10 Março 2017
No início é à noite. Apenas perturbada pelo canto das cigarras, até que apenas se impõe o silêncio. E quando aparece a luz, duas cabeças dão as bem-vindas ao espectador, duas cabeças cortadas. Mais longe, os corpos crucificados são envoltos pela fumaça. Um antegosto do inferno? Não, estamos em Scorsese, onde os desafios morais se vivem na carne. E no Japão do século XVIII. Um mundo imerso na escuridão e na névoa, um mundo onde os kirishitan, os cristãos, pescadores e campesinos esfarrapados, esmagados pela miséria, vivem a sua fé em segredo como os discípulos de Jesus no tempo das catacumbas.
O comentário foi publicado por La Vie, 02-02-2017. A tradução é de Juan Luis Hermida.
É neste extremo oriente que desembarcam clandestinamente dois jovens jesuítas portugueses, os padres Rodrigues e Garupe, na busca de um terceiro, o padre Ferreira. Uma missão que vira literalmente um calvário. Rodrigues e Garupe são em breve testemunhas impotentes – e o espectador com eles – dos castigos impostos aos seus correligionários. Punições que pontuam o filme, dando-lhe seu caráter de um lado ao outro assustador, sem escapatória para um espectador que é gradualmente privado, como os heróis, de toda esperança. Nada livre nessas imagens, como elas se abrem as perguntas sobre as questões morais.
Scorsese prolonga a reflexão espiritual começada com A última tentação de Cristo em 1988. Em quanto adapta o romance de Nikos Kazantzákis, ele queria mostrar como um Jesus, terrivelmente humano, descobre quase a pesar de si a sua natureza divina. Aqui, o padre Rodrigues realiza, na sua escala, o caminho inverso. Um caminho de absoluta humildade. Ele é continuamente acompanhado, obsecado com o rosto do Cristo, um Cristo cuja imagem – com seus grandes olhos abertos, a sua testa coroada, tais como pintado pelo El Greco - são um tema recorrente. Rodrigues, caçado pelos japoneses, trancado em sua cela que era uma gaiola para animais, está perto do destino do mártir. Perto de subir heroicamente na sua cruz.
Exceto que, em última análise, ele escolheu se curvar ao seu verdugo, de renegar publicamente a sua fé, porque esse é o preço que é solicitado a pagar pelas vidas de seus irmãos cristãos. E pisoteando a imagem do Cristo, Rodrigues pisa a sua própria vaidade.
Se na primeira aparência parece um filme de aventura, Silêncio se faz pouco a pouco uma reflexão vertiginosa. Com a arte consumada do diálogo, Scorsese confronta Rodrigues a um grande inquisidor retorcido, carregado pelo poder de erradicar o menor traço do cristianismo. Em seguida, temos um Ferreria não menos perturbador, que apóstata ele mesmo com frase após frase faz vacilar a fé do seu antigo discípulo. O teste físico vem para superar a dor física. Tornando o filme ainda mais sufocante.
Mais sem dúvida, levado por uma natureza selvagem e magnífica, Scorsese opta por um estilo quase nu. Lamentaremos os momentos em que o Rodrigues ouve ou acredita que ouve a voz de Jesus! A beleza da imagem parece quase contradizer o horror da historia. Temos que ver como o cineasta filma as cenas do crente crucificado aguardando ser afogado pela maré: sem música, com o rugir das ondas, batendo as rochas. E este homem moribundo que num último suspiro lança seu canto para os céus. De uma experiência aterrorizante, Scorsese faz um momento, único, belo, impregnado de espiritualidade.
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Silêncio. Um filme vertiginoso e desafiador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU