10 Janeiro 2017
"O que se vê são os representantes do povo agindo contra o povo. O que se vê é um Judiciário que aceita a violação da Constituição e que condena à degradação e à morte centenas e milhares de presos. Prendem ladrões de salames e de galinhas, mas não prendem sonegadores e outros altos criminosos. O que se vê é uma oposição pálida, impotente, quando não conivente com isto que está aí. O que se vê é um país que aumenta a verba para a construção de presídios onde se formam os criminosos e reduz os recursos da saúde e da educação. É preciso até mesmo colocar em dúvida se temos capacidades de nos livrar desse atavismo social e cultural perverso e de construir uma perspectiva mais promissora para o futuro", escreve Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em artigo publicado por Jornal GGN, 09-01-2016.
Eis o artigo.
A degradação da democracia brasileira e a existência do governo Temer não são fruto acidental da conjuntura política, dos muitos erros do PT e do governo Dilma, da mera vontade moralizadora da Lava Jato, da parcialidade manipuladora de setores da grande mídia, da permanente disposição do assalto ao botim por parte do PMDB e dos partidos do centrão, do inconformismo golpista de Aécio Neves e do PSDB em face da derrota eleitoral. Sim, todos esses fatores contribuíram para degradar a democracia e viabilizar o governo Temer.
Mas ele é expressão de algo mais profundo, de um mal entranhado na genética política, social e moral da sociedade brasileira, de uma vocação criminosa, de uma vontade de morte. Algo que dormita sobre as cinzas de um passado escravocrata e criminoso e que emerge de tempos em tempos com toda a sua virulência trágica que degrada e degrada, sem sublimar, sem produzir uma força de transcendência desta realidade mutilada de sentido histórico e de força e virtude morais.
A qualidade da política e dos políticos brasileiros é da pior espécie. Os motivos são vários, mas alguns são cardeais: herança do patrimonialismo orientado para a privatização do poder público; prevalência dos interesses de grupos econômicos e do particularismo dos interesses partidários postos acima do bem comum e da perspectiva universalizante do Estado; ausência de uma cultura política elevada de debate e formulação de ideias e programas; ausência de uma cultura republicana; visão instrumentalista da moralidade pública e ausência de efetiva prática moral orientada para os fins éticos da coisa pública.
Os políticos não são possuidores e não cultuam as virtudes republicanas da prudência, da simplicidade, da frugalidade e da humildade. Ao assumirem posições de poder - seja num partido ou no Estado - se tornam pequenos tiranos. Tornam-se fascinados pelo brilho do poder e deixam as causas em segundo plano. Aliás, manejam as causas de forma instrumental para alimentar a vaidade. Terminam querendo o poder pelo poder e subordinam os fins aos meios.
Esse atavismo social, político e cultural criminoso, anti-social, anti-povo, com sua existência recorrente e com frequentes surtos eruptivos, aprisiona o país à desigualdade, à violência e a incultura. Mantém o Brasil dentre os países mais violentos do mundo, mais violento que as guerras e somente quando a erupção despadronizada da morte se evidencia a sociedade percebe a dimensão dos massacres. Mas no dia-a-dia são massacrados índios, jovens negros, mulheres, trabalhadores, camponeses num país que tem como pedras fundamentais o sangue e a violência, a escravidão prolongada, a injustiça e a desigualdade sistêmica. Esse atavismo se evidencia no apoio que teve o agente da chacina de Campinas, em manifestações nas redes sociais, no desejo de que novos massacres ocorram nos presídios, na desumanização tornada um elemento da opinião pública, nos campos de concentração que são as nossas cadeias, na transformação da política em atividade criminosa.
Esse atavismo criminoso distorce a moral mesmo daqueles que defendem um país mais justo. Na velha prática da subordinação dos fins aos meios e da transformação dos meios em fins, aceitam práticas criminosas contra a republica em nome de que todos os partidos as praticam, aceitam que campões nacionais sejam erguidos com o suor dos trabalhadores e com o assalto aos cofres públicos. O atavismo criminoso entorpeceu ou apodreceu até mesmo a consciência dos "bons" e dos "justos".
O país não precisa viver uma condenação eterna a este atavismo. Mas para libertar-se dele será preciso que surjam líderes com novas qualidades e novas virtudes, partidos que sejam capazes de amalgamar uma nova vontade coletiva, práticas efetivamente democráticas e republicanas. É preciso extrair as duras lições do passado, rever o nosso presente e repensar o futuro com novas visões e concepções. Muito do que foi e é a nossa política precisa receber a extrema unção para ser enterrado, sem esperança de salvação, pois não há o que ser salvo.
Mesmo que hoje o governo Temer seja rejeitado pela imensa maioria da população, o fato é que essa maioria o aceitou como uma solução de conveniência. Esse governo não tem apenas os requisitos de legitimidade para existir, mas não tem também os requisitos morais. O ex-Secretário Nacional da Juventude, Bruno Julio, é a expressão moral desse governo. Trata-se de um agressor de mulheres e um defensor de massacres. Isto não pode ser individualizado, mas é uma expressão do que esse governo representa.
Qual é o significado ou o papel de um Secretário Nacional de Juventude? Ele deve ser a manifestação do que se quer para o futuro, do que se exige dos novos líderes, do que se vislumbra para o amanhã, o exemplo para a juventude brasileira. Quem Temer escolheu como expressão simbólica desse futuro? Exatamente um agressor de mulheres, um defensor de massacres, um catecúmeno do mal, um noviço da degradação moral. Mais do que em qualquer outro lugar e pela sua relevância simbólica, a ocupação dessa Secretaria por tal tipo, expressa, de agressiva, o triunfo da razão criminosa.
Que governo é esse que manteve até ontem sob seu auspícios tal infame representação do futuro? Que governo é esse que mantém como seu articulador político principal um criminoso ambiental, um acusado de grilagem, um condenado em juízo que não paga a dívida da condenação? Que governo é esse cujo ministro da Justiça mente publicamente acerca de um pedido de ajuda do Estado de Rorâima para evitar a violência nas prisões?
E que governo é esse cujo presidente demora três dias para se manifestar acerca de um brutal massacre e ainda o classifica como acidente? Acidente, senhor Temer, é algo que acontece por acaso, por imprevisto, é algo fortuito. Ali não foi acidente, foi um massacre eruptivo, somado a massacres menores que vêm se prolongando ao longo dos anos. Alguém que se pretende condutor de uma nação não tem o direito de se comportar de forma leviana como se comportou Temer.
Neste país dilacerado, desigual, com milhões de desempregados, violento, corroído e corrompido, cada vez mais dominado pelo crime organizado, com a juventude da periferia sendo recrutada pelo narcotráfico a sociedade está à procura de um amálgama moral, de um conforto espiritual, de uma esperança material. Mas o que se encontra são consciências embotadas, líderes embotados, partidos degradados, palavras estéreis, discursos vazios. O que se vê é um governo que é a expressão do triunfo da razão criminosa, que dá vazão a violências e massacres, que investe com vigor contra a segurança social dos cidadãos e contra os seus direitos.
O que se vê são os representantes do povo agindo contra o povo. O que se vê é um Judiciário que aceita a violação da Constituição e que condena à degradação e à morte centenas e milhares de presos. Prendem ladrões de salames e de galinhas, mas não prendem sonegadores e outros altos criminosos. O que se vê é uma oposição pálida, impotente, quando não conivente com isto que está aí. O que se vê é um país que aumenta a verba para a construção de presídios onde se formam os criminosos e reduz os recursos da saúde e da educação. É preciso até mesmo colocar em dúvida se temos capacidades de nos livrar desse atavismo social e cultural perverso e de construir uma perspectiva mais promissora para o futuro.
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O governo Temer e o triunfo da razão criminosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU