16 Novembro 2016
Era óbvio o que estava chegando. E se não fosse pelo voto de muitas mulheres e latinos, a vitória de Trump teria sido ainda maior. Como não enxergamos isso? Suspeito que tenha acontecido porque não queríamos enxergar. Anos atrás, já se falava do "fascismo que está vindo". A recente aparição, em todo o mundo, de extremas-direitas racistas e de direitos sociais (lembre-se que o nazismo também se intitulou "nacional-socialismo"), tampouco abriu nossos olhos.
O comentário é de José Ignacio González Faus, teólogo, jornalista e jesuíta, em artigo publicado por Religión Digital, 15-11-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Então, a surpresa veio quando nos deparamos com o Lobo na casa da Chapeuzinho Vermelho, e além disso, com maioria no Senado e na Câmara de Deputados. Como não se pode prever o que vai acontecer, cabe, ao menos, analisar as causas do que aconteceu. Destacarei duas causas.
Trump escandalizou ao dizer que fará abertamente o que nós estamos fazendo de maneira dissimulada e sorrateira (não defendendo a terra, maltratando os imigrantes, não tributando os muito ricos...). Ao tirarmos nossas máscaras, isso demonstra que o capitalismo e a democracia são incompatíveis. Por mais que por décadas tenhamos tentado nos enganar, aproveitando que a ameaça da União Soviética obrigava o lobo a disfarçar-se de vovozinha, devemos proclamar que sem democracia econômica não pode haver democracia política. Porque o capitalismo é inerentemente individualista enquanto a democracia é essencialmente comunitária.
Muitas empresas que têm enriquecido se deslocalizando, criando milhões de desempregados e convertendo o trabalho em uma espécie de esmola que deu origem aos "working poor" (pobres que trabalham) pesam como uma pedra sobre a sensibilidade de parte da população, que viu que o "yes, we can" (sim, nós podemos) de Obama acabar parecendo muito mais um "no, we can't" (não, não conseguiremos).
Porque quem possui o verdadeiro poder não são as entidades políticas, mas os organismos econômicos que substituem a democracia pela plutocracia. E não esqueçamos que em nossas democracias são muitas as pessoas que não votam a favor de alguém, mas "contra alguma coisa", como já se viu na Espanha, em 2011.
Imagem: Religión Digital
Dois fatores têm destacado esta primeira causa. O primeiro é a globalização. Segundo o ganhador do Nobel de Economia, Robert Merton Solow, a globalização "é um ótimo pretexto para muitas coisas". Então, estamos vendo que não são as pessoas que possuem o direito de circular livremente, mas os ativos financeiros. Que Wall Street ou as grandes cidades convivem com o Canal da Mancha, Lesbos, Eidomene ou com um Mediterrâneo cheio de cadáveres. E que essa suposta "aldeia global" serviu apenas para vender ingressos, enquanto tornava-se uma desgraça para muitas pessoas.
Isto revelou o segundo fator: no capitalismo, os direitos humanos acabaram se convertendo nos direitos do dinheiro.
Haverá bilhões para resgatar um banco que está quebrando, mas não há quase um euro para amparar as pessoas que estão afundando, ou para ajudar a nós mesmos, que também estamos afundando. "As cem pessoas mais ricas da Espanha acumulam uma fortuna equivalente a 18% do PIB", e Mariano Rajoy encherá a boca para falar de "igualdade"... mas apenas quando fala da Catalunha.
As reivindicações sociais não são completamente autorizadas como "populismos", sem que antes saibamos o que essa palavra significa. Temos nos enganado dizendo que as coisas eram o que deveriam ser e não o que realmente estavam sendo. Dessa forma, garantimos que "superamos a crise", ainda que deixando à espera de alguma eventualidade uma frase hipócrita,como por exemplo, "ainda há muito a ser feito", que nunca especifica o que realmente precisa ser feito: porque, na realidade, se trata de apertar ainda mais o cinto dos pobres.
No final, colhemos o que estávamos plantando há algum tempo. Assim, hoje é reivindicada aquela velha verdade batida, quando Trump apresenta algumas consequências que nos assustam, no entanto, não as toma de nossas palavras, mas de nossas condutas.
A esquerda acabou engolindo essa mentira, fazendo um pacto com um sistema que fala de "prosperidade", quando se trata dos ricos, e "austeridade", quando se dirige aos pobres; e que vai desmantelando o Estado de bem-estar social, lentamente, mas sem parar. Concentraram-se no que, em outro momento, chamei de "esquerda da cintura para baixo", o que propiciou à direita uma desculpa moral para cobrir sua vergonha: caso, por exemplo, do "direito ao aborto" (e que fique claro que falo de direito e não da descriminalização).
Eles se transvestiram em esquerda burguesa, em vez de serem uma esquerda social: o que em outro momento chamei de "esquerda-Voltaire", ao invés de "esquerda-Marx". Ou eles se entretiveram com dois pesos e duas medidas entre linguagem e justiça, esquecendo as antigas palavras de Jesus: "isto deveria ser feito, ainda que sem esquecer do outro". Desconheceram a exigência de uma civilização de sobriedade compartilhada como a única saída possível para o nosso mundo. Pagaram também o preço de seu autoengano: hoje se encontram em profunda crise, incapazes de aparecer como uma alternativa, falhando em sua análise social e brigando entre eles como se fossem verdureiros de feira.
E logo queríamos nos justificar fingindo escândalo frente às grosserias de Trump. As metidas de mão com mulheres são típicas de muitos senhores públicos, que têm muito poder, ainda que não tenham estagiárias. A diferença está somente no fato de que Trump se gaba disso em público e os outros fazem-no apenas no privado. E se Trump diz coisas estúpidas contra o Islã, a conduta de Clinton com a Arábia Saudita e com a Líbia não é exatamente um modelo de respeito ao Islã (segundo Julian Assange, das 33000 correspondências públicas de Hilary Clinton, 1700 se referiam à Líbia, não necessariamente de uma forma "edificante"). Essas condutas são como bombas-relógio que acabam explodindo de uma forma ou de outra.
P.S.
Uma última observação: causou surpresa nestas eleições os enormes erros das pesquisas (o que não foi a primeira vez!). Pessoalmente, sou inimigo dessas pesquisas, pois tenho a sensação de que, para uma boa parte do público, não lhes comunicam as informações, mas tentam condicionar seus votos. Talvez por isso, ao invés de argumentar que "por causa da crise faltou dinheiro para fazer essas pesquisas com mais qualidade", deveríamos nos perguntar se os cidadãos decidiram sistematicamente mentir nas pesquisas. Não tenho certeza sobre essa hipótese, mas creio que valeria a pena considerá-la seriamente.
Em qualquer caso, a pergunta que Trump nos cospe na cara é esta: será que vamos acabar sendo honestos com a nossa realidade ou preferimos seguir enganando a nós mesmos? No momento, pelo que ele faz aos Estados Unidos, a reação nobre e democrática de Clinton e Obama, apesar de sua dor, é digna de agradecimento. Mas também deveríamos reconhecer que Michael Moore, em seus filmes, e Noam Chomsky, em seus escritos, estavam repletos de razão.
Foto: Jason Heuser | Reprodução: Religión Digital
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"Trump escandaliza ao dizer que fará de maneira aberta o que estamos fazendo dissimuladamente" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU