02 Dezembro 2016
Como defensores contra os inimigos da Igreja, os jesuítas tiveram e têm que se aproximar desses inimigos para entendê-los. Isso levanta um problema.
A análise é do sociólogo e teólogo austro-americano Peter Berger, professor emérito da Boston University. O artigo foi publicado na revista The American Interest, 16-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 14 de outubro de 2016, a Congregação Geral da Companhia de Jesus (também conhecidos como jesuítas), o principal órgão de decisão da ordem, reuniu-se na sua sede em Roma e elegeu Arturo Sosa Abascal, da Venezuela, como seu chefe. O seu título é Superior Geral – a associação militar não é acidental. O fundador da ordem, Inácio de Loyola, era um aristocrata da região basca da Espanha e um soldado profissional. Desde o início, a ordem teve um sabor marcial, e os seus membros eram chamados de “soldados do papa”. Ferido na batalha, Inácio de Loyola ficou por um tempo em uma caverna na cidade de Manresa. Ali, ele passou por uma profunda crise espiritual.
O historiador da Igreja alemão Karl Holl, no início do século XX, publicou um ensaio muito interessante em que comparou as crises espirituais de Inácio de Loyola e de Martinho Lutero. A vida deles se sobrepunha, e ambas as crises os levaram a experiências de escuridão e de dúvida. As resoluções foram muito diferentes. Lutero redescobriu a experiência do apóstolo Paulo da graça imerecida de Deus; Inácio de Loyola lançou-se em um ato de vontade e se dedicou ao serviço inquestionável à Igreja Romana.
Em 1534, Inácio de Loyola escreveu os Exercícios Espirituais, uma espécie de treinamento básico para esse serviço. Trata-se de um curso de quatro semanas que ainda é usado para iniciar recrutas na ordem, uma disciplina árdua da mente, assim como do corpo. A autenticidade da seguinte citação foi questionada, mas acho que representa a mentalidade de Inácio de Loyola quando ele emergiu de Manresa: “Sempre devemos estar preparados para acreditar que aquilo que eu vejo como branco é preto, se a Igreja assim o definir”. Em outras palavras: “Pare de indultar as suas dúvidas, se a trombeta o chama a entrar em batalha contra o inimigo”.
Pouco depois da publicação dos Exercícios, Loyola e outros seis homens se uniram e fizeram um voto de pobreza, castidade e obediência, aos quais, mais tarde, foi acrescentado um voto especial de obediência ao papa. A nova ordem recebeu o reconhecimento papal em 1540.
Certamente, nos primeiros anos, senão sempre mais tarde, os jesuítas viveram de acordo com o seu espírito militar (pode-se pensar no lema da Marinha dos EUA – “semper fidelis”) e a protomultinacional jesuíta logo se estendeu “dos Salões de Montezuma às costas de Trípoli”.
Acima de tudo, os jesuítas formaram a vanguarda da Contrarreforma, recapturando uma série de países que experimentavam a difusão do protestantismo – Polônia, Lituânia e, mais importante, Áustria, o coração do Império Habsburgo. Os jesuítas lutaram contra o protestantismo intelectualmente, pregaram ao povo em língua vernácula e também desenvolveram uma forma primitiva de mídia de massa – colocando a mensagem católica no teatro popular que tanto educava quanto entretinha (felizmente para a reputação dos jesuítas, eles não estavam diretamente envolvidos com a Inquisição, outra arma poderosa do contra-ataque católico – essa instituição era composta por dominicanos).
E aqui o paradoxo começou a aparecer: alguns jesuítas trabalharam como intelectuais instruídos e livres, outros como propagandistas necessariamente vulgarizados (muitas vezes atraídos pela perspectiva de grupos marginais propensos a criar desconforto nos círculos de elite – que também eram um eleitorado da ordem, muitas vezes em aliança com a hierarquia eclesiástica).
O paradoxo persiste hoje. Os jesuítas dirigem uma rede internacional de inúmeras universidades, faculdades e colégios secundários, cujos corpos docentes têm membros formados pelas melhores instituições seculares, mas também consideram como credenciais intelectuais as letras “SJ” que seguem os seus nomes e que vêm antes dos seus títulos acadêmicos.
No entanto, alguns deles dizem e fazem coisas que levantam as sobrancelhas em Roma. Agora mesmo é um momento interessante: os jesuítas têm um novo chefe, um latino-americano – e a Igreja também tem um novo chefe desde 2013, Francisco, também da América Latina e também jesuíta. Será interessante ver como o paradoxo jesuíta da disciplina militar e da independência intelectual vai se desenvolver nos próximos anos.
Os jesuítas também dirigem revistas intelectuais que são amplamente respeitadas – como a La Civiltà Cattolica na Itália e a America nos Estados Unidos –, mais ocasiões de tensão entre as duas características do DNA jesuíta (se você quiser, entre o “semper fidelis” e o “Aqui estou” [de Lutero]).
Além das suas conquistas como uma classe intelectual católica, os jesuítas estiveram envolvidos na política, servindo principalmente aos interesses da Igreja Católica e, tipicamente, perto da elite política relevante. Nos séculos XVII e XVIII, rumores diziam que os jesuítas se envolviam em conspirações secretas (o termo “jesuítico” era semanticamente similar a “maquiavélico”). Mas os jesuítas também foram ativos em atividades muito mais amplas, muitas vezes defendendo os interesses de grupos marginalizados ou oprimidos contra as elites governantes. Eles defendiam os índios nas Américas contra a exploração e a escravização por colonos espanhóis e portugueses. Os jesuítas organizaram cidades-Estados autogovernadas de índios (estranhamente chamadas de “reduções”), mais famosas no Paraguai. Os jesuítas se opunham ao comércio de escravos africanos.
Isso naturalmente aborreceu os governos espanhóis e portugueses, que se agitaram contra a ordem em Roma. Um grande número de governos católicos reprimiram as atividades jesuítas, e, em 1773, um decreto papal aboliu a ordem (ela só foi reinstituída em 1814). Alguns jesuítas simpatizaram com a Teologia da Libertação no século XX.
Mas, em vez de dar seguimento a essas preocupações práticas ou políticas, vou avançar um pouco mais nas preocupações intelectuais centrais da ordem.
Francisco Xavier (1506-1552), outro basco, foi um dos sete jovens que fizeram os primeiros votos com Inácio de Loyola. Ele se tornou conhecido como o “Apóstolo das Índias” pelas suas extensas atividades missionárias na Índia, no Sudeste Asiático e no Japão, morrendo, por fim, na China. Usando Goa (então uma colônia portuguesa, agora parte da Índia) como base, ele converteu um grande número de pessoas ao cristianismo. Ele viajou para o Tibete e entrou em diálogo com monges budistas. Ele não fez muitos convertidos na Índia, embora uma missão jesuítica alcançou a corte mongol na Índia em 1580 (alguns anos depois da morte de Francisco Xavier).
Ele teve muito mais sucesso naquela que agora é a Indonésia, e especialmente no Japão (onde, no século seguinte, o cristianismo foi sanguinariamente extirpado pelos xoguns).
Eu acho que o missionário jesuíta mais interessante na Ásia foi Matteo Ricci (1552-1610), um italiano que se instalou em Pequim e deslumbrou a corte imperial com o seu conhecimento de astronomia. Ele mergulhou na língua e na cultura chinesas, e traduziu textos religiosos de e para o chinês. Ele se vestia como um erudito confucionista e vivia como um. Ele foi além dessa “inculturação” (como a missiologia católica a chama agora) e sugeria a seus convertidos chineses que eles podiam se engajar no culto dos ancestrais – ele disse que, no fim das contas, era apenas uma forma de seguir o mandamento bíblico de honrar os pais. Roma discordou. Em 1773, a posição de Ricci sobre os chamados “ritos chineses” foi condenada; a condenação só foi revogada em 1814 (os moinhos de Roma giram lentamente).
A participação intelectual de alto nível dos jesuítas nos tempos mais recentes continuou. Dois jesuítas foram muito importantes no planejamento e na condução do Concílio Vaticano II no início da década de 1960: John Courtney Murray (1904-1967) dos Estados Unidos e Henri de Lubac (1896-1991) da França (provavelmente significativos como representantes dos dois países-mãe mais importantes da democracia moderna).
Ambos foram fundamentais na elaboração da Declaração sobre a Liberdade Religiosa, que modificou profundamente o papel político da Igreja Católica. De Lubac teve problemas por algum tempo com a Congregação para a Doutrina da Fé (conhecida em tempos anteriores como o Santo Ofício da Inquisição). Ele havia expressado opiniões suspeitas sobre a doutrina católica sobre a contracepção e o celibato clerical, mas foi reabilitado depois do Concílio (eu estive em uma conferência no Vaticano em 1969. Na conclusão, todos os participantes, incluindo De Lubac, foram recebidos em uma audiência pelo Papa Paulo VI Quando o papa foi ao encontro de Lubac, este se ajoelhou e beijou o anel do papa. O papa o levantou e o abraçou. Foi um momento emocionante. Eu mesmo me emocionei).
Outros jesuítas intelectuais causaram problemas à Igreja pela sua independência de pensamento. Um amigo de Lubac foi Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), um cientista físico que produziu uma síntese bastante fabulosa da teoria da evolução e da escatologia católica (ele também chamou a atenção da Congregação para a Doutrina da Fé).
Joseph Fichter (1909-1994) foi um sociólogo formado em Harvard. Em 1951, ele publicou um livro com o intrigante título “Southern Parish, Volume I” [Paróquia do Sul]. Fichter mostrou que muitos membros de uma paróquia católica de Nova Orleans não apenas não acreditavam em várias doutrinas católicas, mas também não sabiam o que eram. Um segundo volume nunca apareceu, porque a permissão para publicá-lo (um necessário “imprimatur” do bispo) não foi dada. Isso foi antes do Vaticano II, e os resultados foram considerados como muito perturbadores para os fiéis.
Um incidente muito curioso envolvendo um intelectual jesuíta de mentalidade independente foi o de Leonard Feeney (1897-1978), que estivera no corpo docente do Boston College e, depois, montou um centro na Praça Harvard, voltado a converter a intelligentsia local à marca Feeney do catolicismo ultraconservador. Além de alguns comentários antissemitas ofensivos, ele divulgou uma interpretação muito literal da antiga máxima “Não há salvação fora da Igreja” (extra ecclesiam nulla salus), que, de acordo com Feeney, significava que ninguém que não fosse batizado na Igreja Católica podia ter qualquer esperança de chegar ao céu. Os superiores jesuítas de Feeney disseram-lhe que essa não era a doutrina católica e que ele deveria deixar de divulgar essa heresia. Ele resistiu a todas essas súplicas. Por fim, em 1953, ele foi excomungado. Eu não sei como se diz em latim “ser pego na própria armadilha” [hoist with his own petard], mas é claro que esse era o paradoxo final: aquele que barraria milhões de pessoas nos portões do céu, no fim, foi ele mesmo barrado!
O paradoxo jesuíta é que um grupo originalmente dedicado a uma feroz defesa contra qualquer inimigo jurado da Igreja tem que estar bem informado sobre o que diz respeito a esses inimigos. Você tem que chegar muito perto. O que geralmente acontece, então, é aquilo que eu chamo de “contaminação cognitiva” – se você continua falando com as pessoas, você começa a ver o ponto de vista delas. Isso acontece muito: o inspetor da polícia começa a simpatizar com o criminoso. O refém se identifica com o seu captor (a chamada “síndrome de Estocolmo”). O antropólogo “vira nativo”. O espião se torna um agente duplo.
Há outra máxima (provavelmente não católica) que eu não posso traduzir para o latim: é melhor que aquele que sorve com o diabo tenha uma colher longa.
Em conclusão, vou mencionar dois incidentes da minha própria experiência, ambas envolvendo a magnanimidade jesuíta. Nos anos 1970, eu participei de um encontro ecumênico em que o famoso teólogo Avery Dulles, SJ, rezou a missa. Antes de começar, ele disse que todos seriam bem-vindos ao altar. Até onde eu sei, isso era muito incomum na época. Também nos anos 1970, eu conheci uma senhora italiana de classe alta que se queixava da estreiteza provincial do clero estadunidense. Eu tinha sido informado que a senhora tinha (digamos) uma visão muito aberta de fidelidade conjugal. Ela nunca tivera problemas sérios na confissão.
Ela estava visitando Nova York e foi se confessar na Catedral de São Patrício. De acordo com o que ela disse, ela foi recebida por um padre irlandês “gordo e grosseiro”, que a repreendeu pelo seu estilo de vida, duvidou (corretamente, eu suponho) da sinceridade do seu arrependimento e se recusou a lhe dar a absolvição, a menos que ela voltasse para outra sessão. Um amigo recomendou um jesuíta italiano que vivia em Nova York, que era muito aberto de mente e “se movia bem nos melhores círculos”. Ela foi ao seu encontro para a confissão. É claro que ele não aprovou o seu estilo de vida, mas aceitou a sua expressão de pesar, impôs-lhe uma penitência razoável e deu-lhe a absolvição. Ao sair, ela agradeceu, mas depois lhe contou a sua experiência na catedral. Ele comentou: “Ah, a São Patrício... O que eles sabem sobre o amor?!”.
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O paradoxo jesuíta. Artigo de Peter Berger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU