24 Novembro 2016
“Ainda que os católicos estadunidenses que votaram nos republicanos tendem a alegar argumentos contra o aborto, é interessante que este Papa parece falar menos de aborto e, sim, mais de pobreza”, afirma Heidi Schlumpf, colunista do National Catholic Reporter, opinando que “o Papa está preocupado com a falta de misericórdia para com os marginalizados do mundo, não só nos Estado Unidos”, em artigo publicado por CNN, 23-11-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A decisão do Papa Francisco de dar aos padres o poder de perdoar o aborto na confissão não terá virtualmente efeito algum para os católicos estadunidenses. No entanto, dado que os católicos votaram no Partido Republicano nas recentes eleições presidenciais, este gesto de um papa que instou por misericórdia para com os refugiados e os pobres poderia ser interpretado como se dissesse que o aborto, ainda que continue sendo um problema muito grave, não é o único assunto que deveria interessar aos católicos.
Este movimento estratégico papal não muda a doutrina acerca do caráter pecaminoso do aborto. Só altera a prática pastoral em algumas partes do mundo sobre o modo como pode ser perdoado. Inicialmente, prevista para ser aplicada durante o ano especial do Jubileu da Misericórdia, que terminou no domingo, a prática foi estendida de forma indefinida.
A verdade é que quase todos os sacerdotes estadunidenses e canadenses já tinham autoridade para retirar a excomunhão causada pelo aborto, segundo um porta-voz da Conferência Episcopal Estadunidense, que esclareceu essa política quando o Papa a anunciou pela primeira vez, em setembro.
Os sacerdotes estarão em capacidade de “absolver aqueles que cometeram o pecado do aborto”, assinala o Pontífice em uma carta publicada pelo Vaticano, na segunda-feira, e denominada Misericordia et Misera. “A medida que tomei quanto a este assunto, limitada à duração do Extraordinário Ano Santo, foi estendida, sem prejuízo do contrário”.
Sendo conscientes da ênfase do Papa em que a Igreja é uma instituição de misericórdia, esta ampliação aos sacerdotes, em nível mundial, pode certamente afetar a capacidade de alguns católicos de receber os sacramentos e se reconciliar com a Igreja. Também pode ocorrer que a Igreja se veja mais aberta e tolerante, especialmente em culturas onde enfrenta a “concorrência” de outros credos que podem ser percebidos como mais acolhedores.
Esta decisão também pode se relacionar com a possibilidade de divorciados e casados em segunda união se reconciliar com a Igreja, através do “foro interno” em confissão, em contraposição ao longo processo de anulação.
Mas, penso se o anúncio (mais relacionado ao recente fim do ano especial do Jubileu da Misericórdia do que com as eleições presidenciais estadunidenses) é combinado com outros pronunciamentos do Pontífice, se pode ser lido como a reflexão do hierarca acerca da decisão de alguns católicos de votar em Donald Trump.
Ainda que os católicos estadunidenses que votaram nos republicanos tendem a alegar argumentos contra o aborto, é interessante que este Papa parece falar menos de aborto e, sim, mais de pobreza.
Antes das eleições, em uma viagem de avião no marco de uma visita ao México, em fevereiro, o Papa respondeu uma pergunta sobre a alegação de Trump segundo a qual sua decisão de celebrar uma missa em Ciudad Juárez, perto da fronteira, tornava-o “um peão do Estado mexicano”, dizendo que “uma pessoa que pensa somente em construir muros, seja onde for, e não em construir pontes, não é cristã. Isso não está no Evangelho”.
Contudo, o Papa claramente se desviou do debate eleitoral estadunidense, afirmando que deixaria o julgamento e a decisão “ao povo”.
Durante a campanha, assim como foi durante seu pontificado, o Papa Francisco enfatizou a necessidade de agir diante das necessidades dos pobres e refugiados. A apenas três dias das eleições estadunidenses, o Pontífice instou aos ativistas sociais a não se render à política do medo. Na véspera da eleição, disse a um jornalista que “não emito juízos sobre pessoas ou homens da política”, mas o que “quero entender é o tipo de sofrimento que seu comportamento causa aos pobres e excluídos”.
Na semana passada, depois que as pesquisas de boca de urna indicaram que 52% dos católicos escolheram Trump sobre 45% que favoreceram Hillary Clinton, o Papa pareceu advertir sobre a ascensão do nacionalismo populista ao redor do mundo, enfatizando o perigo de uma “epidemia de animosidade” contra aqueles que têm uma raça ou um credo diferente.
Meu palpite é que o Papa está preocupado com a falta de misericórdia para com os marginalizados do mundo, não só nos Estados Unidos. “Este é o tempo da misericórdia”, escreve. “É o tempo da misericórdia para todos e cada um, já que ninguém pode pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força de seu carinhoso amor. É o tempo da misericórdia porque os fracos e os vulneráveis, os distantes e os solitários, devem sentir a presença de irmãos e irmãs que os ajudam em suas necessidades. É o tempo da misericórdia porque os pobres devem sentir que são estimados com respeito e interesse pelos que derrotaram a indiferença e descobriram o essencial da vida”.
É claro, a carta do Papa sobre a misericórdia foi certamente preparada antes dos resultados das eleições estadunidenses. Também deveria ser levado em consideração que estende o poder de perdoar no confessionário ao tradicionalista e cismático grupo da Sociedade de São Pio X, razão pela qual não pode ser lida como qualquer tipo de avanço do “liberalismo” na Igreja.
Mesmo assim, vistas em conjunto, as palavras e ações do Papa certamente podem dar muito o que pensar aos católicos estadunidenses.
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Há outra mensagem por trás da carta do Papa Francisco sobre o aborto? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU