa Bergoglio mudaram a história?
Eu penso que são uma janela aberta. Ele é um formidável lutador social. Pela igualdade, pela misericórdia, pelo direito à compaixão, por tentar fazer entender que a fraternidade é vital entre os homens, por dar-se conta de que vencer na vida não é acumular riquezas.
A luta dele é muito difícil e sei que muitos não concordam com você. Mas ele está dando passos civilizadores, e diante do tribunal da história terão mérito e reconhecimento.
Quando éramos jovens lutávamos pelo poder, que, em seu aspecto digno, é a luta para melhorar a civilização à qual pertencemos. Não para criar um mundo perfeito, mas para galgar degraus de humanidade. Eu vejo o Papa como um formidável lutador que usa todo o seu peso institucional para tocar a nossa consciência, para convocar a sociedade, para mostrar que um mundo um pouco melhor é possível. Mas também depende de nós. Por isso, considero-me um amigo ideológico do Papa, e o acompanharei em tudo o que puder. Tenho muita confiança no que fará, muita confiança.
Quando você foi visitá-lo em maio de 2015, um pouco antes da viagem que o Papa Francisco fez a Cuba no mês de setembro desse mesmo ano, Raúl Castro disse: “se continuar assim, torno-me católico...”. Evidentemente, era uma brincadeira. Você diria algo similar?
Eu sou um acólito do Papa. Minhas dúvidas com Deus são filosóficas. Ou, talvez, eu acredito em Deus. Talvez, não sei... Ou, talvez, como estou me aproximando da morte, eu preciso dele...
Você falou com Marcelo Figueroa, atual diretor da edição argentina do L’Osservatore Romano que acaba de circular, sobre o que o une a Bergoglio: “Penso que por caminhos muito diferentes ambos percebemos o drama humano e as condições desse drama humano que está na base da América Latina e também do mundo. Uma identificação com Francisco é algo inevitável? Qual é esse drama humano, essa tragédia que está na base da América Latina? Onde você vê isso?
Ele se encontra em uma cultura funcional ao lucro, criado pelo próprio sistema capitalista. Essa cultura que se difundiu com força por todas as partes e nos transforma em compradores desesperados. Temos que consumir. Consumir e comprar, sempre coisas novas e diferentes, como se esse fosse o ápice da felicidade humana, e não nos damos conta de que quando compramos coisas estamos pagando com o tempo da nossa vida; em certo sentido, junto com o dinheiro que é preciso ter para comprar, gastamos a nós mesmos. Depois nos damos conta de que não nos resta tempo para os afetos, para a fraternidade, para quem está doente, para as coisas que não dão lucro. Mas que dão o gosto de viver.
A vida não deve ser um peso. A vida deve ser uma mensagem de felicidade. Não devemos confundir a ideia de felicidade, que é um equilíbrio profundo, com a ideia simplista do prazer. A felicidade, no fundo, implica a liberdade: o que faço, o que escolho, se tenho tempo na minha vida para fazer aquelas coisas que têm um significado. Mas se tenho que trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar prestações e prestações e prestações, e o carro não serve mais porque tem que ser mais novo e maior, e depois que tenho casa, preciso de uma casa na praia, e aí me desespero porque preciso de um homem que me ajude a cuidar do que tenho, porque se não me roubam... E quando me dou conta, a minha vida passou e não me restou tempo...
E eu não quero que falte nada ao meu filho... Sim, mas lhe falta você, porque você não tem tempo para caminhar algumas horas com seu filho pegando-o pela mão e levá-lo a um jogo de futebol... Tempo para as coisas mais elementares da vida. Para os afetos, os afetos humanos. Essa é a armadilha do nosso tempo. E quase sem nos darmos conta tornamo-mos incapazes de nos compadecer com o grito dos outros; já não choramos diante do drama de outra pessoa ou não nos interessa ajudá-la suportá-lo, como se isso fosse uma responsabilidade de outra pessoa que não tem nada a ver conosco. Perdemos a calma e ficamos nervosos se o mercado oferece algo que ainda não podemos comprar, enquanto todas as vidas mutiladas pela falta de possibilidades parecem um mero espetáculo diante do qual não nos alteramos.
Melhor pobres que alienados...
Não estou fazendo uma apologia da pobreza; estou falando de sobriedade. Viver com o necessário, com o imprescindível. Mas ter tempo para gastar em coisas que, sem prejudicar os outros, produzem sentimentos, solidariedade, amizade. O que estou dizendo é elementar, e creio que a mensagem cristã, no fundo, não pode estar muito afastada disso.
Este mundo não pode ser um vale de lágrimas para depois ir ao paraíso. Não. Nem vale de lágrimas, nem paraíso. Tudo está aqui, e se há vida após a morte, a raiz está aqui. Hoje, a ideia de vencer coincide com a ideia de acumular riquezas. Seja como for. Mas se, no final, vamos nus deste mundo como viemos! Não vejo muito sentido nessa maneira de viver, nessa obsessão pelo ter. Parece-me que a mensagem cristã recolhe o velho princípio grego: nada em excesso.
Primeira de duas partes. A segunda parte vai aparecer na quarta-feira, 15 de março.
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Mujica, o homem sábio. “Sinto-me um acólito do Papa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU