19 Janeiro 2017
No novo cenário mundial provocado pela eleição de Donald Trump, é possível que a Cidade do Vaticano e seu soberano acabem na nova lista negra de "Estados considerados traiçoeiros".
O comentário é de Gianni Valente, publicado por Vatican Insider, 17-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Muito antes do dia 8 de novembro, a ideia de confronto iminente entre o líder político mais poderoso do mundo e o Bispo de Roma estimulava os reflexos condicionados do sistema midiático global. Foram elaboradas, sem muita fantasia, as rotas de colisão quase obrigatórias entre o novo comandante que ameaça deportar imigrantes e o Papa argentino das viagens simbólicas para Lampedusa e Lesbos, para o qual rejeitar no mar os barcos cheios de imigrantes desesperados representa um "ato de guerra".
Mas depois do triunfo do magnata novaiorquino, o cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano e chefe da diplomacia papal, começou a vasculhar o terreno por conjecturas fáceis, adentrando com palavras e tons conciliatórios nas terras desconhecidas propiciadas pelo novo momento de relacionamento entre os Estados Unidos e a Santa Sé. Parolin tomou conhecimento acerca "da vontade expressa pelo povo estadunidense através deste exercício democrático". Felicitou o novo presidente e desejou-lhe que seu governo possa "ser verdadeiramente fecundo", além de assegurar "a nossa oração para que o Senhor o ilumine e o suporte a serviço de sua pátria", mas também "a serviço do bem-estar e da paz no mundo". Parolin acrescentou que "hoje é necessário que todos trabalhem para mudar a situação mundial, que é uma situação de grave dilaceração, de conflito seríssimo".
No que diz respeito às exclamações de alegria que expressaram os maiores expoentes do Patriarcado de Moscou após a vitória de Trump, a sobriedade ponderada das palavras de Parolin é, por si só, eloquente. Ele torna a propor o respeito pelos poderes constituídos e pelas autoridades legítimas expressas tradicionalmente pela Igreja, que desde São Paulo rezam "por todos os homens, pelo rei e por todos os que estão no poder, para que possam viver na calma e tranquilidade, com toda a piedade e dignidade". Ressalta também que a Santa Sé e o Papa Francisco não têm patentes de legitimidade suficientes que possam conceder ou obter, nem interesses ou "agendas" em comum para reivindicar ou para chegar a acordos com o próximo inquilino da Casa Branca. Fica em aberto a possibilidade de que justamente a ausência de afinidades eletivas entre o atual sucessor de Pedro e o sucessor de Obama possa, paradoxalmente, libertar o magistério papal e a missão da Igreja de condicionamentos políticos e culturais, com os quais também a Santa Sé teve de lidar nas últimas décadas.
Os sinais de clara distância entre o magnata que agora é presidente e o Papa argentino inflaram-se em fevereiro do ano passado, durante a visita de Bergoglio ao México. Trump começou: a Fox TV pediu a sua opinião sobre a missa para os migrantes que o Papa viria a celebrar poucos dias depois, na fronteira entre a Ciudad Juárez e El Paso, e ele disse que o bispo de Roma era "uma pessoa muito política", que "não compreende os problemas do nosso país", nem o "perigo da nossa fronteira aberta com o México". Durante o voo de regresso a Roma, respondendo às frases que Trump havia acabado de dedicar-lhe, o Papa não usou meias palavras ao declarar que "uma pessoa que só pensa em levantar muros e não fazer pontes, onde quer que seja, não é um cristão". Trump respondeu nos meios de comunicação que "é vergonhoso um líder religioso questionar a fé de uma pessoa". E depois levantou o tom lançando a hipótese de que, em caso de um ataque jihadista contra o Vaticano, o Papa "desejaria e rezaria para que Donald Trump fosse presidente, porque isto, comigo no poder, não poderia acontecer".
Antes do bate-boca virtual de fevereiro do ano passado, o sucessor designado de Obama havia se expressado em tons mais delicados sobre o Papa argentino. Em 25 de dezembro de 2013, que foi o primeiro Natal do Pontificado bergogliano, ele "twittou" que "o novo Papa é um homem muito humilde, e isso provavelmente explica por que gosto tanto dele".
Independentemente dos jogos midiáticos e das posturas caricaturescas, não podem ser minimizados os pontos de claro contraste entre a agenda de Trump e as urgências pastorais e sociais mais importantes para o Papa Francisco e alguns de seus colaboradores. A continuação do muro que separa os Estados Unidos do México, prometido repetidamente durante a campanha eleitoral, é apenas um dos detalhes mais visíveis e simbólicos de desarmonia absoluta entre os slogans de Trump e os mantras do Papa argentino: o primeiro promete deportações de imigrantes em massa, enquanto o segundo fala ao Congresso dos Estados Unidos como "filho de imigrantes, sabendo que muitos de vocês também são descendentes de imigrantes". O primeiro vence cavalgando os impulsos islamofóbicos de parte do eleitorado norte-americano, enquanto o segundo chama de "irmãos" aos muçulmanos e rejeita pesada e insistentemente qualquer identificação sumária do Islã como uma religião violenta. O primeiro promete eliminar as "gun-free-zones" e permitir que as pessoas entrem com armas até mesmo nas igrejas, respeitando a Segunda Emenda que garante o direito dos cidadãos dos Estados Unidos de portarem armas. O outro, o Papa, indica que o tráfico de armas é a principal causa da "guerra em pequenas porções" que o mundo está experimentando. Trump exalta as virtudes da pena de morte, o Papa Francisco indica que a pena capital é "atualmente inadmissível" e também que a prisão perpétua é como uma "pena de morte escondida".
Se a nova administração norte-americana transforma em programa político a propaganda contra os imigrantes e os sinais eleitorais de fobia étnico-religiosa, a Santa Sé poderia aproveitar a ocasião para desmentir mitologias falaciosas da mídia e declinar das próprias instâncias em termos mais articulados, distanciando-se das suspeitas de cultivar idealismos ingênuos. A comparação com eventuais impulsos de identidade e de supremacia poderiam servir para neutralizar e desmascarar aqueles que, com descrições oportunas, por um lado ou por outro querem que as preocupações evangélicas do Papa Francisco se confundam com as retóricas da globalização neoliberal, inclusive em sua versão sobre Clinton. Para o Papa e a Santa Sé a preocupação com os imigrantes não representa um alinhamento com ideologias messiânicas sobre a livre circulação extralaboral, mas que tem como fonte a predileção evangélica pelos pobres. O olhar realista e crítico que levou Bergoglio ao modelo de desenvolvimento global é capaz de compreender os desconfortos e a raiva das camadas mais pobres da população, que nos Estados Unidos levaram Trump à vitória.
A Santa Sé tem muito interesse em ver se e como o novo presidente arquivará finalmente o intervencionismo sem fronteiras dos Estados Unidos, já ensaiado durante os anos de Obama, e que poderia ter vivido uma segunda temporada caso Hillary Clinton tivesse ganhado as eleições. A diplomacia do Vaticano nunca ofereceu, nem mesmo nos tempos do Papa Wojtyla, apoio aos Estados Unidos em suas aventuras solitárias de "exportadores armados" da democracia e guardas globais de defesa dos direitos humanos. "Uma só nação não pode julgar como deter um agressor injusto", disse o Papa Francisco, em agosto de 2014, ao jornalista norte-americano que lhe perguntou, durante o voo de volta da Coreia do Sul, se ele aprovava "os bombardeios norte-americanos" contra os jihadistas no Iraque para "evitar um genocídio" e "também defender os católicos".
A mudança de velocidade que é anunciada nas relações entre os Estados Unidos de Trump e a Rússia de Vladimir Putin tampouco criará apreensão nos Palácios do Vaticano. Desde que começou seu Pontificado, o Papa Francisco e sua diplomacia sempre se distanciaram, através de ações, de todos os círculos e dispositivos ocidentais destinados a isolar o líder do Kremlin. E Putin (que já visitou Bergoglio em duas ocasiões) demonstrou sinais eloquentes de que não considera o bispo de Roma uma espécie de capelão do Ocidente sob o comando do eixo Atlântico do Norte. Em abril de 2015, enquanto estava na Turquia, aumentando a sua fúria devido às expressões papais que reconheceram o genocídio armênio, o presidente russo disse: "Considero que o Papa tenha autoridade suficiente no mundo para encontrar uma maneira de obter compreensão com todos os povos da Terra, independentemente da sua filiação religiosa".
As novas e possíveis sintonias entre Trump e Putin serão medidas, antes de mais nada, em razão do Oriente Médio e das tensões entre a Rússia e as ex-repúblicas soviéticas da Europa oriental (Ucrânia e os países bálticos). E justamente a diminuição da tensão entre Moscou e Washington nestes dois cenários está em concordância com as esperanças de diplomacia vaticana. Em setembro de 2013, como parecia iminente a intervenção militar ocidental contra Damasco, o Papa Francisco enviou justamente para Vladimir Putin uma carta-apelo tendo em vista a reunião do G20 em São Petersburgo, na qual, através do Presidente russo, dirigiu-se aos poderosos do mundo pedindo-lhes que abandonassem "qualquer vã pretensão de uma solução militar" para a crise síria. Com esta intervenção, o Bispo de Roma também insistiu, implicitamente, que a Rússia era um agente global que não poderia ser marginalizado na busca de soluções para sanar conflitos e resolver crises regionais. Desde então, a intervenção militar russa para apoiar Assad mudou as configurações nas frentes de guerra sírias. Desde o Vaticano não vieram bênçãos nem para as incursões aéreas de Moscou (consagradas como "guerra santa" contra o jihadismo por parte de alguns expoentes do Patriarcado de Moscou), nem para as incursões conduzidas pela coalizão liderada pelos EUA no Iraque. O Cardeal Parolin deixou claro, em 13 de novembro do ano passado, que a única saída possível para o intrincado e sangrento conflito sírio é a da política. Agora, o possível acordo entre a Rússia e os Estados Unidos sobre o cenário da guerra síria poderia abrir caminhos concretos para uma solução negociada do conflito, arquivando definitivamente a pretensão de estabelecer como condição prévia a saída forçada de Assad. O Arcebispo Mario Zenari, núncio apostólico na Síria, permaneceu em Damasco durante os anos de guerra, enquanto as embaixadas ocidentais na capital síria iam fechando uma após a outra para demarcar sua posição contra o regime sírio. E o Papa Francisco, com uma decisão bastante significativa, nomeou-o cardeal no Consistório do dia 19 de novembro do ano passado. Também em relação aos conflitos russo-ucranianos e entre Moscou e os Estados Bálticos, o desempenho anunciado pelos Estados Unidos faz diminuir a influência de políticas de pressão ocidental sobre o Kremlin, exercidas pelas sanções econômicas antirrussas ordenadas pela União Europeia e que estão em vigor até janeiro deste ano de 2017. Em conflitos e tensões regionais, a Santa Sé não tomou partido pelas instâncias nacionalistas que caracterizam amplos setores da Igreja greco-católica Ucraniana. "O Papa Francisco e a Secretaria de Estado", como reconheceu o próprio Patriarca Kirill, "tomaram uma posição de autoridade em relação à situação na Ucrânia, evitando declarações unilaterais e invocando o fim da guerra fratricida".
As potenciais convergências entre a Santa Sé e a nova administração dos Estados Unidos não ofuscam, nem eliminam, a distância aparentemente irresolúvel entre a abordagem inclusiva e humanizada da Santa Sé contra as tensões étnicas, religiosas e sociais, e as palavras do candidato Trump contra os muçulmanos, sobre o acordo nuclear com o Irã e sobre a restauração das relações entre os EUA e Cuba. Mas essa aparente distância poderia representar a liberação definitiva da Santa Sé das hipotecas residuais que surgiram a partir de verdadeiras ou supostas "alianças" privilegiadas entre os Estados Unidos e o Vaticano.
Por este motivo, a Santa Sé, no futuro, poderia mover-se com mais liberdade e menos restrições na gestão de relações com os governos das potências mundiais e regionais. Por exemplo, ela poderia deixar-se aterrorizar um pouco menos pelas pressões e resistências geopolíticas implantadas por aparatos políticos e eclesiais "made in the USA", que apelam para as fórmulas improrrogáveis de liberdade religiosa e dos direitos humanos para se opor ao acordo (prefigurado como iminente ) entre a Santa Sé e a República Popular da China em relação a questões como a vida e a organização da Igreja local. Um passo fundamental na atormentada história do catolicismo chinês, que poderia alcançar finalmente uma normalização progressiva das relações entre Pequim e o Vaticano.
No âmbito próprio das interações entre as dinâmicas políticas e as dinâmicas eclesiais, parecem muito erradas as interpretações aproximativas que consideram o triunfo de Trump como o retorno da direita religiosa cristã que esteve em seu auge durante os mandatos presidenciais de George W. Bush. O novo presidente dos Estados Unidos dificilmente começará as reuniões no Salão Oval da Casa Branca, orando com os olhos fechados e apertando as mãos de seus colaboradores, como costumava fazer o cristão "nascido das cinzas", Bush Jr. As três esposas de Trump não lhe dão muita credibilidade como defensor do matrimônio indissolúvel. Suas opiniões sobre o aborto parecem inclusive contraditórias e as promessas de nomear juízes "pró-vida" na Corte Suprema são parte da estratégia eleitoral.
Após os prósperos anos de Bush Jr., a agenda das temáticas "eticamente sensíveis" praticamente desapareceu das questões-chave que alimentaram a campanha eleitoral. Trump, já presidente eleito, confirmou que não haverá nenhuma mudança nas leis sobre casamentos homossexuais das sentenças da Suprema Corte.
O triunfo de Trump não foi possível graças à agenda dos "moral issues", patrocinada como critério quase exclusivo das decisões políticas das correntes evangélicas e neoconservadoras do cristianismo estadunidense, formadas, evidentemente, com potenciais candidatos republicanos (de Marco Rubio a Ted Cruz) aos quais Trump esmagou nas eleições do Grand Old Party. Durante a campanha eleitoral, entre as siglas e os líderes mais visíveis da galáxias evangélicas, manifestaram-se divisões e confrontos dramáticos em relação à candidatura de Trump, definida por alguns deles como um "perdedor sexual". E a maioria deles deram-no por morto nas eleições. Na lista de dezenas de expoentes evangélicos que se manifestaram contra Trump, estavam Michael Cromartie, vice-presidente do Centro de Ética e Políticas Públicas (histórico "think tank" das correntes neoconservadoras e que sempre militaram na ala republicana), e Mark Tooley, presidente do Instituto de Religião e Democracia, entre outros.
A análise oferecida pelo Pew Research Center sobre a votação do dia 08 de novembro indicou que entre os eleitores protestantes e evangélicos 58% votaram em Trump, enquanto 39% escolheram Clinton. Entre os eleitores católicos a margem é mais apertada (52% para Trump e 46% para Clinton). Hillary Clinton teve 67% dos votos dos católicos hispânicos e Trump, 60% entre os "católicos brancos". Dados suficientes para confirmar que os cristãos norte-americanos contribuíram de forma decisiva para o triunfo de Trump, mas a filiação religiosa não era o principal critério para as suas decisões.
Os dados que a análise fornece acerca das votações desmascaram o patético "blefe" dos expoentes do neorrigorismo católico norte-americano, como o do Cardeal Raymons Burke, que tentaram apropriar-se da vitória de Trump. O vitalismo do magnata super-rico que soube interceptar o acúmulo de medos e instintos estendidos para a população americana parece um corpo estranho às teologias neoconservadoras e às linhas estratégicas da "ortodoxia afirmativa", a atitude que prevaleceu nos setores episcopais e eclesiais americanos consagrados durante os longos períodos dos Pontificados de Wojtyla e Ratzinger. Estas escolas de pensamento estavam apostando nas "guerras culturais" como uma ferramenta para testemunhar em termos críveis e culturalmente convincentes as verdades da concepção antropológica cristã no contexto plural e secularizado das sociedades avançadas. A perspectiva neoapologética da "ortodoxia afirmativa" reconhecia e aceitava a modernidade democrática e pluralista como um terreno de confronto e competição entre visões de mundo e concepções morais, de acordo com os mecanismos que se aplicam à economia de mercado. A partir deste aparato conceitual partiam as decisões e as configurações das intervenções públicas da Igreja, incluindo aquelas expressas no desconforto de grandes setores episcopais frente à administração de Obama e sua reforma da saúde, a partir das trincheiras de valores eticamente sensíveis. Agora, esses esforços para afirmar o valor universal da visão antropológica cristã através da mobilização cultural e política parecem fora de lugar em relação aos impulsos confusos e antissemitas que levaram Trump à Casa Branca. Se os bispos dos Estados Unidos tinham a pretensão de reivindicar patrocínios para tal mistura de ressentimentos, de desejos de vingança, de náuseas pela retórica liberal e de certos vislumbres de xenofobia, poderiam cair no perigo de buscar justificativas para-teológicas inclusive para a venda de armas online, para a islamofobia e os muros anti-imigrantes.
Ao redor do paradigma neoconservador, foi sendo coagulado nos últimos anos o único partido eclesial ramificado e influente, de origem norte-americana, mas capaz de abrir seções "nacionais" em todo o mundo, e constantemente interessado em ser ouvido "de dentro", mesmo no Vaticano . A sintonia entre esta corrente e setores do Partido Republicano dos Estados Unidos tem contribuído em diferentes casos para aumentar a sua capacidade de persuasão no Vaticano. A distância possível da presidência de Trump frente às políticas "magnatas" pode ser percebida com alívio pelo Papa Francisco e a Santa Sé. Justamente, esta distância do excêntrico Tycoon das dinâmicas de poder eclesiástico das últimas décadas, poderia eliminar os obstáculos políticos e geo-políticos à "conversão pastoral" sugerida a toda Igreja pelo Papa Francisco.
E também a Igreja estadunidense poderia tirar proveito da distância fatal entre o novo presidente, de sua posição desconfortável e irritante, para tratar de libertar-se da polarização ideológica que pesa quase patologicamente sobre o catolicismo norte-americano.
[1] En Bélgica, después de la segunda guerra mundial, más de 1000 colaboradores fueron ejecutados.
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Francisco e Donald: acordos (im)possíveis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU