26 Janeiro 2017
Um dos maiores protestos da história dos Estados Unidos, a Marcha das Mulheres no último sábado, injetou ânimo em muitos americanos descontentes com a eleição de Donald Trump.
Mais de três milhões de manifestantes foram às ruas em ao menos 500 cidades do país em defesa de bandeiras que consideram estar sob ameaça no novo governo, como o direito ao aborto, a aceitação de imigrantes, a proteção do meio ambiente e o combate ao racismo.
Mas para o professor da Universidade Stanford Douglas McAdam, que estuda movimentos sociais nos EUA desde a década de 1970, não há garantias de que a multidão que ocupou as ruas se manterá unida e conseguirá influenciar o novo governo. Segundo ele, a principal força do movimento - a rejeição unânime ao novo presidente - é também sua principal fraqueza. "Fora Trump, não há realmente algo que os una."
Autor de 18 livros sobre sociologia - vários voltados à influência de movimentos sociais na política - McAdam falou à BBC Brasil, 25-01-2017, sobre possíveis desdobramentos das manifestações no sábado.
Eis a entrevista.
A Marcha das Mulheres é comparável a outros grandes protestos da história americana, como as manifestações contra a Guerra do Vietnã e as marchas pelos direitos civis?
Considerando a natureza da eleição e a frustração da esquerda com o resultado, não fiquei surpreso que o público tenha sido tão grande. Obviamente há alguns paralelos em relação a grandes manifestações históricas, mas também algumas diferenças importantes. A Marcha em Washington de 1963 [onde Martin Luther King fez um famoso discurso contra o racismo] foi muito menor em número, mas nunca houve nada como ela no passado, então ela teve um impacto muito maior do que as marchas que vimos no sábado.
Com o tempo, esses protestos de massa ou marchas se tornaram mais comuns, quase institucionalizados nos EUA. Eles não têm a mesma capacidade de gerar tensão ou pressão como a Marcha em Washington ou algumas das grandes marchas da época da Guerra do Vietnã.
Por quê?
Historicamente, o poder de movimentos sociais deriva de sua capacidade de perturbar a normalidade. Eles ainda podem fazer isso, mas marchas como as que vimos no sábado não perturbam - elas servem mais para expressar valores e, nesse sentido, podem ser úteis para o movimento. Podem dar uma impressão de crescimento e ajudar a comprometer as pessoas com a luta no longo prazo. Mas, sozinhas, não têm poder de criar nenhuma pressão em particular.
Elas não poderão influenciar o governo Trump?
Eu duvido. Nos últimos dias, ele argumentou que sua posse tinha mais pessoas que as marchas. Se houve algum impacto, foi no sentido de endurecer as visões do governo em relação à oposição.
No sábado, muitos grupos diferentes - como ambientalistas, feministas, o movimento negro e ativistas pró-imigração - marcharam juntos. Esses grupos conseguirão se manter unidos?
No fim dos anos 1960 e começo dos 1970, houve uma aglutinação em torno da questão dos direitos civis e depois em torno da Guerra do Vietnã. A esquerda era uma coalizão ampla e pragmática de grupos diferentes. Mas isso não ocorreu desde aquela época.
Não sei se uma nova coalizão sólida e duradoura vai se formar. A eleição do Trump parece ter criado, pelo menos no curto prazo, uma solidariedade real entre grupos de esquerda, apesar de diferenças de classe, raça etc.Essa é a força e a fraqueza do movimento: a única coisa que eles realmente têm em comum é a rejeição a Trump. Fora Trump, não há necessariamente algo que os una.
Vimos isso no Egito. No começo da Primavera Árabe, havia uma raiva compartilhada contra [o então presidente} Mubarak, e muitas pessoas foram à Praça Tahir protestar. Mas quando Mubarak saiu, essa coalizão colapsou muito rapidamente.
Qual o poder dos movimentos sociais na política dos EUA hoje?
Eles são extremamente influentes na época de eleição, mais até do que eram no passado. O nosso sistema de primárias, que são eleições com baixo comparecimento, é perfeito para mobilizar grupos organizados. Candidatos tradicionais das bases partidárias enfrentam cada vez mais dificuldade para sobreviver às primárias. Trump gerou um movimento, [Bernie] Sanders gerou um movimento, Hillary [Clinton] não gerou. Jeb Bush tentou montar uma campanha tradicional baseada no partido e perdeu quase imediatamente.
Em 2014, você afirmou numa entrevista que os EUA estavam vivenciando a maior polarização desde a Reconstrução (período após a Guerra Civil Americana, no fim do século 19). O cenário se mantém?
Estamos ainda mais divididos agora. Há uns dez, doze anos atrás, havia uma grande divisão na classe política, formada por políticos eleitos e militantes partidários. Não era tão claro se o público geral estava tão dividido. Acho que hoje o país todo está dividido, provavelmente como nunca antes.
Em seu último livro, você argumenta que o movimento pelos direitos civis nos anos 1960 gerou uma forte reação contrária entre americanos brancos. Houve alguma reação parecida por trás da vitória de Trump?
No livro, eu argumento que a partir do movimento pelos direitos civis os republicanos, que antes eram mais liberais em relação a raça, se moveram bruscamente para a direita para cortejar os votos de eleitores brancos conservadores, especialmente no sul. Até então, o sul tinha sido solidamente democrata. E nos últimos 50 anos, os republicanos vêm se movendo mais e mais para a direita.
Hoje o partido se tornou basicamente um partido de conservadores raciais brancos. Donald Trump se aproveitou disso. Não que ele não tenha recebido votos de outros grupos, mas o apoio a ele veio sobretudo de eleitores brancos - muitos dos quais tinham visões muito conservadoras sobre assuntos raciais e imigração.
A vitória de Trump se alimentou da reação contrária ao movimento Black Lives Matter (vida negras importam, que combate a violência policial contra negros)?
Provavelmente houve alguma reação ao Black Lives Matter. Mas a maior reação parece ter sido à eleição de Barack Obama. Vimos um aumento significativo no que alguns chamam de racismo à antiga - um racismo mais explícito. É possível que o Black Lives Matter tenha contribuído com isso também.
No início do governo Obama, o movimento Tea Party se tornou muito influente, mas parece ter perdido força desde então. O que houve com o grupo?
Os movimentos não são como organizações, eles têm fluidez. Para onde foram os simpáticos ao Tea Party? Não sabemos, mas não acho que o movimento tenha desaparecido. Acho que muitos dos que simpatizam ou se identificavam com o Tea Party tiveram um papel na última eleição. Muitos provavelmente tornaram-se eleitores do Trump.
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Bandeira única de rejeição a Trump enfraquece movimentos nos EUA, diz pesquisador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU