Por: João Vitor Santos | 14 Dezembro 2016
A igreja está noutro lugar. E não é um lugar fixo e tampouco físico. Nos dias de hoje, o templo está em movimento e se articulando com uma bruma de processos interacionais, que pode ser chamado de processo de midiatização. Entre os efeitos desse movimento, está o deslocamento da vivência religiosa, o viver a religião. Hoje, não é mais somente diante do altar que o crente professa sua fé. Ele também é atravessado pela lógica dos usos – e todas as implicações desses usos – dos dispositivos tecnológicos ligados em rede. Olhar para esse objeto religioso midiatizado foi o exercício central do painel realizado na manhã de terça-feira, 13-12, dentro do I Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, que ocorre no campus São Leopoldo da Unisinos. Na mesa, os professores Stefan Bratosin, da Université Paul Valéry Montpellier; Luís Mauro Sá Martino, da Cásper Líbero; e Pedro Gilberto Gomes, da Unisinos. Em comum, realizam estudos sobre os efeitos dos processos de midiatização no campo da religião.
Martino abre sua fala com uma história que ilustra a mudança desses tempos. Pouco antes de iniciar um show de rock, no meio de um estádio de futebol, um amigo para um instante para fazer as orações da tarde. “Ele é judeu e disse que precisava encontrar outros para fazer a oração. Eu pensei: como é que vamos procurar judeus nessa multidão?”, recorda. No entanto, o amigo do professor saca um Iphone do bolso e abre um aplicativo para as leituras e orações. “É nesse mesmo aplicativo que ele encontra outros nas imediações e se conecta a eles, começando a rezar ali mesmo”. O exemplo de Martino é apenas um dos tantos que revelam outras formas de religiosidade e exercícios de viver a fé.
Martino: “São lógicas que se articulam e se sobrepõem, mas sem perder suas características essenciais" (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Para o professor, o importante nesse fenômeno é observar que não se trata apenas de um uso de dispositivo mídia pela religião. “São lógicas que se articulam e se sobrepõem, mas sem perder suas características essenciais. Por isso, para nós desse campo, é muito interessante observar esses fluxos, essas trocas que ocorrem”, analisa. Martino destaca, ainda, exemplo de redes sociais pensadas para o ambiente religioso. “É o caso do FaceGlória, que é uma rede social como Facebook, mas propõe a interação desde a perspectiva religiosa”. Acontece o mesmo com esses aplicativos de oração, confissão, mas também com produtos como programa de televisão e rádio. “Em muitos casos, se formos assistir, veremos que em nada se parecem com programas religiosos”, completa.
O professor Pedro Gilberto Gomes, da Unisinos, compactua com essa perspectiva de que a relação entre mídia e religião provoca deslocamento. É o que ele prefere chamar, ao invés de fluxos, de ambiência, provocado pelo processo de midiatização da religião. “Mas é importante observar como a Igreja Católica não muda seus rituais. Vê as mídias como via o púlpito, depois o equipamento de som, o rádio e assim por diante. É um instrumento para levar a palavra”, pontua. Entretanto, reconhece que o ritual litúrgico da missa, por exemplo, quando é transmitido pela televisão, vira um produto desse meio. “E já vi um caso de transmissão onde havia até diretor. Dirigia os câmeras para focar o padre, o leitor, o público. Isso mudava a interação entre eles. Assumiam um caráter performático em função da transmissão”, pondera.
Gomes:“que diferença há na vivência de uma família que assiste à missa em casa e a que vai à Igreja todos os domingos?" (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Para Gomes, o mais interessante é observar “que espiritualidade é essa que esse processo está criando?”. O relato de pessoas que assistem à missa pela televisão e inclusive colocam pão e água diante do aparelho para depois comungar é um exemplo disso. “São manifestações que acontecem indiferentemente do desejo de quem transmite a mensagem. Hoje, se pode ir até o Santuário de Aparecida e acender uma vela. Mas, se pode de casa, pelo computador, acessar o portal deles na Internet e fazer um tour virtual com mais detalhes do que se estivesse lá. E até acender uma vela virtual”, reflete.
O professor ainda insiste no questionamento: “que diferença há na vivência de uma família que assiste à missa em casa e a que vai à Igreja todos os domingos? É isso que precisamos nos questionar”. Ainda sem respostas claras, indica que uma das consequências é a vivência solitária da fé. “Mas ainda precisamos refletir muito mais sobre isso. É só a ponta do iceberg e precisamos descobrir e levar em conta tudo que está nas profundezas. Se não, bateremos lá e naufragaremos como o Titanic”.
Como Martino e Gomes, Stefan Bratosin está atendo às implicações das relações entre mídia e o campo da religião. Por outro caminho, ele chega à construção de que essa relação que gera toda uma bruma de relações muda a ética social de praticar a religião numa sociedade atravessada pelas perspectivas das mídias. Para ele, essa nuvem de contatos e relações pode ser chamada de medialização (numa ideia de meios e a religiosidade professa se relacionando e influenciando-se mutuamente).
Bratosin:"É uma espécie de processo de mutação ontológico a partir da experiência do neoprotestantismo" (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Para observar esses movimentos, olha para o que chama de pós-neoprotestantismo. “É uma espécie de processo de mutação ontológico a partir da experiência do neoprotestantismo”, aponta. Segundo o professor, é uma nova forma de exercer o cristianismo com uma doutrina que não é fixa nas instituições e organizações religiosas, sendo muito mais fluida e descolada das tradicionais regras e dogmas da institucionalização da religião. E arrisca uma hipótese: “de fato há uma mutação, a medialização no pós-protestantismo, uma nova evangelização”.
Bratosin ainda articula mais um conceito em suas pesquisas que provoca reflexões e, de certa forma, repercute nos demais professores. É o capital afetivo. A potência da fé professada nesse pós-neoprotestantismo medializado não está na institucionalização religiosa, logo, o poder mobilizador é centrado no afeto. “O compartilhamento nas redes deixa a pregação a critério do crente”, exemplifica o professor. É uma espécie de poder de afecção individual. A igreja, dentro dessa lógica, que mobiliza mais é aquela que mais afeto consegue gerar em cada um através de sua rede. Assim, estabelece como seu capital: o afeto, o capital afetivo.
Bratosin considera que “há uma inversão de sentido na gestão da ética da fé”. Ou seja, podemos compreender que o projeto social não está mais no centro, mas sim as emoções que mobilizam e assumem essa centralidade. Com isso, torna-se performático o pensamento religioso e a busca pela emoção, que por sua vez é o que agrega fiéis. Assim, acaba resvalando para uma lógica mercadológica. “É muito de pensamento religioso, mas também de pensamento econômico”, destaca, ao dar pistas como, de certa forma, a busca por esse capital afetivo começa a se estabelecer com relação mercadológica entre a religião e os fiéis e vice-versa.
Quando o professor Pedro Gilberto Gomes fala que uma das consequências desse deslocamento causado pelo processo de midiatização na religião é que a fé passa a ser vivida num ambiente mais individual, faz movimentos que podem ir na direção da problematização de Bratosin. “Um fiel que está em casa rezando e assistindo à missa diante da televisão vive sua fé, mas como vai mostrar seu engajamento?”, questiona. Segundo Gomes, muitas vezes faz isso através do dinheiro que oferece. É o caso das congregações católicas, por exemplo, que mantêm programas de TV de orações e transmissões de missa que pedem as contribuições. São recursos que mantêm aquele canal no ar e até mesmo os santuários ligados a ele. “Veja que só pode participar quem tem dinheiro”, provoca. Mas o professor vai mais fundo. “Cria-se outra igreja virtual e universal, mas é fiel dessa igreja só quem é capaz de consumir”, destaca ao indicar o surgimento do fiel pelo consumo. Solidário, mas pelo consumo. É uma das questões contidas no “seu iceberg”.
Assim, a lógica capitalista dentro das religiões midiatizadas se apresenta como um dos tantos pontos levantados pelos painelistas e que, para eles, precisam ser estudados.
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Midiatização e a vivência religiosa em deslocamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU