29 Novembro 2016
Em entrevista especial concedida à Comunicação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o engenheiro agrônomo e doutor em Engenharia de Produção Leonardo Melgarejo fala sobre as mudanças na legislação voltadas ao campo que estão sendo feitas no Brasil, a permissão da importação de milho transgênico, o avanço do agronegócio e a sua legitimação por meio do legislativo sob a justificativa de alimentar o mundo.
Melgarejo é integrante do Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade (GEA), presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) e coordena o Grupo de Trabalho sobre Agrotóxicos e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Foi membro da CTNBio de 2008 a 2014, e hoje é professor colaborador do Mestrado Profissional em Agroecossistemas, da Universidade Federal de Santa Catarina.
A entrevista foi publicada por Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA, 22-11-2016.
Eis a entrevista.
Neste cenário de golpe e com o processo de retirar direitos, o que está em risco de mudanças de legislação que interferem na Soberania, que interferem no processo de produção da Agricultura Familiar e Camponesa? O que está por trás dessas mudanças e o que vem em conjunto com essas mudanças que está sendo colocado em votação na Câmara e no Senado?
Leonardo Melgarejo | Foto: João Vitor Santos/IHU
O Movimento dos Pequenos Agricultores é uma das organizações mais importantes de sustentação da Democracia no país, hoje, especialmente com as mudanças que estão acontecendo no Meio Rural e que de fato ameaçam todos nós. O golpe é muito amplo, tem muitas caras, é multifacetado, porque envolve ações no Executivo, como no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), no desmonte de programas importantes para o desenvolvimento da agricultura Familiar, nos programas de Desenvolvimento Social que ajudam em várias áreas do desenvolvimento do país e nos Programas de Estruturação da Produção dos agricultores pequenos, dos camponeses, dos povos e comunidades tradicionais. Mas ele também é um golpe que entra no Legislativo na medida em que propõe alterações de leis que estão em vigor e que são importantes para nós e, além disso, propõe a introdução de novas lei que ameaçam todos esses processos de construção das organizações sociais, como no caso do MPA.
Algumas preocupações mais importantes dizem respeito à Lei dos Agrotóxicos; esse Projeto de Lei (PL) que vem do Rio Grande do Sul, do deputado Covatti Filho, foi agora agregado a um Projeto de Lei do Ministro Maggi quando ainda era Senador e, de fato, as modificações são brutais. Para começar ele retira a palavra Agrotóxicos de cena, então esse veneno que vem causando muitos danos para muita gente no Brasil todo, passaria a ser chamado de Defensivos Fitossanitários. Isso criou uma confusão, porque nos Programas de Agroecologia e de Produção Orgânica a expressão Defensivo Fitossanitário é usada para classificar coisas que são utilizadas na produção limpa, como, por exemplo: urina de vaca, calda de urtiga, calda de fumo, calda bordalesa. Esses são defensivos fitossanitários, não são agrotóxicos, porque eles não causam esse tipo de intoxicação, doenças e problemas para saúde que os venenos agrícolas causam. E, nesse Projeto de Lei, fazem outras alterações também.
Os profissionais da Área de Saúde no Brasil são profissionais do Ministério da Saúde, pessoas que têm uma carreira relacionada à avaliação de danos à saúde, que fazem concurso público e estudam e que acompanham as movimentações na escala internacional. Da mesma maneira, existem os profissionais do Ministério do Meio Ambiente, que são concursados, que estudam só este tema e que fazem as análises de Impacto Ambiental. Hoje, os agrotóxicos, para serem aprovados no Brasil, têm que ser analisados pelos profissionais da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pelos profissionais do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais). Também são analisados pelos profissionais do Ministério da Agricultura sob o ponto de vista da conveniência e da oportunidade, se funciona ou não. Mas a saúde da população e a saúde do ambiente são analisadas pelos profissionais do Ministério da Saúde e do Ministério do Meio Ambiente, da ANVISA e do IBAMA. E esse Projeto de Lei retira a responsabilidade destes profissionais e atribui a um grupo criado por indicação do Ministério da Agricultura a responsabilidade de analisar esses produtos, de dizer se podem ser usados ou não no Brasil.
Para a gente ter um exemplo claro, em 2013 houve uma grande infestação de uma lagarta que não morria com o milho transgênico e essa lagarta criou uma situação de perda na lavoura principalmente de Estambaí e depois no resto do Brasil. Esse fato fez o Ministério da Agricultura decretar um Estado de Emergência Fitossanitária, o que autorizou a importação e o uso de um veneno tão perigoso que até então era proibido no Brasil - o Benzotamectina. O veneno não era utilizado no Brasil porque não tinha sido autorizado e o Ministério da Agricultura, para salvar a safra, decretou que poderia ser usado. Então, essa mesma leitura de que uma safra é mais importante que a saúde de toda a população, vai valer, nós imaginamos, numa comissão criada pelo Ministério da Agricultura que elimina as avaliações da ANVISA e do IBAMA. Aquele produto químico havia sido proibido pela ANVISA, então neste Projeto de Lei a interpretação é que algumas instâncias públicas estão dificultando muito a tomada de decisão do interesse do Agronegócio, leva muito tempo para aprovação desses produtos. E para superar isso que eles entendem como dificuldade, se retira dos profissionais da área a competência de analisar, se cria uma Comissão Específica indicada por um único Ministério, que já demonstrou seu interesse predominante, e se alteram as condições de risco para toda a população brasileira.
Imagine só, o que é um herbicida? É um produto agressivo, é um mata-mato, então ele não defende nada de ninguém, não é um Defensivo Fitossanitário, é um herbicida agressivo. Então, se ele não é Defensivo Fitossanitário, quem vai avaliá-lo? Ele deixou de ser um Agrotóxico e passou a ser um produto químico que não tem uma classificação adequada. As análises de produtos como 2,4D ficam no limbo, e nós não sabemos que destino terão. Esse é um Projeto de Lei importante, que ameaça e que ganha corpo neste momento de golpe.
O outro Projeto de Lei é alteração nas Leis de Cultivares. Essa alteração diz o seguinte: hoje nós sabemos que os produtos transgênicos são de propriedade das empresas que inseriam nas plantas, como milho e soja, um gene que é patenteado pela entrada, que dá para a empresa o direito de cobrar o uso daquela tecnologia, onde a sua inserção genética está comprovada. A interpretação do deputado Dilceu Sperafico, que propôs a alteração na Lei de Cultivares, é a seguinte: os pesquisadores não são estimulados a criar novas variedades mais produtivas, mais interessantes, se elas não são transgênicas, porque eles não têm direito de cobrar royalties sobre o uso dessas variedades.
Na nova Lei de Cultivares, as novas cultivares que tiverem características inovadoras e que forem protegidas pela lei vão obrigar o produtor a pagar para usar, a pagar de novo quando colher e quiser replantar, a pagar se quiser vender e se isso não for cumprido - essas normas de pagar royalty -, eles estarão cometendo um crime. E, como essas variedades de cultivares podem ser qualquer variedade não transgênica, em breve, essas características, que dão o direito de cobrança pelo uso, vão estar presentes na batata-doce, na mandioca, na batata inglesa, em todos os produtos que nós utilizamos e que poderão ser desenvolvidos por melhorias. Quando se fala em ser desenvolvidas por melhorias, é possível pensar que pode ser um agrônomo, um técnico agrícola que está trabalhando para qualificar o produto, mas não é assim: são as grandes empresas transnacionais que têm esses profissionais e que vão ser as donas das patentes dessas cultivares. Nós vamos ter as Patentes dos produtos transgênicos cobrados no Mercado de Lei que trata de Patentes, de Direito Autorais, e vamos ter as cultivares cobradas com base na Lei de Cultivares.
Se essa legislação for aprovada, a saída seria o agricultor não usar essas cultivares que são protegidas por Lei. A saída seria estimular os Banco de Sementes, como o MPA vem fazendo. Nós precisamos de mais Bancos de Sementes difundidos em todo Brasil - quando eu falo em Banco de Sementes não é só semente com milho e feijão, mas também de tubérculos, de manivas; são produtos que são colhidos e selecionados pelo agricultor, são acompanhados em termos da qualidade que oferecem, na medida em que o clima está mudando, porque essa mudança do clima faz com que a plantas se transformem. Então essa seleção em cada lugar, da variedade crioula, da cultivar crioula, da maniva, é envolvida pelo agricultor no seu ambiente e incorpora essas mudanças do clima. Por isso que o processo de coevolução é importante, pois é uma espécie de pesquisa científica de alto valor para humanidade, que só pode ser desenvolvida por centenas de milhares e agricultores com seus Bancos de Sementes. Isso está ameaçado com essas mudanças da legislação, e nós imaginamos que nesse processo de transformação, que vem ocorrendo na Câmara dos Deputados, é possível que, em breve, se aprove a Lei das Plantas com Restrição Reprodutiva, chamadas de GURTI, na sigla em inglês, mas nós as conhecemos melhor como Terminator. Em breve as plantas que não vão mais gerar grãos, plantas não férteis, vão ser aprovadas com base em outro discurso, que é o de que nós temos que combater a fome trabalhando com plantas biofortificadas.
Essas Plantas Biofortificadas teriam um teor maior de Ferro, Zinco ou Fósforo, e em pessoas que tenham alguma deficiência, o excesso deles poderia provocar danos à saúde. Por isso as empresas dizem que essas plantas modificadas devem ter essa restrição produtiva, de tal maneira que não exista o risco de elas serem consumidas inadvertidamente. Só quem comprar essa semente poderia cultivar e utilizar. Com isso se pretende aprovar essas Tecnologias de Restrição Reprodutiva, o que também é uma ameaça muito grande porque, se essa característica for passada para um Banco de Sementes de um camponês, esse Banco de Sementes perde sua utilidade, a sua validade, a sua utilidade, a sua condição reprodutiva.
Sobre a importação do milho transgênico que foi aprovado pela CTNBio, é um processo de ignorância? Até onde tem sentido, ou na verdade não tem sentido?
Para o milho transgênico, assim como qualquer outro produto transgênico, entrar no Brasil, só há dois caminhos. Ele tem que entrar em pequenas quantidades para que se façam os estudos, e esses estudos são importantes porque o clima e o ambiente afetam o potencial genético. As plantas expressam suas características interpretando as condições do ambiente; é fácil a gente entender que é difícil produzir maçã na Campanha Gaúcha, mas é fácil produzir em Vacaria, porque o clima de Vacaria é melhor interpretado pelo potencial genético daquelas mudas de maçã. Percebemos isso com mais clareza quando pensamos em produzir Castanha do Pará no Rio Grande do Sul, porque o clima não permite, embora a gente traga a melhor muda lá de cima. Então, se a muda, a planta, se a condição biológica dependem do ambiente para se expressar, é evidente que um milho que faça sucesso nos Estados Unidos tem que ser testado aqui no Rio Grande do Sul, nas nossas condições biológicas. Por isso, as variedades transgênicas que são desenvolvidas, por exemplo, para se vender nos Estados Unidos, quando entram no Brasil, inicialmente entram em pequenas quantidades, em saquinhos com dupla proteção que são transportados em carros especiais até as Unidades de Pesquisa, onde tem uma equipe especializada para cuidar delas. Se importar um quilo de semente e usar 900 gramas, é preciso comprovar que queimaram as outras 100 gramas. Há todo um controle para uma entrada de produtos transgênicos para serem avaliados nas condições do ambiente brasileiro, para depois gerar informações sobre as suas reações aqui e poderem ser transformados em produto comercial, aprovado pela CTNBio. Depois de ter seu cultivo autorizado no Brasil - essas autorizações dependem desses testes de Campo -, esse produto pode ser produzido em larga escala e também pode ser importado para ser vendido aqui no país.
Este ano, o Brasil, num determinado momento, se viu diante do anúncio do desejo de importação de um milhão de toneladas de milho transgênico dos Estados Unidos que não tinha sido testado no Brasil ainda, não havia sido submetido às nossas condições ambientais. O pedido de importação foi feito com o seguinte argumento: não vai ser plantado no Brasil, será destruído e transformado em ração, portanto não precisa ser testado aqui. A importação foi aprovada com esse argumento - mas percebam só como a situação é paradoxal. Havia duas variedades desse milho que nunca foram cultivadas no Brasil, uma delas é de um milho produzido modificado geneticamente para produzir etanol, para produzir álcool, que nos Estados Unidos não é direcionada à cadeia de alimentos. O processo da empresa dizia que existiam cuidados especiais para que esse produto não fosse destinado à cadeia de alimentos, pois era destinado a caldeiras, para ser transformado em álcool, e no Brasil foi importado da ração. Em relação ao outro milho, era desenvolvido para tolerância à seca nos Estados Unidos. A empresa argumentava que esse produto poderia oferecer um rendimento de até 6% de vantagem em relação ao milho tradicional, se a seca não fosse muito forte e se ocorresse numa determinada fase do ciclo já prevista. Eles dizem que a única vantagem desse milho é não sofrer muito com determinada seca, e se entrar no Brasil nenhum agricultor vai querer plantá-lo.
Perceba-se: milhões de dólares investidos numa tecnologia, que, aparentemente, não funciona bem nos Estados Unidos, mas que é vendida como se fosse tolerante à seca, entra no Brasil. E a outra, que é cultivada para produzir álcool, entra no Brasil para comércio de alimentos.
Nos dois casos, o risco que nós imaginamos é de um caminhão saindo do porto carregado de milho, vão caindo grãos na estrada, esse grão germina, essa germinação gera um pólen, esse grão de pólen contamina outras variedades de milho que nós não sabemos que aplicação vai ter porque nós nunca testamos esse tipo de transgênico no Brasil. É errado e perigoso, ainda por cima, porque um dos pareceres da doutora Karen Friedrich representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio, aponta esses problemas de que o gráfico que está errado, que essas informações não são consistentes, faltam estudos de campo, faltam os estudos com a saúde, os estudos de Sanidade Animal. Mesmo com todos esses argumentos ela teve seu voto, o seu parecer negado, inclusive, com voto do próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O representante titular do MDA, nomeado recentemente, no lugar do professor Carlos Paulo Caggiano, votou contra o parecer por escrito apresentado pelo próprio MDA, em uma atitude que nos parece incompreensível na medida em que os dois representam o mesmo Ministério e o primeiro parecerista, Karen, tinha estudado o processo e apresentou um documento substanciado por escrito. O segundo representante não tinha sequer lido o processo, votou contra um documento escrito, supostamente, atendendo a pressões ou à opinião dos demais membros da CTNBio que votaram pela aprovação do milho, desconsiderando aquele argumento que, nós imaginamos, é um argumento muito forte, de interesse da Agricultura Familiar, da Saúde da População e que cria esse paradoxo novo. Pela primeira vez, tivemos uma possibilidade de entrada no Brasil de uma quantidade enorme de milho que nunca foi estudado no país e que possivelmente vai ser cultivado de uma maneira inadequada, inconveniente. Acreditamos que isso é muito perigoso, que essa situação permite dúvidas a respeito da necessidade da CTNBio, dado que este é um caso paradoxal.
Esses elementos que você traz nos coloca num cenário bem complexo. Com todas essas contradições e esse avanço desenfreado do Agronegócio, o Brasil pode voltar a fazer parte do Mapa da Fome da ONU?
O grande salto que Brasil deu neste crescimento de qualidade de vida da população, que permitiu a saída do país do Mapa da Fome, se deve a iniciativas no campo do Saneamento Básico, no campo do empoderamento da Agricultura Familiar e Camponesa e no campo do fortalecimento do poder de decisão das famílias. O Bolsa Família, mesmo com recursos insignificantes sob o ponto de vista do que é transferido, gerou possibilidades de relações entre as linhas de produção. Programas como os Quintais Domésticos, Duas Águas e Um Quintal, Cisternas e todos esses programas destinados ao fortalecimento dos pequenos no campo e nas cidades, transformaram essa condição de um país que estava imerso no Mapa da Fome, para o que passamos a ser, um país fora do Mapa da Fome. Com a extinção do PAA, com a restrição de recursos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que também é um programa de compra dos produtos de agricultores familiares, com essas dificuldades de estímulo aos Quintais Domésticos, à Extensão Rural, à Assistência Técnica, ao fortalecimento das práticas de Agroecologia, nós imaginamos que esse retrocesso é uma realidade que se avizinha.
Perceba que a fome, no país, é um problema essencialmente rural; embora vejamos essa miséria na cidade, era um problema eminentemente rural e não urbano, e havia sido superado com os programas de Agricultura Familiar citados e com a Aposentadoria Rural. O cancelamento desses programas é uma ameaça de fato, e há uma denúncia muito consubstanciada que o próprio MPA fez em âmbito internacional, lançando essa preocupação que nos ameaça e que decorre do descaso com Políticas que foram bem-sucedidas no campo da superação da fome.
A discussão que vem sendo apresentada como alternativa a isso é o envolvimento do que se chama de Plantas Biofortificadas, que são enriquecidas com nutrientes como Ferro e Zinco. O discurso é de que essas plantas vão ser melhores que as outras e que resolverão os problemas da fome oculta centralizadas num nutriente, num mineral. Nós imaginamos que essa é uma maneira enganosa de tratar o problema, que o Mapa da Fome se supera com orientações como as que vinham sendo conduzidas no Brasil e que são preconizadas pelo Conselho de Segurança Nacional Alimentar e Nutricional - CONSEA, que dizem que nós devemos ter uma alimentação diversificada e que isso decorre do fortalecimento do papel da mulher na família, desses Quintais Domésticos e do estabelecimento de canais curtos de comercialização, envolvendo pequenas feiras, aquisições do Governo Federal, através do PAA para vários consumidores e através do PNAE para merenda escolar.
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